A.
Laurent de Sutter, professor de Teoria do Direito na Vrije Universiteit de Bruxelas e director da colecção «Perspectives Critiques» da PUF – Presses universitaires de France, desenvolve aqui uma hipótese que aceita, sob certas condições, o aceleracionismo — essa perspectiva que defende a reformulação, e não a sabotagem ou o abrandamento dos meios, das infra-estruturas que herdámos da modernidade.
Desde a sua publicação em Maio de 2013, o Manifesto Aceleracionista tem sido interpretado como uma apologia encapotada da nossa submissão ao destino tecnológico perseguido pela humanidade desde o início da modernidade — e, com isso, à destruição das nossas vidas, democracias, e até do nosso planeta. No entanto, esta acusação é tão absurda quanto é deliberadamente contrária ao sentido literal do Manifesto, segundo o qual o que é preciso hoje é justamente reformular o que herdámos da modernidade em geral, e da Revolução Industrial em particular. O verdadeiro objectivo de Nick Srnicek e Alex Williams, os dois autores do Manifesto, não foi enterrar-nos ainda mais no buraco fatal que temos andado a criar há séculos, mas reinvestir nos meios que usámos para criar esse buraco, com o fim de o corrigir. Se «neoliberalismo» é o nome da perspectiva que defende a aceleração da situação presente, então «aceleracionismo» é o nome da perspectiva que luta contra essa aceleração e tenta defender uma nova — suficientemente intensa para nos puxar para fora da esfera de influência da anterior. Para que isso seja possível, dizem os autores, há pelo menos uma condição que precisa de ser cumprida: o reconhecimento de que, enquanto tarefa política, económica, ecológica e tecnológica, esta nova forma de aceleração não pode assentar numa fantasia de tábua rasa. Pelo contrário, temos de ter em conta o estado do presente — e, simultaneamente, o tipo de mundo construído e equipado pelos inquilinos do capitalismo: um mundo cuja característica principal não é tanto a sua superestrutura ideológica, mas a sua infra-estrutura material. A história da modernidade, particularmente desde a Revolução Industrial, tem sobretudo consistido na construção incansável de uma rede gigantesca de infra-estruturas, que não só determina o que é possível ou impossível no mundo como também dá uma nova forma ao próprio mundo. O mundo que herdámos da modernidade é o mundo da infra-estrutura — estradas, pontes, túneis, linhas ferroviárias, sistemas de abastecimento, cabos de Internet, armazéns, condutas de água, oleodutos e gasodutos, cabos eléctricos de alta tensão, centros de dados, etc. Todos os aspectos da nossa vida, do nascimento à morte, têm sido integrados numa série infindável de dispositivos e processos infra-estruturais, sem os quais nem sequer haveria mundo — ou, pelo menos, um mundo capaz de sustentar as condições contemporâneas que permitem à vida simplesmente existir.
B.
É muito fácil ver a logística e a infra-estrutura como uma maldição. O pensamento crítico actual denuncia recorrentemente a forma como o capitalismo se transformou numa espécie de pesadelo logístico, cujo principal exemplo são os grandes cargueiros a abarrotar de contentores de mercadorias, demonstrando a globalização da exploração. É verdade que a evolução da infra-estrutura no século XX acompanhou tanto a liberalização do trabalho à escala mundial como a degradação da condição ecológica do planeta — contribuindo inquestionavelmente para o agravamento desta última. Todavia, o desenvolvimento da infra-estrutura permitiu também a dezenas de milhões de pessoas entrar numa nova fase da sua existência e integrar um mundo do qual eram antes excluídas, o que trouxe vantagens e desvantagens. Uma vez que a infra-estrutura é o que faz o mundo, é impossível não concluir que a própria existência de um mundo foi, até muito recentemente, algo reservado a uma pequeníssima maioria da população terrestre — enquanto agora uma fatia mais significativa lhe ganhou acesso. Evidentemente, ser parte do mundo implica ser parte do problema em que o próprio mundo se metamorfoseou, uma vez que a infra-estrutura tem um custo — e é este custo que tem sido ignorado há demasiado tempo por aqueles que com ela mais lucraram: os próprios defensores da infra-estrutura. Assim, não há dúvida de que a infra-estrutura é uma maldição: como qualquer maldição, é simultaneamente algo que torna quase tudo impossível — e algo sem o qual absolutamente tudo seria impossível, porque desde logo não existiria um mundo que permitisse qualquer possibilidade. Isto significa que, relativamente à infra-estrutura, só temos duas escolhas à nossa disposição: começar do zero, o que implicaria um custo acima das nossas capacidades; ou lidar com o que temos, tentando construir outra coisa a partir disso. Se pensarmos esta alternativa nos termos do Manifesto, a escolha coloca-se entre «uma política popular baseada no localismo, na acção directa e no horizontalismo implacável» e «a preservação dos ganhos do capitalismo tardio, indo além do que é permitido pelo seu sistema de valores, estruturas de governação e patologias de massa». Mas não é bem uma escolha. O primeiro ramo da alternativa não passa de um sonho acalentado pelos que já têm tudo e estão dispostos a deixar para trás os que não partilham a sua sorte — que dependem precisamente da existência de infra-estruturas neoliberais.
