Assunto
A memória e as suas sombras
António Guerreiro

Obsessão memorial, vaga memorial, cultura memorial: assim tem sido chamado um fenómeno do nosso tempo que consiste numa hipertrofia da memória cujas manifestações são culturais, sociais e políticas. Um conceito ligado à psicologia individual — a memória pessoal que, pelo menos desde Freud, sabemos que é incerta e passível de inconscientes desvios — transferiu-se para um âmbito colectivo e expandiu-se como matéria viscosa e dotada de um enorme poder de atracção. De tal modo que a palavra «memória» se tornou um significante-mestre deste nosso tempo que vive no regime do presente a que o historiador François Hartog chamou «presentismo» (e para esta questão da memória, tal como a tematizamos neste dossier da Electra, as elaborações teóricas deste historiador francês sobre os «regimes de historicidade» são muito importantes; por isso, lhe fizemos a entrevista aqui incluída). Mas este nosso tempo dominado pela categoria histórica do presente é, ao mesmo tempo, obcecado pelo passado.

Como se explica então este aparente paradoxo de uma emergência desenfreada da memória que é, ao mesmo tempo, expressão e resposta à escalada do presente? Uma das respostas, mas não a única, deu-a Pierre Nora, o historiador francês dos «lugares de memória», quando afirmou que a memória já não é o que, do passado, deve ser preservado para servir de orientação na construção de um futuro, mas o que torna o presente o único horizonte de si próprio. Isto, escreveu ele nessa grande obra colectiva da qual foi o organizador, Les Lieux de mémoire, publicada em vários tomos entre 1984 e 1993.

A noção de «lugares de memória» foi assim cunhada e conheceu uma enorme difusão, muito para além da disciplina histórica. Trata-se de um marco fundamental da passagem do modelo histórico para o modelo memorial, como se Clio tivesse sido destronada por Mnemosine, a mãe das musas. Mas não se tratou de um caso único: muitos historiadores contemporâneos tomaram a seu cargo a tarefa de «explicar o presente ao presente», como diz Hartog, isto é, as questões da identidade do presente (um presente que se caracteriza pela extensão) enquanto território da memória. A dicotomia memória–história deixou assim de ser aquilo que era, quando nos anos 80 do século passado se começou assistir à viragem memorial, quando a historiografia começou a integrar os testemunhos da memória e se esvaneceu a oposição, antes bem marcada, entre história e memória, entre a disciplina histórica e os mecanismos subjectivos (individuais ou colectivos) de reconstrução e evocação do passado. Se antes era a história que detinha toda a autoridade, agora é a memória que prevalece por todo o lado, ao ponto de se ter tornado o nome de uma nova religião civil, uma noção central da nova cultura pública, em expansão há cerca de quatro décadas. À semelhança de Nietzsche, que na sua segunda «Consideração Intempestiva», intitulada Das Vantagens e Inconvenientes da História para a Vida, denunciou o historicismo — a que ele chamou «doença histórica» — dominante na cultura do seu tempo, há hoje quem considere — é o caso do historiador americano Charles Maier — que a actual patologia que lhe corresponde é a hipertrofia da memória, igualmente capaz de esterilizar e aniquilar as forças criativas. Mas para percebermos esta vaga dos discursos sobre a memória no mundo ocidental (venham eles do campo político, das artes, da literatura ou das ciências humanas e sociais), não podemos esquecer que eles não podem ser desligados da descolonização e dos novos movimentos sociais. O discurso pós-colonial é, em si mesmo, um apelo à memória e a reivindicação de uma nova política da memória.

Os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto foram decisivos para que a questão da memória entrasse com grande impacto na esfera pública. Por isso, o filme de Claude Lanzmann, Shoah, de 1985, é geralmente considerado como uma das manifestações fundamentais, plena de consequências, da vaga memorial. Na sequência da literatura testemunhal vieram muitos filmes e muitos livros de todos os géneros, programas de televisão, etc. Passou-se assim muito rapidamente de um silêncio que era sintoma de um trauma (e a noção psicológica de trauma também passou a fazer parte do léxico e dos conceitos da cultura memorial) à inflação de falas em nome da memória e do «dever de memória» — outra nova noção, com origem em França, que se foi impondo à medida que o Holocausto ganhava uma dimensão pública cada vez maior e se ia internacionalizando. O processo contra Klaus Barbie, um oficial das SS, em 1987, foi um acontecimento determinante, não só porque foi a primeira vez em França que houve um julgamento por «crime contra a humanidade», mas também porque deu azo a que se tornasse omnipresente, muitas vezes com um uso fútil, a noção de «dever de memória» (de tal modo que foi necessário forjar, em reacção, a noção de «abusos da memória»). Recordemos que um pequeno livro que é a transcrição de uma entrevista a Primo Levi saiu em França, em 1997, precisamente com o título Devoir de mémoire, que não é o da edição original italiana, de 1983.

