O volume final de Guerra e Paz surgiu em 1869 e gerou grande controvérsia. «Guerra por causa de Guerra e Paz» foi o título paradigmático de uma crítica da altura. O épico de Tolstoi era fortemente revisionista, já que atacava a concepção tradicional de 1812, inspirada na chamada Doutrina da Nacionalidade Oficial, com os seus três pilares de ortodoxia, autocracia e nacionalidade. Mas Tolstoi, um eterno inconformista, manteve-se profundamente idiossincrático até no seu revisionismo. Refutando a mitologia oficial, desprezou o «politicamente correcto» predominante nos campos radicais e liberais da época. Por essa razão, foi atacado por todos os lados. A esquerda não conseguiu perdoar-lhe o aristocratismo descarado, enquanto a direita o confundiu com um dos niilistas em voga na altura, que atacavam implacavelmente os valores tradicionais, incluindo a memória sagrada da Guerra Patriótica russa. A esta disputa juntaram-se críticos literários, outros escritores, historiadores, veteranos de 1812 e oficiais do exército.
150 anos depois, a névoa destas batalhas iniciais à volta do livro de Tolstoi é coisa do passado e existe uma tradição venerável de comentário e interpretação eruditos. No entanto, apesar da sua palpável monumentalidade e grandiosidade, Guerra e Paz continua a ser, em certo sentido, uma obra-prima difícil de categorizar. Esta impressão é habilmente apreendida por Andrei Béli, um autor modernista incontornável, que afirma ter lido Guerra e Paz quatro vezes e que de cada vez é como se fosse um romance diferente. Pode-se argumentar que uma grande obra de arte contém inevitavelmente muitos níveis de sentido e que, além disso, a percepção do leitor também evolui. Ainda que isso seja verdade, o caso de Guerra e Paz parece especial. O romance existe em múltiplas dimensões e está repleto de sentidos divergentes, mas, de forma quase milagrosa, os seus vários elementos acabam por formar um edifício magnífico e harmonioso.
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