C.
Apesar da sua falta de realismo e do seu desprezo quase repugnante pelos outros, este sonho está a receber cada vez mais atenção no mundo ocidental — não só da parte dos colapsologistas e sobrevivencialistas ambientais, mas também dos seus principais adversários. De facto, os que se preparam mais activamente para uma transformação radical dos nossos modos de vida fora da infra-estrutura neoliberal são os próprios arquitectos da infra-estrutura neoliberal. Sejam magnatas de Silicon Valley, sejam responsáveis por obras públicas, os novos mestres das redes que fizeram o mundo onde vivemos são os que tomam as medidas mais urgentes para o deixar, e assim desenvolver uma espécie de paraíso auto-suficiente.
"Os novos mestres das redes que fizeram o mundo onde vivemos são os que tomam as medidas mais urgentes para o deixar, e assim desenvolver uma espécie de paraíso auto-suficiente."
Comprando terrenos na Nova Zelândia, construindo quintas auto-sustentáveis e equipando-as com a tecnologia necessária para produzir energia, calor e água potável (sem esquecer uma rede de esgotos para escoar resíduos), usam os seus imensos recursos financeiros para recriar a primitiva Arcádia, onde possam ser senhores absolutos. O que é irónico é que esta forma de sobrevivencialismo neoliberal é precisamente o que os inquilinos do horizontalismo popular, decrescimento e simplicidade voluntária defendem, sem perceberem que tal simplicidade se tornou na forma extrema do luxo. O exemplo dos magnatas de Silicon Valley demonstra isto de forma clara: construir um mundo fora do mundo, para ser usufruído exclusivamente pelos seus proprietários, é a conclusão lógica do neoliberalismo, ancorado na fantasia da autonomia e da posse. No entanto, para ser auto-suficiente, este mundo em miniatura precisa dos mais preciosos produtos da tecnologia contemporânea, como painéis solares, extractores de calor, etc. Ou seja, se quer ser concebível, precisa de reinventar a sua própria infra-estrutura. Isto significa que, independentemente do projecto em causa, não nos podemos livrar da infra-estrutura, pela simples razão de que não nos podemos livrar da necessidade de um mundo — já que não há um mundo natural onde os seres humanos possam espontaneamente viver. Como a longa história do desenvolvimento da raça humana demonstrou, a natureza é um meio hostil à forma de vida que somos, até ao momento em que transformamos alguns dos factores que suportam essa hostilidade em adjuvantes, assim garantindo a nossa própria segurança. Dos primeiros trilhos espontaneamente abertos pelos hominídeos aos cabos de fibra óptica que transportam informação digital há uma clara continuidade.
"Esta forma de sobrevivencialismo neoliberal é precisamente o que os inquilinos do horizontalismo popular, decrescimento e simplicidade voluntária defendem, sem perceberem que tal simplicidade se tornou na forma extrema do luxo."
D.