A expansão da cultura da memória ligada ao extermínio dos judeus pelo regime nazi pode ser confirmada pela proliferação, a partir do início dos anos 90, de museus e «memoriais», à medida que ia desaparecendo a geração que tinha vivido e testemunhado o acontecimento. O Museu do Holocausto, em Washington, o Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, em Berlim, da autoria do arquitecto Peter Eisenman, o Museu Judaico, também em Berlim, do arquitecto Daniel Libeskind, são talvez os exemplos mais representativos desta vaga memorial que também contemplou o 11 de Setembro, com um projecto de Michael Arad e Peter Walker, construído em Nova Iorque.

A emergência do fenómeno da memória no espaço público é bem visível no discurso político, na arte e nas ciências sociais. Mas atinge o seu paroxismo na musealização e patrimonialização generalizadas a que assistimos, no nosso tempo, resultado da bem diagnosticada obsessão com o passado. Temos sido confrontados com a construção desenfreada de museus, como se não houvesse amanhã e só houvesse passado — mas um passado que vem inscrever-se no regime totalitário do presente. A noção moderna de património, que muito deve a Alois Riegl (1858–1905), um historiador de arte da Escola de Viena, autor de O Culto Moderno dos Monumentos, ganhou uma plasticidade que permite usos múltiplos, declinações várias. «Património imaterial» é uma delas, com a qual todos estamos hoje familiarizados, mas que causaria, em tempos, uma enorme estranheza. Também neste caso é possível descobrir um paradoxo que o filósofo alemão Hermann Lübbe formulou desta maneira: é a erosão indiscutível da tradição, na modernidade, que gera, por compensação, formas de memória, tais como a conservação patrimonial e os museus. Outro fenómeno de idêntico teor são as comemorações. Há hoje um calendário e um ritmo da vida pública que são marcados pelas grandes comemorações, onde a memória se concilia com pedagogia, mensagens políticas e rituais identitários. Pierre Nora iniciou, em 1984, o primeiro volume dos seus Lieux de mémoire com um texto intitulado «Entre histoire et mémoire», e fechou em 1993 esse grande empreendimento com outro texto que tinha por título «L’ère de la commémoration». Comemorações e efemérides pontuam a vida pública e fornecem alimento inesgotável aos media, que assumiram como missão não apenas seguir o presente, mas também produzir passado. E bem se pode dizer que nenhuma época produziu tanto passado — e tão rapidamente — como a nossa. Tudo se torna matéria de memória (prova disso são os balanços anuais e as listas de nomes e acontecimentos transcorridos mal se muda a folha do calendário). O corolário disso é um fenómeno de entropia e aceleração que afecta o espaço do presente, reduzindo-o e gerando exactamente o contrário da cultura memorial e do museu: a amnésia.

E assim chegamos a uma outra condição paradoxal, própria da vaga memorial em que submergimos: a hipertrofia da memória é também sintoma de esquecimento, a cultura memorial é ao mesmo tempo uma cultura da amnésia. A dialéctica da memória e do esquecimento é bem conhecida: não há memória sem esquecimento, e houve até quem tentasse elaborar uma «arte do esquecimento», por analogia com uma «arte da memória». The Art of Memory é o título de um livro famoso de Frances A. Yates (1899–1981), uma historiadora inglesa da literatura e das ciências. Nesse livro, publicado em1966, Frances Yates fez a história da sobrevivência da ars memoriae da Antiguidade, isto é, dos processos mnemotécnicos (técnicas associativas para ajudar a memorização), na base dos quais está uma concepção instrumental da memória, que tinha sido defendida por Aristóteles. Em 1997, o filólogo alemão Harald Weinrich publicou um livro intitulado Lethe: Kunst und Kritik des Vergessens, ou seja «Lete: Arte e Crítica do Esquecimento». Lete, ou Léthê, é na mitologia grega o rio do esquecimento. Nesse livro, Weinrich formula a hipótese de uma ars oblivionalis, uma arte do esquecimento. Mas para mostrar que há uma diferença de status entre memória e esquecimento: o esquecimento não pode ser objecto de uma decisão. Por isso é que falamos do dever de lembrar, mas nunca do dever de esquecer. Quando muito, o esquecimento pode entrar nos cálculos de uma política da memória. A política da memória pública foi um tema central para os alemães, desde a década de 60, por razões bem conhecidas. Essa política promovia um esquecimento público por «boas razões». Esqueceu, por exemplo, os acontecimentos traumáticos da Luftkrieg, da guerra aérea, da destruição das cidades alemãs pelos aviões dos Aliados (de que Dresden é o exemplo mais significativo). E quando o escritor W. G. Sebald fez, à sua maneira, a história dessa destruição, veio quebrar de certa maneira um «esquecimento» que não tinha sido senão uma determinação da política alemã da memória, no pós-guerra. A política da memória pública é feita em função dos superiores interesses nacionais: há coisas que é preciso recordar e até fazer dessa recordação um ritual colectivo; e há outras coisas que devem cair num esquecimento público estratégico.

