Livro de Horas
O futuro é trabalho essencial
Mariana Silva

É estranho compor um diário sobre o que significa viver em Queens durante a quarentena. A experiência diária da quarentena é atomizada, delimitada pelas paredes do apartamento de cada pessoa. Estes fragmentos de informação tornam-se eventos que se desenrolam no espaço entre o ecrã do meu telemóvel e a janela de onde se vê a rua.

O quotidiano é feito de um feed1 de notícias personalizadas, posts públicos e mensagens directas, recebidas através de ecrãs agora contíguos às nossas mãos. Grande parte deste feed, desta compilação personalizada previamente digerida — palavras que soam progressivamente mais a metáforas sobre pasto e evocam a clausura do gado — é acessível online fora das redes locais. Hesito em partilhar notícias com amigos no estrangeiro, porque imagino que também eles estejam provavelmente a ler as mesmas fontes. No entanto, é online que eu e os meus colegas de casa acompanhamos a situação desastrosa no Elmhurst Hospital a alguns quarteirões de distância, por exemplo. Estes fragmentos de informação tornam-se eventos que se desenrolam no espaço entre o ecrã do meu telemóvel e a janela de onde se vê a rua. Em casa registamos o aumento do número de ambulâncias pelo som das sirenes à medida que Março se torna Abril e ouvimo-las diminuir à medida que Abril se transforma em Maio. Esta crise reforça o que significa escrever a partir de uma posição de privilégio — agora espacialmente delineada pela possibilidade de trabalhar em casa — e realça a complexidade de acesso a experiências alheias. A maior parte deste artigo baseia-se em informação que encontrei online. Por outro lado, apercebo-me agora da estranheza que recontar a minha experiência da cidade noutras circunstâncias acarretaria: todas as definições que considero, e que me ajudariam a enraizar o processo de escrita, me parecem anacrónicas: dependem de uma experiência ou um modo modernista de relatar a cidade e este baseia-se, em grande medida, do uso do espaço público.

mariana silva

© Mariana Silva

MAYDAY, 2020

O 1.º de Maio não é feriado em Nova Iorque nem nos EUA, apesar de a data ter inicialmente imortalizado um evento americano. Em Chicago, em 1886, uma greve de 400 mil pessoas a favor da jornada de trabalho de oito horas resultou num motim depois de uma bomba ter sido lançada contra a polícia. 

Também este ano o 1.º de Maio não foi feriado. No entanto, dado o maior aumento da taxa de desemprego desde a Grande Depressão, este ano tentou-se assinalar a data com uma fila de carros que percorreu vários bairros da cidade2. A data marcava ainda o segundo mês de uma greve às rendas, e de um movimento mais alargado pelo congelamento de rendas sem consequências legais para os inquilinos, assim que se tornou óbvio que as promessas iniciais de Cuomo, relativas à suspensão dos despejos e do pagamento das prestações da casa, não passariam disso.

A dificuldade de adaptar as formas de protesto à pandemia fez-me lembrar um tweet que li em Março e me esqueci de guardar. Dizia mais ou menos isto: aqueles que têm de sair de casa para trabalhar durante uma quarentena definem as profissões que a economia deveria ter sempre valorizado. Durante uma pandemia — ao contrário de uma crise económica — o que sobressai como trabalho essencial corresponde, em grande medida, àquilo que feministas designaram como «trabalho social reprodutivo»: o trabalho de cuidar, tradicionalmente não remunerado ou mal pago. «Cuidado» é aqui considerado em sentido lato, como trabalho geralmente desempenhado por pessoas que se identificam como mulheres — quer afectivo, quer material. A reprodução social estende-se às próprias instituições, sejam públicas, privadas, comunitárias ou estatais, que perpetuam a vida3. Se o desastre do capitalismo permitiu sucessivas restruturações económicas nas últimas cinco décadas, o desastre da reprodução social que sempre o acompanhou tornou-se penosamente visível durante esta pandemia. Qualquer trabalhador essencial é, numa quarentena, na prática, parte da classe trabalhadora. E no entanto, esta afirmação contrasta com a noção de classe trabalhadora celebrada no primeiro Dia do Trabalhador, que comemorou os acontecimentos da Praça de Haymarket, em Chicago, por volta de 1890. Nessa altura, as lutas laborais afirmavam-se como maioritariamente masculinas e operárias.