Acima de tudo, o aceleracionismo é a aceitação desta realidade. Tal aceitação, todavia, não é uma forma de fatalismo — a defesa de que não há saída para a nossa crise actual, ou até para a condição humana como a concebe a infra-estrutura e a logística. Justamente o contrário: é defender que a única saída para a nossa crise actual e as suas consequências dramáticas para os ecossistemas terrestres em geral (incluindo o nosso) tem de colocar o estado actual da infra--estrutura e da logística como ponto de partida. No entanto, no Manifesto não se analisa profundamente aquilo que se entende por «infra-estrutura» e «logística»; os exemplos propostos pelos autores podiam até levar-nos a pensar que infra-estrutura e logística se referem apenas às chamadas «plataformas», como o Facebook ou a Google. Das três importantes tarefas que o aceleracionismo tem de enfrentar, os autores chegam mesmo a identificar a necessidade de reconstruir uma nova «infra-estrutura intelectual», capaz de competir com a que foi elaborada com sucesso pelos neoliberais a partir do advento da Sociedade Mont Pèlerin, em 1947. Isto poderia sugerir que os aceleracionistas só estão interessados nos meios de comunicação, entendidos em sentido estrito, ou seja, os dispositivos de transmissão de informação resultantes da invenção do telégrafo, que depois contribuíram para a criação da imprensa moderna, rádio, televisão e Internet.
"A única saída para a nossa crise actual e as suas consequências dramáticas para os ecossistemas terrestres em geral (incluindo
o nosso) tem de colocar o estado actual da infra-estrutura e da logística como ponto de partida."
Mas seria um erro chegar a esta conclusão, já que mais do que os meios em si, o que se destaca dos exemplos do Manifesto é o tipo de materialidade que lhes confere realidade. Quando falam da imprensa ou da Internet, Srnicek e Williams não estão bem a falar da imprensa ou da Internet — estão a falar da infra-estrutura do aço, cimento, microchips, etc., das quais dependem para a transmissão e processamento de informação que de outro modo seria irrelevante. Neste ponto, permanecem fiéis a um credo marxista muito importante: o que afirma que os meios de produção desempenham sempre um papel central no próprio processo de produção — e que o resto basicamente não passa de ideologia. Quando mencionam a infra-estrutura, mais do que chamar a atenção para o papel desempenhado por plataformas como o Facebook ou a Google na consolidação da agenda neoliberal, os autores do Manifesto pretendem mostrar que estas são plataformas, antes de serem palavras, discursos ou imagens presentes nas nossas vidas.
E.
A propósito de plataformas, Srnicek e Williams convidam-nos a pensar numa maneira de redistribuir as cartas de forma a dar primazia a alguns meios de comunicação. O seu primeiro apelo diz respeito à necessidade de construir novas plataformas o mais rapidamente possível, partindo do modelo ensaiado pelos empresários neoliberais, de forma a criar uma alternativa às suas iniciativas baseadas no lucro. Estas plataformas poderiam assim contribuir para o terceiro objectivo apresentado pelo aceleracionismo, nomeadamente a necessidade de recriar uma forte ligação comunitária entre «o conjunto díspar de identidades proletárias parciais», em suma, os derrotados do capitalismo. Se uma tal crença na eficácia das redes sociais e da Internet deve ser celebrada, não podemos deixar de perguntar se é só isto que se quer dizer com a aceleração da infra-estrutura — ou se, pelo contrário, é necessário ir muito além disto. Entre os poucos pensadores de esquerda que ousaram abordar a questão da infra-estrutura nos últimos tempos, o colectivo Comité Invisível teve o mérito de sugerir que defender esta ideia é defender também uma verdade simples: o mundo baseado na infra-estrutura é frágil. Se queremos travar o funcionamento deste mundo, basta cortar uns cabos, entupir uns tubos, poluir reservatórios ou interromper a entrega de mercadorias por alguns dias — e tudo ruiria. Ter em conta a centralidade da logística e da infra-estrutura não se pode limitar à criação de um Facebook de esquerda, mas tem de passar pelo reconhecimento de que são elas que tornam as coisas possíveis — e depois também impossíveis. Decidir sobre o possível e o impossível é um poder que já não reside nas mãos dos seres humanos, mas de seres feitos de cimento, macadame, aço, petróleo, etc. Isto é algo que os Coletes Amarelos, em França, perceberam perfeitamente. Quando decidiram que era altura de exprimirem a sua raiva e sentimento de abandono, não escolheram manifestar-se nas ruas de Paris vocacionadas para isso, mas ocuparam rotundas e cruzamentos — e depois iniciaram as suas manifestações noutros bairros da cidade. Se as autoridades francesas tiveram tanto medo, não foi por eles serem mais numerosos ou agressivos do que outros (não eram), mas porque escolheram lugares de acção decisivos no processo de escolha daquilo que é ou não possível. Eles tornaram-nos visíveis — e mostraram ao mundo o quão frágeis realmente são.
