Assunto
A demografia da escassez e do excesso
Paul Morland

Paul Morland, reputado especialista da ciência demográfica, antigo investigador do Birkbeck College da Universidade de Londres e investigador principal do St Antony’s College da Universidade de Oxford, passa em revista as erradas previsões de Thomas Malthus, explicando como funciona a lei do excesso e da escassez na história da demografia e porque é que se entrou, em quase todo o mundo, numa trajectória descendente.

Superar a Escassez

A fundação da Demografia enquanto disciplina assentou, pelo menos no mundo anglófono, numa teoria da escassez. O reverendo Thomas Malthus (1766–1834) defendeu, na primeira edição do seu Ensaio sobre o Princípio da População (1798), que ao longo de toda a existência humana duas grandes forças têm estado em conflito: a força imparável do crescimento populacional, que exerce pressão sobre a força inamovível — ou, no máximo, vagarosa — da finitude dos recursos.

Imaginemos que cada mulher gera em média seis crianças. É grosseiramente o que podemos esperar num mundo em que a maioria das mulheres tem relações sexuais de maneira mais ou menos regular ao longo do período fértil sem usar métodos contraceptivos. Algumas mulheres, como é óbvio, terão muitos mais filhos: cheguei a conhecer uma que tinha quinze. Algumas não terão nenhum. Mas seis é aproximadamente aquilo que esperamos como média natural. As mulheres são apenas metade da espécie humana, e é necessário um homem para cada criança. Então, duas pessoas tornar-se-ão seis, habitualmente numa média de 25 anos, nascendo algumas das crianças mais cedo, outras mais tarde. Ora, se dois passam a seis em 25 anos, seis passam a dezoito em 50. Dezoito passam a cinquenta e quatro em 75 anos e, no final do século, estes tantos ter-se-ão tornado 162.

Trata-se evidentemente de uma simplificação. Cada coorte etária vive lado a lado com outras acima e abaixo dela, e o tamanho exacto da população dependerá da dimensão das diferentes coortes etárias e, por sua vez, da longevidade de cada uma delas. Mas olhar para a dimensão de uma só coorte dá-nos uma imagem nítida do crescimento populacional, e esta simplificação bastará para os nossos propósitos. Se aceitarmos os valores críticos de seis filhos por mulher e 25 anos por geração — ou seja, quatro gerações por século —, podemos ver quão rapidamente, em circunstâncias desprovidas de constrangimentos, a população humana cresceria. Estima-se que, por volta do ano 1, haveria cerca de 250 milhões de pessoas no planeta.1 Triplicando a cada geração e com quatro gerações por século, o número de humanos teria ascendido à população actual de quase oito mil milhões em apenas 75 anos!2 Mas em vez de isso acontecer em 75 anos, demorou cerca de dois mil. Como é que isto se explica?

O problema de Malthus e a resposta que lhe deu eram simples, brilhantes e, assim que revelados, óbvios. O mundo no ano 75 não tinha a capacidade de alimentar oito mil milhões de pessoas. Se o tipo de crescimento populacional descrito acima se tivesse mantido, no ano 200 a população mundial seria de dois biliões. Mesmo com a tecnologia actual, isso seria impensável. A fome acabaria com a maior parte de nós rapidamente e com a tecnologia do ano 200 ainda mais.

"Clérigo da Igreja Anglicana, Malthus rejeitava qualquer forma de controlo de natalidade e acreditava que a única solução era os homens refrearem a sua sexualidade até terem a capacidade de sustentar uma família."

Rafael

Rafael, La pesca miracolosa [A pesca milagrosa], 1516 © Fotografia: Scala, Florença / V&A Images / Victoria and Albert Museum, Londres

 

A verdade é que, apesar de a população ter esta tendência poderosa e exponencial para crescer, as limitações dos recursos começam a pesar. Isto resulta em morte, e particularmente em mortes prematuras. Na maior parte das excessosociedades, durante a maior parte do tempo, um quarto ou um terço dos bebés morre durante o primeiro ano de vida. Dois terços não atingem ou não ultrapassam a idade reprodutiva. Em tempos de boas colheitas, paz e ausência de pandemias, as populações podem crescer, como aconteceu na Europa durante a Alta e a Baixa Idades Médias. Mas só podem crescer até certo ponto. Se a guerra e as doenças não causarem contratempos, será a fome, pois a terra só pode alimentar um número limitado de pessoas. O cenário pintado por Malthus, pelo menos nas primeiras edições da sua obra, era sombrio. Os instintos sexuais humanos permaneceriam, o resultado natural seria o crescimento da população e os humanos exerceriam para todo o sempre pressão sobre a capacidade do planeta de os sustentar. Só uma pequena percentagem dos que nascem alguma vez chegaria a ter filhos.

Clérigo da Igreja Anglicana, Malthus rejeitava qualquer forma de controlo de natalidade — por muito primitivo que fosse à época — e acreditava que a única solução era os homens refrearem a sua sexualidade até terem a capacidade de sustentar uma família. A única alternativa a um mundo de carência e fome era um mundo de repressão sexual.

A teoria de Malthus fora originalmente estabelecida em oposição a pensadores iluministas do século xviii como o marquês de Condorcet ou William Godwin. Contrariando a sua crença de que era possível construir uma sociedade justa e perfeita, revelou que, afinal, haverá sempre pobres entre nós, como diz a Bíblia (Marcos 14:7). Quanto menos repressão sexual se praticasse, defendia Malthus, mais pobres haveria. Malthus e o seu amigo economista David Ricardo foram os principais alvos do ensaísta Thomas Carlyle quando este descreveu a Economia como «a ciência lúgubre». A economia política malthusiana era a economia política da privação, da necessidade e da escassez.

O pensamento malthusiano enraizou-se profundamente na mundividência da época vitoriana e influenciou grandemente os legisladores e intelectuais públicos, pelo menos no Reino Unido e no Império Britânico. A revisão da lei dos pobres, na política interna, e a indiferença às fomes desde a Irlanda à Índia, na externa, foram pelo menos em parte moldadas pela convicção de que a compaixão seria um desperdício e de que, dado só se poder produzir uma quantidade limitada de comida, muitos estariam destinados a passar fome. Ajudá-los seria mantê-los vivos e permitir que se multiplicassem, o que criaria ainda mais miséria. Várias gerações de decisores e administradores foram formadas de acordo com esta visão.

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1. Population Today: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12288594/. Outras estimativas descem até aos 170 milhões; 250 milhões é um meio-termo razoável.
2. 300 milhões × 3 × 3 × 3 = 8100 milhões.