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© Mariana Silva

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Um terço dos trabalhos considerados essenciais nos EUA é desempenhado por pessoas que se identificam como mulheres e grande parte desses trabalhadores essenciais são não brancos4.

Ao nível da saúde, quatro em cada cinco trabalhadores identificam-se como mulheres. Esta pandemia que paralisou o mundo tornou visível uma crise global mais antiga: a crise do cuidado. De facto, o uso que a socióloga Nancy Fraser faz deste termo é anterior à pandemia. O seu texto «Contradictions of Capital and Care» tentou descrever as particulares contradições estruturais que o capitalismo liberal colocou à reprodução social no Norte global desde o século XIX: primeiramente separou a reprodução social da produção económica e encobriu a importância e valor da mesma; depois apresentou a produção económica como um mercado de trabalho ou mão-de obra auto-sustentável5. A ideia da crise do cuidado alerta-nos para os efeitos complexos e cíclicos da produção económica, com o seu «impulso para a acumulação ilimitada que ameaça desestabilizar os próprios processos e capacidades reprodutivas de que o capital — e todos nós — precisamos»6. Fraser procurou demonstrar que um ataque sistemático ao trabalho de cuidado poderia implodir o mercado global, à semelhança de uma crise económica ou ambiental. Essa realidade parece ser hoje indiscutível.

A própria reprodução social era muito diferente quando se deram os acontecimentos daquele 1.º de Maio inicial: segundo Fraser, o liberalismo estava então a consolidar a sua reprodução social na esfera privada do lar. Historicamente, a burguesia fê-lo através da exploração de criados e escravos. As lutas laborais do final do século XIX aspiraram a uma divisão do trabalho baseada no género: os homens lutaram pelo aumento dos salários para que as mulheres pudessem ficar em casa, sem receber. Nos dois casos, estas formas domésticas de reprodução social foram moralmente defendidas como manifestações de amor e virtude. E assim se estabeleceram as bases da família nuclear.

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*Tradução de Ana Macedo

1. Palavra inglesa que significa o conjunto algoritmicamente personalizado de posts providenciados pelas redes sociais mas também «ração».
2. Também isto me pareceu uma ironia: a importação de uma imagem icónica da cultura americana — os passeios de carro — e de uma nova forma de protesto em época de quarentena para uma cidade onde o habitante médio não tem carro.
3. «A melhor maneira de definir a reprodução social são as atividades e instituições que são necessárias para produzir a vida, manter a vida, e substituir geracionalmente a vida. Eu a chamo de atividades de “produção da vida” [life-making]. Produzir a vida no sentido mais direto é dar à luz. Mas para manter essa vida, precisamos de toda uma série de outras atividades, como limpar, alimentar, cozinhar, lavar roupas. Há exigências físicas institucionais: uma casa para morar; transporte público para ir a vários lugares; instalações recreativas públicas, parques, atividades pós-escolares. Escolas e hospitais são algumas das instituições básicas que são necessárias para a manutenção da vida e para a realização da vida.» Sarah Jaffe, «Reprodução Social e a Pandemia, com Tithi Bhattacharya», Revista Movimento, 07-04-2020, publicada originalmente na Dissent Magazine, 02-04-2020; https://movimentorevista.com.br/2020/04/reproducao-social-e-a-pandemia-com-tithi-bhattacharya/, consultado em 26 de Maio, 2020.
4. Campbell Robertson e Robert Gebeloff, «How Millions of Women Became the Most Essential Workers in America», New York Times, 18-04-2020; https://www.nytimes.com/2020/04/18/us/coronavirus-women-essential-workers.html, consultado a 21-05-2020.
5. Nancy Fraser, «Contradictions of Capital and Care», New Left Review, Julho-Agosto 2016; https://newleftreview.org/issues/II100/articles/nancy-fraser-contradictions-of-capital-and-care, consultado a 21-05-2020.
6. Fraser, 2016.