F.
Esta posição negativa e revolucionária em relação ao que fazer com a infra-estrutura não se encontra no Manifesto. Para Srnicek e Williams, o mais importante é insistir na dimensão do progresso que a própria existência dessa infra-estrutura implica — como se o preço a pagar caso destruíssemos a que existe para construir uma nova fosse demasiado elevado. Sendo o estado actual da infra-estrutura resultado de mais de século e meio de crescimento excepcional, alimentado pela descoberta de novas fontes de energia (que em breve se terão esgotado), este é um milagre que mais ninguém terá oportunidade de replicar. São muito pragmáticos: mais do que perturbar a infra-estrutura actual, o que importa, defendem, é invadi-la [hacking] — já que isso é bem mais fácil e barato do que construir de raiz. Mas mesmo neste caso, a esquerda vindoura teria de debater-se com a questão dos recursos necessários para o fazer — ao nível puramente material, assim como ao nível financeiro. O problema é que eles não definem precisamente como é que esse financiamento se fará, excepto para afirmar que os recursos devem vir de «governos, instituições, grupos de reflexão, sindicatos, ou doadores privados», o que pressupõe que os últimos estarão dispostos a fornecê-los. Outra possibilidade, também avançada pelo Comité Invisível, é um pouco mais violenta: consiste em roubar tudo o que possa ser roubado de locais onde o dinheiro esteja facilmente disponível. Há sessenta anos, Marcel Mariën, artista surrealista, poeta e pensador belga, apelando já a uma revolução logística baseada na apropriação dos meios de comunicação, foi ainda mais longe, sugerindo que deveria ser montada uma rede criminosa sistemática, com o objectivo de arrancar dinheiro aos capitalistas. Apesar de parecerem irrealistas, estas propostas alertam para uma questão muito concreta, que só foi tratada recentemente com o advento das criptomoedas, capazes de criar riqueza fora do âmbito do capital estatal ou empresarial. Alguns pensadores chegaram mesmo a dizer que este advento marcaria o possível nascimento de uma nova forma de comunismo, chamado «criptocomunismo», já que, pela primeira vez na história, o valor seria uma questão de criação e não de extorsão. Independentemente da nossa posição em relação a estas ideias, há uma lição aceleracionista a retirar: se queremos levar a sério a infra-estrutura do dinheiro, também temos de pensar na forma como esta infra-estrutura pode ser apropriada, e em seguida reorientada para uma direcção mais progressista.
G.
Apesar destas três limitações (o foco nas plataformas de comunicação, a falta de posição revolucionária e a imprecisão das suas propostas relativamente a financiamento), o gesto do Manifesto é radical — pelo menos na história recente da esquerda. Ter em conta a infra-estrutura como o espaço mais crucial de constrangimento político no mundo contemporâneo pode até ser considerado uma mudança de paradigma para a teoria de esquerda, já que rompe de forma inequívoca com o que resta da sua doxa habitual. Ao focar-se em conceitos como «emancipação», «igualdade», «democracia» ou «trabalho», a teoria de esquerda desertou durante muito tempo o campo da condicionalidade destes conceitos, i.e., o facto de eles implicarem uma realidade que não é natural. Se queremos lutar pela emancipação, igualdade, democracia e libertação da tirania do trabalho, temos então de medir primeiro a profundidade e a importância das condições que recaem sobre esta tarefa. Em termos mais simples: Srnicek e Williams foram os primeiros a insistir no preço que é preciso pagar para mudar o mundo — uma vez que as condições equivalem sempre a um aumento das dificuldades que uma tarefa específica tem de ultrapassar para não falhar. Isto significa que, contrariamente à maioria dos pensadores de esquerda, eles tornaram o horizonte da Laurent de Sutteremancipação, igualdade, democracia, etc., mais difícil de atingir, e não menos — apesar de também o terem tornado mais realista ao elevarem a fasquia.
