Registo
Pompidou 40
Catherine Lawless e Yves Michaud

Quarenta anos depois de ter sido inaugurado, o que resta do Centro Georges Pompidou, do seu projecto cultural inovador e da sua ideia da arte contemporânea? Esta é a pergunta a que respondem de maneira impiedosa Yves Michaud, filósofo e crítico de arte, e Catherine Lawless, que integrou as equipas da fase inicial do Centro.

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No dia 2 de Fevereiro de 1977, o Centro Georges Pompidou abria as suas portas num ambiente de polémica, suscitando um debate impregnado de nostalgia sobre a beleza da arte do passado face à arquitectura metálica do Centro. Apesar desta polémica, um imenso público aí acorreu desde o primeiro dia e, desde então, nunca o desiludiu. O Presidente da República, que inaugurou este monumento, era a imagem desta contradição: Valéry Giscard d’Estaing não era o maior entusiasta do projecto, mas representou bem o seu papel, obrigado a reconhecer a sua força e sucesso em benefício da França.

Quais foram então as grandes inovações deste Centro Pompidou desejado pelo Presidente com o mesmo nome, amante de arte viva?

Em primeiro lugar, um centro cultural com funções pluridisciplinares que colocava cada disciplina artística em relação com as suas vizinhas. As artes visuais estavam ao lado da literatura, do design, da arquitectura, do cinema experimental, das artes performativas, da música, e tantas outras: não compartimentar, olhar, sentir, compreender, mergulhar na sua época e acompanhá-la nas formas artísticas que fazem a sua força, os pontos comuns, as diferenças, as rupturas, as origens. Em suma, a sua história e o seu presente.

De facto, o Centro Pompidou e todos os projectos que dele nasceram mudaram tanto a relação entre o público e a arte do seu tempo que é difícil recordar o choque cultural que terá representado para este «novo público».

O que é que o júri que seleccionou o projecto de Renzo Piano e Richard Rogers entendia da concepção desta nova pedagogia de uma arte ao mesmo tempo tão próxima e tão distante do público do seu tempo?

"O Centro Pompidou e todos os projectos que dele nasceram mudaram tanto a relação entre o público e a arte do seu tempo que é difícil recordar o choque cultural que terá representado para este «novo público»."

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The Pompidou Centre archives

 

A tão depreciada arquitectura do Centro Pompidou era representativa de uma revolução industrial e cultural. O mundo tinha mudado, os ateliers dos artistas tinham-se transformado em fábricas, o design era industrial, o petróleo tinha abalado o modo de circulação no mundo, um movimento de transformação dos modos de vida tinha-se desencadeado. E é este movimento que esta arquitectura reflecte.

Na verdade, este edifício, segundo os seus arquitectos, não é um edifício, mas um engenho móvel, evolutivo e flexível, uma ferramenta viva. Em teoria, pode ser desmontado ou ampliado. Deve mostrar a força e a originalidade do século XX expressas no cinema, na televisão, nos computadores, nas naves espaciais, combinando-as com a arte e fazendo-as dialogar, pois foi neste contexto que os artistas de todas as disciplinas se exprimiram. A transparência da fachada convida ao diálogo entre o público que está fora e aquele que está no interior do Centro, no qual a entrada é gratuita. O hall de entrada, chamado Fórum, foi concebido originariamente como uma passagem entre duas ruas, a rua du Renard e a rua Quincampoix. Atravessando o Fórum, que se queria como uma praça coberta prolongando a praça exterior do Centro, entrava-se num «centro dentro do centro», onde se encontravam as antenas de todos os seus departamentos. Assim, um peão que atravessasse esta praça podia fazer um desvio através de uma galeria de exposições ou ler uma revista ao longo do seu trajecto. Voltaremos a este ponto, pois actualmente este Fórum tornou-se um centro comercial cultural, a caixa de financiamento do Centro.

Quanto à escada rolante ao longo da fachada e que os visitantes devem tomar para aceder aos diferentes espaços, libertando assim o interior de um grande número de elevadores, é como uma «rua ascendente» e o público que a utiliza cria um fresco humano que a torna mais viva. O público devia fazer parte da arquitectura e do seu movimento. A escada oferecia também uma das mais belas vistas sobre Paris, permitindo fazer uma ligação entre o passado e o presente que espera o visitante.

