Registo
"Guerra e Paz": 150 anos depois
Dan Ungurianu

Guerra e Paz, cujo último volume foi publicado em 1869, passam agora 150 anos, é um dos grandes romances universais. Livro de muitos públicos, este épico da literatura russa, romance-matrioska com muitos romances dentro, apareceu rodeado pela contestação e tem uma história cheia, que nos é contada por Dan Ungurianu, professor catedrático de Estudos Russos em Nova Iorque. Esta é uma pergunta insistente que aqui se faz: Porque é tão difícil argumentar contra Guerra e Paz? Ao responder, Ungurianu fala do livro e do seu autor, desenhando de Tolstoi um retrato vivo e exacto.

BRUEGHEL

Pieter Bruegel, Conversão de S. Paulo, 1567 (detalhes)

 

O volume final de Guerra e Paz surgiu em 1869 e gerou grande controvérsia. «Guerra por causa de Guerra e Paz» foi o título paradigmático de uma crítica da altura. O épico de Tolstoi era fortemente revisionista, já que atacava a concepção tradicional de 1812, inspirada na chamada Doutrina da Nacionalidade Oficial, com os seus três pilares de ortodoxia, autocracia e nacionalidade. Mas Tolstoi, um eterno inconformista, manteve-se profundamente idiossincrático até no seu revisionismo. Refutando a mitologia oficial, desprezou o «politicamente correcto» predominante nos campos radicais e liberais da época. Por essa razão, foi atacado por todos os lados. A esquerda não conseguiu perdoar-lhe o aristocratismo descarado, enquanto a direita o confundiu com um dos niilistas em voga na altura, que atacavam implacavelmente os valores tradicionais, incluindo a memória sagrada da Guerra Patriótica russa. A esta disputa juntaram-se críticos literários, outros escritores, historiadores, veteranos de 1812 e oficiais do exército.

150 anos depois, a névoa destas batalhas iniciais à volta do livro de Tolstoi é coisa do passado e existe uma tradição venerável de comentário e interpretação eruditos. No entanto, apesar da sua palpável monumentalidade e grandiosidade, Guerra e Paz continua a ser, em certo sentido, uma obra-prima difícil de categorizar. Esta impressão é habilmente apreendida por Andrei Béli, um autor modernista incontornável, que afirma ter lido Guerra e Paz quatro vezes e que de cada vez é como se fosse um romance diferente. Pode-se argumentar que uma grande obra de arte contém inevitavelmente muitos níveis de sentido e que, além disso, a percepção do leitor também evolui. Ainda que isso seja verdade, o caso de Guerra e Paz parece especial. O romance existe em múltiplas dimensões e está repleto de sentidos divergentes, mas, de forma quase milagrosa, os seus vários elementos acabam por formar um edifício magnífico e harmonioso.

"Tolstoi foi atacado por todos os lados. A esquerda não conseguiu perdoar-lhe o aristocratismo descarado, enquanto a direita o confundiu com um dos niilistas em voga na altura, que atacavam implacavelmente os valores tradicionais."

Um ponto de partida útil para abordar este paradoxo de Guerra e Paz é a natureza contraditória — e contrária — das intenções de Tolstoi. Este autor viveu toda a sua vida a contracorrente e opôs-se de forma ostensiva às ideias dominantes, argumentando contra o que era considerado moderno e «progressista». No final da década de 1850, irritado com os radicais tirânicos do conselho editorial da revista Sovremennik (Contemporâneo), contemplou lançar uma publicação rival intitulada Nesovremennik (In- ou Não-Contemporâneo). Embora pouco realista, este plano teve implicações importantes que podem ser projectadas na obra de Tolstoi em geral. Em primeiro lugar, não deve ser confundido com conservadorismo e aproxima-se mais do conceito de arcaísmo inovador, formulado por Iuri Tinianov. Em segundo lugar, há um desafio claro, um convite à discussão. Finalmente, apesar do ímpeto polémico, ou talvez precisamente por causa dele, o objecto da polémica recebe uma nova vida (independentemente do prefixo de negação, contemporâneo faz parte de não-contemporâneo).

Os capítulos iniciais do livro que se tornaria Guerra e Paz apareceram primeiro numa revista, com o título «1805». O próprio título era provocador, uma vez que registoo discurso público da época das Grandes Reformas era dominado pelos assuntos prementes do dia. Desafiando as tendências populistas dominantes, todas as personagens dos capítulos iniciais pertencem à nata da aristocracia russa. Além disso, grande parte dos diálogos são em francês. (Infelizmente, a maioria das traduções estrangeiras, seguindo a prática das edições publicadas na fase final da vida de Tolstoi, não preserva a natureza bilingue do diálogo.) À medida que o romance avançou, o escopo da narrativa de Tolstoi alargou-se imenso, com o retrato da «guerra do povo» em amplos contextos históricos e filosóficos. Ainda assim, o maior épico russo começa com uma exclamação francesa proferida numa conversa de circunstância entre aristocratas: «Eh bien, mon prince…»

A posição contrária de Tolstoi provocou inúmeros ataques críticos. Particularmente hostis foram as objecções de veteranos sobreviventes que, entre outras coisas, não conseguiam aceitar detalhes triviais que diminuíssem o espírito heróico de 1812. Mas Tolstoi acabou por não ter de responder a estas objecções, já que o seu livro de certo modo o defendia. Assim, Avraam Norov, um ilustre estadista que tinha perdido uma perna enquanto oficial na Batalha de Borodino, achou improvável que a personagem Kutuzov lesse compenetradamente um livro fútil em francês durante os fatídicos dias de 1812. Depois da morte de Norov, em 1869, foi encontrada na sua biblioteca uma tradução francesa de um romance picaresco de Smollett. Segundo a inscrição da capa, Norov tinha lido o livro em cativeiro, enquanto recuperava do seu ferimento numa Moscovo ocupada. Outra testemunha crítica foi o príncipe Piotr Viazemski, figura maior da era passada, que em 1812 tinha ido parar à Batalha de Borodino como observador, à semelhança do Pierre de Guerra e Paz. O mais irónico na crítica inteligente de Viazemski é que, numa tentativa de refutar esta obra com as suas próprias memórias, acaba involuntariamente por corroborar uma das asserções preferidas de Tolstoi: a de que os grandes acontecimentos históricos são feitos das preocupações mundanas de pessoas comuns e que o caos da guerra não admite uma categorização narrativa perfeita.

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*Tradução de Ana Macedo