"Ter em conta a infra-estrutura como o espaço crucial de constrangimento político no mundo contemporâneo pode até ser considerado uma mudança de paradigma para a teoria de esquerda."
Alain Badiou é um dos que incessantemente têm insistido no facto de a política ser sempre rara e sempre condicional; em certa medida, pode considerar-se que os autores do Manifesto estudaram esta lição de forma exemplar. Não basta ter ideias e vir para a rua manifestar-se (sem falar sequer de votar); também temos de desenvolver uma estratégia que vá muito para lá da obediência às regras do jogo — e que tente mudá-las. Se são eles a afirmar que a política, quer seja progressista, quer seja conservadora, tem precisamente tudo a ver com regras, então os que conseguirem ver além delas (e observar como os neoliberais atingiram o seu sucesso ao não as respeitar) terão mais hipóteses. É por isso que o Manifesto deve ser lido tal como é: não como um manual para o aspirante a revolucionário, nem um programa de sucesso irrepreensível, mas uma proposta estratégica que só terá o sentido que lhe for dado por aqueles que o usarem.
H.
Talvez o melhor exemplo desta dimensão pragmática do Manifesto seja o seu primeiro herdeiro (se excluirmos o trabalho posterior de Srnicek e Williams sobre o mundo pós-trabalho): o xenofeminismo. Nunca é demais lembrar que o Manifesto Xenofeminista surgiu ligado às propostas do Manifesto Aceleracionista, ou seja, que o xenofeminismo deve ser considerado uma forma de feminismo aceleracionista. Ao afirmar que o corpo feminino, contrariamente ao que é defendido pelo feminismo essencialista, não é um terreno sagrado que deve ser protegido do exterior a todo o custo, as xenofeministas estão, no fundo, a afirmar que este não tem sido suficientemente alienado — e que é essa a tarefa do feminismo contemporâneo. O que Laboria Cuboniks, o colectivo por detrás do Manifesto Xenofeminista, queria dizer com «alienante» era muito claro: tratava-se de esboçar como o corpo sempre dependeu de forças exteriores para construir o seu próprio poder, as suas próprias capacidades. Contudo, estas forças exteriores não são tanto ideológicas (o «discurso» sobre o corpo feminino, etc.), mas mais físicas e materiais: comida, sono, exercício, medicação, entre outras. O que tem alienado as mulheres do seu corpo durante tanto tempo é a infra-estrutura técnico-química definidora dos limites impostos às capacidades e à estética do corpo. É por isso que as xenofeministas defendem que chegou a altura de as mulheres reivindicarem o seu poder sobre esta infra-estrutura, apropriando-se dela com o objectivo de construir a alienação de «si mesmas» — a sua forma de saírem do templo sagrado que é o corpo. Segundo elas, esta reivindicação pode significar, por exemplo, explorar o mundo das hormonas «faça-você-mesmo», já que o controlo hormonal, sobretudo através da pílula contraceptiva, tem sido uma das preocupações centrais da infra-estrutura policial que cerca os corpos das mulheres desde que se descobriu o funcionamento do sistema endócrino. Passa-se o mesmo com o aceleracionismo: aquilo que Srnicek e Williams pretendem é que nos apercebamos da profundidade e intimidade do papel desempenhado pela infra-estrutura nas nossas vidas, e da forma como esta constrói as possibilidades de acção, e até de pensamento, que nos restam. Um futuro mais radioso nunca surgirá como mero exercício da vontade, ou resultado da luta entre forças contrárias — já que, no mundo contemporâneo, nenhuma força é só ela própria; é antes o resultado da infra-estrutura que consegue reunir. Um futuro mais radioso só pode ser o futuro de uma infra-estrutura mais radiosa.
*Tradução de Ana Macedo
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