A política cultural do Centro exprimir-se-ia no agenciamento dos seus espaços. A aparente complexidade do Centro é a complexidade de uma cidade e dos seus mistérios. Quis-se recriar ruas, uma praça, casas, para que o encontro com a arte fosse tão imprevisto e familiar como um encontro na cidade. Mas, como em cada cidade, um plano permite também a orientação e dar um sentido e uma identidade a cada bairro.

Dois movimentos operam a um ritmo diferente. O que acontece nos espaços ditos «comuns», ou seja, no subsolo, no Fórum central, no rés-do-chão e no 5.º andar, são eventos temporários. Em contrapartida, as obras expostas no Musée nationale d’art moderne (MNAM), situado nos 4.º e 3.º pisos e as obras da Bibliothèque publique d’information (BPI), situada nos 1.º e 2.º pisos, fazem parte das colecções permanentes.

O Centro apresenta-se como uma roda-gigante de exposições e de eventos temporários, que gira em torno de um espaço fixo, cujos dois corações são o museu e a biblioteca. A unidade, a força e a novidade do Centro assentam na junção destes dois movimentos, nos espaços comuns, concebidos para convidar o público a regressar com frequência e a encontrar sempre uma proposta diferente. Nestes espaços, os acessos são gratuitos, quer se trate de arte contemporânea, de arquitectura, de livros, de atelier e biblioteca infantil, de exposições monumentais (no fosso do Fórum), de concertos, espectáculos de dança, conferências ou debates (na cave).

No 5.º andar apresentavam-se as grandes exposições que marcaram uma época, como o ciclo concebido por Pontus Hultén, Paris-New-York, Paris-Berlin, Paris-Moscou e Paris-Paris. O coração do Centro (o museu e a biblioteca) vivia num ritmo diferente, mais intimista, mais limitado, pontuando esta espiral que o envolve.

Este princípio esteve na base do imenso sucesso do Centro Pompidou desde que abriu portas. O público descobria a felicidade de poder circular nesta colmeia de expressões artísticas a descobrir ou a confrontar com as dos mestres, já que o itinerário do museu se inicia com os impressionistas e fauvistas, que fazem a ligação com o final das colecções do Museu d’Orsay até à actualidade.

Qual foi, agora, a evolução do Centro Pompidou?

Quando abriu, desde a cenografia das colecções, passando pelas temáticas das grandes exposições temporárias do 5.º piso, até às exposições no Fórum e na mezzanine, tudo era inovação em relação aos critérios académicos.

Na inauguração, a apresentação das colecções permanentes assentava num princípio museográfico comum a todos os espaços do Centro, acolhessem eles obras de arte ou documentos. As palavras-chave eram mobilidade, flexibilidade, transparência, liberdade de circulação, abertura para a cidade, etc.. O princípio era promover um olhar que abrangesse várias obras de artistas diferentes da mesma época, estimulando assim, simultaneamente, a descoberta do meio artístico e mostrar as diferenças, as variações, as afinidades. Assim, desde o momento em se entrava, podiam ser descobertos num mesmo espaço as obras de Rousseau, Matisse, Picasso, Léger, Braque, Bonnard. Como afirmava Pontus Hultén, o seu primeiro director, «o esquema proposto é o de um fio condutor que se segue, inspirado na forma das cidades, com praças, alamedas, becos, respeitando as oscilações da vontade, do interesse e até do cansaço».

No 3.º piso, encadeavam-se as obras do fauvismo até Chagall, que encontrávamos no 4.º piso, juntamente com as obras do pós-guerra de Matisse, Léger e Picasso; depois, separada por uma parede corta-fogo, vinha a arte contemporânea francesa e internacional. O conjunto labiríntico pretendia sugerir aos visitantes uma história da arte tecida por múltiplas relações.

Logo de início, no 5.º piso, sucederam-se as grandes exposições pluridisciplinares Paris–New York, Paris–Berlin, Paris–Moscou e Paris–Paris com a ideia de uma história multíplice sempre presente, desta vez misturando as obras dos artistas com o design, os cartazes, a literatura, a música, etc.. Foram grandes frescos da história de arte do século XX. Os seus espaços eram partilhados com exposições monográficas consagradas àqueles que marcaram o século passado, como Marcel Duchamp, Malevitch, Dalí ou Magritte.