darboven

Hanne Darboven, Menschen und Landschaften [Pessoas e Paisagens], 1985
© Hanne Darboven Stiftung. Fotografia: Alexandre Ramos

 

Mas regressemos a esta questão que ficou atrás interrompida: e se a actual hipertrofia da memória significasse afinal que estamos assediados pelo esquecimento? A cultura memorial seria então uma cultura da amnésia. A questão convoca uma reflexão sobre as novas tecnologias da informação, sobre o poder e a expansão dos novos media. Num tempo em que a memória é armazenada num banco de dados a que temos acesso, através da Internet, em qualquer momento e de qualquer lugar, uma rememoração activa é aquilo de que estamos cada vez mais distantes. Temos disponível virtualmente toda a memória do mundo (para aludir ao documentário de Alain Resnais sobre a Biblioteca Nacional de França), temos à nossa disposição o arquivo total, mas por mediação tecnológica e não directamente activada pelos nossos mecanismos mentais. Quanto à nossa memória imediata e activa, ela é cada vez menor. É um órgão que vai diminuindo e tornando-se obsoleto por falta de uso. Eis uma das razões que leva François Hartog a pôr esta questão: será que a memória é tanto mais invocada quanto mais está em vias de desaparecer? E, ao fazer esta pergunta, ele lembra que a mediatização e a massificação implicam o fim daquilo a que Pierre Nora chama «sociedades-memória», as sociedades governadas por uma memória de tipo antigo, onde a herança do passado se transmite colectivamente e automaticamente.

A vaga memorial do nosso tempo fez surgir um léxico e uma rede de conceitos. Para percebê-la em toda a sua dimensão, importa conhecer esse léxico, cientes de que há um saber a que os nomes dão acesso. Eis, então, alguns desses nomes:

Memória colectiva

É um conceito introduzido pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877–1945). Morto no campo nazi de Buchenwald, Halbwachs não teve tempo para rever um conjunto de escritos dos anos 30 que formam o livro póstumo (editado em 1950) e precisamente intitulado La Mémoire collective. Mas a elaboração deste conceito já tinha começado num livro de 1925, Les cadres sociaux de la mémoire. A força deste conceito pode ser avaliada no modo como ele se difundiu para além dos limites disciplinares onde foi criado e passou a ser usado na linguagem corrente. Segundo Halbwachs, a memória, tal como a linguagem, é um fenómeno social. Ampliando assim o conceito de memória de um âmbito individual e psíquico para o âmbito do social e da tradição cultural, Halbwachs não estava a criar um uso metafórico da noção de memória, não: estava precisamente a defender a ideia de que há uma interacção entre a psicologia individual e a sociedade e a cultura. Não é que uma entidade como a Nação, por exemplo, seja dotada de qualquer fundamento biológico consubstancial à memória ou qualquer disposição antropológica para recordar. Mas entidades como a Nação servem-se de signos, símbolos, textos, imagens, ritos, lugares e monumentos para criarem uma memória colectiva que forma também uma identidade. A memória colectiva é sempre uma reconstrução: o passado enquanto tal não é conservado em nenhuma memória, o que permanece é aquilo que em cada época a sociedade, à medida dos seus desígnios e necessidades, deseja e consegue reconstruir. O historiador de arte alemão Aby Warburg (1866––1929) utilizou um conceito algo semelhante, o de memória social, na introdução ao seu projecto de apresentar um Atlas da memória europeia impressa nas imagens. Ao seu Bilderatlas [Atlas das imagens] deu Warburg o nome que também estava inscrito à entrada da sua famosa biblioteca: Mnemosyne, a deusa grega da memória e mãe das musas.

