Furo
On Land*
Mónica de Miranda

O sol cega-me. Não vejo nada. Sou um ser vivo com uma única vida e por isso, até morrer, quero nascer.

Pensando bem, estamos sempre entre mundos. A fronteira é o caminho que percorremos em permanência e desafia a atravessar. Eu já não sinto a travessia sobre os pés, mas no ar que respiro, que entra em mim e passa.

O ar esculpe a terra, o solo, o espaço que calco. Indica-me uma direcção e a força que conduz a proa. Debaixo dos meus pés tenho um mundo que piso. O som do vento acompanha-me e com ele sinto os passos, a passagem dos dias e das noites.

São as últimas gotas de sol que abrem a escuridão, fluindo entre a linha do mar e a expansão do tempo, eu chego até ti com o peso da Europa. Parece que nasci do outro lado da História, mas não sei como falar sobre isso, porque agora que atravesso as sombras elas aparecem lá. O norte é uma sombra. E eu sou um lugar ao avesso, virada para ti. Caminho para o lugar que vais deixar e deixei o lugar que deverá chegar.

Eu não escolhi onde nasci. Quero escolher onde vou morrer. Não quero ser como o sol que nasce e morre no mesmo lugar. Aqui o corpo não tem morada. Perco o norte? Quero andar vivo por outro lugar onde o meu corpo possa respirar, mesmo que sem vida.

Caminho para sul, onde pertenço e aprendo de novo a andar, todos os dias. E sigo uma nova luz. A Europa não me pertence.

O som do vento é a minha casa. Onde quer que vá, faz-me sentir que estou a chegar. Ele viaja em diferentes espaços e tempos. Percorre o passado e o futuro sem ser presente. Quando chegamos até ele, deixou de ser presente. Dissipou-se. Poderia mesmo um imigrante silenciar a melodia da sua língua? Dizem que o silêncio é o que faz a música. Mas isso seria como tocar sem instrumentos, como um som desconhecido. Leva anos de esquecimento para um estranho respirar água salgada e dizer que esta é agora a sua casa.

[...]

3*. Transcrição do guião do filme O Sol não Nasce a Norte (2023) de Mónica de Miranda.