No Fórum, no «centro dentro do centro», um fosso permitia a apresentação de obras monumentais, sempre temporárias. Houve o Crocrodrome, criado por Jean Tinguely, Niki de Saint Phalle, Bernard Luginbuhl e La Boutique aberrante, de Daniel Spoerri. Sucederam-se aí as decorações murais de Dalí para a Exposição Universal, o projecto de Picasso para a cortina de palco de Le Train bleu, três totens musicais de Takis, uma instalação vídeo de Nam Jun Paik, esculturas de Calder, etc.. Antecipava-se o «ambiente» como obra de arte. Ao entrar no Centro, o visitante recebia um choque visual que dava o tom do lugar onde entrava.

Tudo isto não impedia que à sua volta se fossem descobrindo espaços mais modestos, mas igualmente inovadores. O «atelier do artista» era uma sala consagrada cada mês a um jovem artista. As Galeries contemporaines, a Salle animation, o Salon photo, a Galerie do Fórum, todos estes espaços apresentavam a actualidade artística, fosse ela cinematográfica, fotográfica ou obras de grandes artistas franceses e internacionais.

"Como por toda a parte, embora mais em França do que em qualquer outro lugar, o Centro institucionalizouse, dividiu-se, centralizouse. O seu Fórum está agora mais próximo de um centro cultural comercial."

 

A programação do museu funcionava em paralelo com a sala de exposições do Centre de création industrielle (arquitectura, design, mobiliário contemporâneo), mas também com a Salle d’actualité da Bibliothèque publique d’information, de livre acesso a jornais de todo o mundo e a uma selecção de livros, e ainda com o atelier para crianças e com salas de debate e conferências.

Quarenta anos mais tarde, o que resta desta efervescência, desta liberdade de circulação, desta transdisciplinaridade que fizeram o sucesso mundial do Centro Pompidou?

Como por toda a parte, embora mais em França do que em qualquer outro lugar, o Centro institucionalizou-se, dividiu-se, centralizou-se. O seu Fórum está agora mais próximo de um centro cultural comercial.

Acabaram as obras monumentais, acabaram os ateliers de artistas, o Salon photo, a Salle d’actualité, que estava sempre cheia, acabou o atelier para crianças. O fosso está vazio. Instalou-se aí um elevador para descer ao piso inferior. Acabou também a gratuitidade neste espaço de acolhimento. Não há senão bilheteiras, um enorme café na mezzanine, uma livraria, uma loja que vende objectos de toda a espécie, desde livros de Matisse para as crianças colorirem, até edições de saladeiras ou bules de chá assinados pelos designers da moda, os terminais para comprar os bilhetes que dão acesso ao Museu e às exposições, ou as filas de espera para as bilheteiras colectivos.

Em resumo, este Fórum, concebido como um espaço de livre descoberta das diversas actividades do Centro (BPI, CCI, MNAM e IRCAM), tornou-se um espaço para abrir a carteira. É impossível chegar até às escadas rolantes sem um bilhete de entrada e, no 5.º piso, de onde se podia admirar a vista sobre Paris a partir de uma bela esplanada, foi instalado um restaurante luxuoso chamado «Georges», o nome próprio do Presidente Pompidou.

O movimento circular que enquadrava o museu e a biblioteca foi interrompido e já não é tão circular nem tão amplo.

Certamente que os imperativos financeiros pesaram: hoje é preciso que tudo seja rentável. Mas também é preciso não esquecer outros factores importantes: os problemas de segurança tornaram-se cada vez mais críticos e levaram a severas restrições à liberdade de entrada e saída. O espírito do pós-68 também desapareceu: é preciso asseio e vigilância. É verdade que a praça de acesso ao Centro se tinha vindo a tornar uma espécie de «Pátio dos Milagres». E, além disso, as equipas já não têm nem o entusiasmo nem a competência do início. Os mais recentes presidentes do Centro, frequentemente nomeados em recompensa de serviços políticos, são tecnocratas e não homens de cultura. Os conservadores e comissários de exposição provêm de séries formatadas e falta-lhes a imaginação dos «pais fundadores». Por outro lado, o mundo da arte e da cultura transformou- se profundamente e «mercantilizou-se» excessivamente.