Memória cultural

O conceito de memória cultural foi desenvolvido pelo casal alemão Aleida e Jan Assmann, autores de importantes estudos sobre as questões da memória relacionadas com a cultura, a tradição e a religião. A dimensão social da memória, teorizada por Halbwachs, é o fundamento da memória cultural, tal como os Assmann a definem: como um património de conhecimento e de cultura, também artístico e literário, que ganha corpo em obras de ficção, no teatro, no cinema, na escultura, na pintura, na arquitectura. Esse património é objectivado em dispositivos de memória ou em formas ou práticas simbólicas que fundam a identidade de um grupo. Neste sentido, é uma forma de memória colectiva. O que a caracteriza é uma identidade concreta, própria de uma determinada colectividade (um povo, um Estado, um partido, etc.). Por conseguinte, ela não é universal e é sempre reconstrutiva, na medida em que não se apropria do passado de maneira desinteressada, sem pressupostos, mas antes a partir de uma exigência actual de identidade. É este poder reconstrutivo da memória cultural que transforma um facto histórico num mito; e é da memória cultural que deriva a faculdade de fazer uma construção narrativa do passado. O conceito de memória cultural corresponde, de certo modo, ao que Derrida chama «arquivo».

Memória comunicativa

Aleida Assmann e Jan Assmann propuseram a noção de memória comunicativa para designar outra forma de memória colectiva, distinta da memória cultural. Segundo eles, a memória comunicativa é pouco estruturada e hierarquizada. Baseia-se na comunicação oral (história oral) e remonta, no máximo, a três gerações, ou seja, um século. Trata-se, portanto, de uma memória geracional, que muda à medida da sucessão das gerações. Numa afirmação eloquente, diz Aleida Assmann que a comunicação está para a memória comunicativa, assim como a tradição está para a memória cultural.

Lugar de Memória

Deve-se ao historiador francês Pierre Nora o conceito de «lugar de memória», que está na base de uma obra colectiva, em sete volumes, que ele organizou e editou de 1984 a 1993. A convicção de que «a análise das memórias colectivas deve tornar-se a arma de uma história que se quer contemporânea» levou Nora a introduzir a memória, que começava a ser insistentemente invocada, em grande parte por efeito de uma literatura testemunhal dos sobreviventes dos campos de concentração e extermínio nazis, fazendo dela um instrumento importante da historiografia. Os lugares de memória correspondem a uma topografia que pode ou não ser monumental, mas que é sempre simbolicamente importante porque é aí que uma sociedade, um grupo, deposita voluntariamente as recordações em que reconhece a sua história. Os lugares de memória encontram a sua razão precisamente na dissolução das memórias comuns, no facto de estarmos cada vez mais distantes da sociedade tradicional que era uma «sociedade-memória». Assim entendidos, os lieux de mémoire são uma compensação pela perda dos milieux de mémoire.

darboven

Hanne Darboven, Menschen und Landschaften [Pessoas e Paisagens], 1985
© Hanne Darboven Stiftung. Fotografia: Alexandre Ramos

Política da Memória – Política do Esquecimento 

Uma política da memória pública tornou-se tema central na Alemanha desde os anos 60 até ao final do século. Essa política define o que deve ser recordado e objecto de evocação e discussão públicas. Foi em nome de uma política da memória que se construíram museus e memoriais para recordar e homenagear as vítimas do Holocausto. Alguns destes memoriais não se eximiram à polémica. Foi o caso do Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, em Berlim, da autoria do arquitecto Peter Eisenman. Em 1998, quando era ainda só um projecto e não tinha sido lançada a primeira pedra, o romancista alemão Martin Walser, no discurso que proferiu na cerimónia de recepção de um importante prémio literário, disse que era altura de pôr fim à tortura moral que se tinha abatido sobre a mais recente geração alemã que, sem ter qualquer responsabilidade pelos crimes cometidos pelos pais e pelos avós, era obrigada a carregar consigo uma culpa alheia, incutida através de inúmeros museus e memoriais. A polémica desencadeada por esse discurso foi violentíssima. Se a gestão política de uma memória pública é fácil de identificar e caracterizar, já a política do esquecimento público precisa, por definição, de ser muito mais discreta e é tanto mais eficaz quanto menos se dá por ela. O esquecimento, como sabemos, tem uma conotação negativa. No entanto, não há política da memória sem uma política do esquecimento. E, mais uma vez, a Alemanha do pós-guerra fornece um exemplo eloquente: a guerra aérea foi «publicamente esquecida» para amenizar o trauma e impedir que ele fosse atiçado. Uma política do esquecimento público não significa recalcamento ou negação: trata-se de um esquecimento estratégico e por encomenda que pode ser quebrado em qualquer momento, se a vontade de memória triunfar sobre o cálculo do esquecimento.

Dever de Memória

É um mandamento de carácter moral, surgido no início dos anos 90, que prescreve o dever de nunca esquecer. Na origem, o dever de memória referia-se ao Holocausto, esse acontecimento que foi definido como um unicum na história. Nunca esquecê-lo para que ele nunca se repita: é este o sentido da prescrição. Mas as formulações enfáticas são sedutoras e, por isso, rapidamente o dever de memória se foi alargando a outros acontecimentos e a expressão banalizou-se à medida que o complexo memorial do nosso tempo foi atingindo proporções inauditas.