A apresentação de colecções também abrandou.

Dominique Bozo, sucessor de Pontus Hultén, confiou a Gae Aulenti, em 1981, a tarefa de remodelar a arquitectura interior para a tornar mais «clássica» e própria de um museu. A museografia aberta, que ao primeiro olhar desvendaria as principais etapas da modernidade com as suas ligações e interpenetrações, sofreu uma rearrumação baseada numa maior concentração de telas segundo os movimentos e artistas. É preciso dizer que a colecção se tinha enriquecido bastante ao longo dos anos e permitia, assim, mostrar conjuntos magníficos de Léger, Picasso ou Miró. Esta nova museografia criou assim um museu dentro do museu.

"Hoje, a arte contemporânea volta a ser inacessível: nasceram novos prescritores — os milionários e as potências do mercado de luxo."

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The Pompidou Centre archives

No 4.º piso, a arrumação pode ser considerada como um ponto de vista sobre a história da colecção que o MNAM possui e sobre a história do século XX. Espaços documentais contextualizam cada conjunto de obras. No 3.º piso prevalece um olhar sobre o presente a partir de obras contemporâneas que, por vezes, não têm mais de dois anos. Com tectos que são agora duas vezes mais altos, devido às dimensões das obras actuais, os artistas de hoje são apresentados rotativamente, como exposições temporárias no seio de colecções permanentes. Também aí estão presentes a arquitectura e o design.

Em vez de uma cidade, na qual nos perdíamos para descobrir aquilo que não procurávamos, a museografia tornou-se mais próxima de uma grande avenida que valoriza a escultura e dá acesso a uma série de ruelas perpendiculares que dão para galerias de arte.

Uma outra transformação no sentido da racionalidade foi a integração do Centre de création industrielle no Musée nationale d’art moderne. A sua actividade fundiu-se na do museu, que apresenta, no interior do percurso das suas colecções modernas e contemporâneas, salas consagradas ao design dos anos 50, com Jean Prouvé e Charlotte Perriand depois de algumas maquetas da Bauhaus. Criações de objectos contemporâneos estão integradas no percurso da arte de hoje. Também aqui, as obras ligadas à criação industrial foram museificadas e ordenadas. Elas merecem esta consagração, mas a presença das criações contemporâneas foi reduzida e tornou-se difusa.

Após as grandes exposições pluridisciplinares vieram os anos 80 com grandes exposições monográficas de Pierre Bonnard, de Jackson Pollock, de Willem de Kooning, de Chirico, Matta e muitos outros. Esta sucessão de mostras de grandes artistas do século xx foi prosseguida, e continua a sê-lo, conciliando-a com artistas do final do século XX, e mesmo do presente, como Koons ou, recentemente, Hockney. Faltam, contudo, projectos de envergadura. Para quando uma grande exposição de jovens artistas da Europa-África ou Europa-Ásia a descobrir? Após a globalização, seria bem-vinda uma nova versão da exposição de 1989 Magiciens de la terre, devolvendo aos críticos e descobridores o papel que lhes pertence, em vez dos conselheiros dos grandes coleccionadores.

Esta evolução do Centro Pompidou não impede o seu sucesso.

O Musée national d’art moderne contém uma das mais belas colecções de arte moderna e contemporânea do mundo. As exposições do Centro continuam a ser de grande qualidade.

Desde há alguns anos que, no entanto, é preciso contar com a forte concorrência das fundações e centros de arte privados: a já antiga Fundação Cartier (jóias, relógios, os «musts» da Cartier), a recente Fundação Vuitton (Vuitton, Guerlain, champanhes, licores perfumes, etc.) e, brevemente, a Fundação Pinault (Gucci, Yves Saint Laurent, Boucheron, Alexander McQueen, Bottega Veneta) na antiga Bolsa do Comércio, bem próxima do Centro. Tantos lugares prestigiados onde o dinheiro e as ideias não faltam. Ora, ambos parecem agora faltar ao Centro Pompidou…

*Tradução de Marta Rema