Livro de Horas
Nó, nós
Silviano Santiago

Convidado pela Electra a escrever um diário durante um período de tempo, o prestigiado escritor, ensaísta e professor brasileiro Silviano Santiago registou em tom sereno e subtilmente desencantado momentos do seu quotidiano — actos, encontros, reflexões, revisitações literárias —, cruzados com a tensa vida política e cultural do Brasil de Bolsonaro.

Nada existe sem finalidade. Portanto, minha existência tem uma finalidade. Qual? Ignoro-a.

Charles Baudelaire, Mon coeur mis à nu

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Herbert List, 1933
© Fotografia: Magnum Photos

2019

5 de setembro

Ontem à noite, minha vida deu um nó. Sem precedentes. Em poucas horas e numa única noite, ela baixa a alegria e o luto à terra, congeminados. O nó é atado entre as 19 e as 23 horas do dia 4 de setembro. Como desatar o nó?

Em livraria do Rio de Janeiro, eu lanço uma antologia de ensaios. Num hospital não tão distante do local onde minha presença é exigida, falece o mais velho dos meus amigos e colegas ainda vivos.

O livro não teve a produção facilitada. As finanças em declínio entraram de permeio e se constatou a falência da comercialização do livro no Brasil de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. A festa estava marcada há mais de um mês.

A morte do colega e amigo era esperada: estava doente há algum tempo. Seu estado lhe dificultava a atividade profissional.

Em comum, o fato de que ambos ensinamos, escrevemos e somos leitores um do outro. Eu deveria ter ido ao hospital. Ele, à livraria. Desencontramo-nos na alegria e no luto. A noite avançou suas mãos, amarrou os cadarços soltos e deu o nó.
De imprevisível, só a coincidência.

Não acredito na espontaneidade do acaso. Nó dado visa a um fim. Em geral, ambíguo. Guarda-o a sete chaves. Se o guarda, há que se correr para trás. As maquinações do acaso não são de última hora. Anotadas na agenda da vida, ficam à espera da hora H. Sem despertar suspeitas, ou melhor, despertando suspeitas apenas superficiais, dois corpos amigos e afastados trabalhavam em surdina para o desenlace — click! — no dia 4 de setembro.

O mais evidente dos fins do nó é de responsabilidade de outra santíssima trindade. Falta grave-punição-reparação. Estou sendo punido por algo que não deveria ter feito e fiz. De propósito? Gratuitamente? Não importa. Castigo chega em dia de festa. Ave-marias e padre-nossos, ditos de joelho frente à autêntica Santíssima Trindade, inocentam por milagre o pecado cometido.

Na família patriarcal brasileira é rotina ser reparado por punição. De manhã, o filho não beija a mão do pai. Escândalo. O tapa paterno, que pune e repara a falta, é apenas — segundo o verso do poeta Carlos Drummond — uma maneira mais dura de o filho beijar a mão do pai. A lógica das tríades religiosas é persecutória, e de grande alcance coletivo.

Não é difícil aventar outras lógicas sobre as consequências do nó dado pela noite. Entrego-as ao leitor deste diário. Se a condição de testemunha de vista ou de ouvido já não as entregou.

A amizade e o coleguismo é o contexto ideal para a coincidência na imprevisibilidade repercutir e propagar. Muitas subjetividades são envolvidas pelo jogo de situações conflitantes. O nó «vinha sendo falado» e estava à espera. Amizade e coleguismo, embora sejam palavras com forte carga de espiritualidade, não suavizam o golpe baixo do acaso. Golpe tão real quanto o de boxeador no ringue da vida. Na verdade, conceitos decorrentes da fraternidade universal são adubo fertilíssimo a estrumar conversas afoitas e variadas que encontram a razão de ser, sua finalidade, no acaso. Como Pilatos no credo, a noite propicia o desenlace tramado e tecido em parábola bíblica. Ao impor-se, o nó abrange uma coletividade. O nó. Nós. Havia fãs na livraria, havia fãs no hospital. Fãs interligados pela previsibilidade da imprevisibilidade.

Nó cego é o abre-te-sésamo da falastrona caverna social, em que se esconde um grupo de colegas e amigos!

Se cego, não haveria como desatar o nó. É o correr dos dias que de repente o desata. Na dimensão do acontecimento, a hipocrisia da vida social se incumbe garbosamente de desatá-lo. Fim de jogo. Apita o árbitro do acaso. Recomeçam-se as intrigas e se armam as tramas. O recomeço só é diferente do começo porque nenhum dos muitos envolvidos é igual ao que era. O recomeço transforma a todos em semelhantes.

— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère!

Charles Baudelaire

9 de setembro

Segunda-feira. Dormi durante todo o fim de semana. Estava cansado. Sem motivo aparente.

Os últimos dias da semana passada tinham corrido de maneira rotineira. Na quinta-feira fui a outro lançamento de livro, no mesmo local. Disse à colega historiadora que me sentia zumbi. A pasmaceira já dobrava meu corpo. Fui ao velório do colega e amigo na sexta-feira. Desprovidos da elegância da graça, os olhares enviesados à porta de entrada do crematório, se tidos como suspeitos, se endireitam. Afinal, ninguém gosta de ser julgado moralmente estrábico… Falas, silêncios e lágrimas de praxe. Almocei fora de casa com a companheira de táxi. Cansadíssimo, abri a porta do meu apartamento. Não estava corroído por fora. Corroído por dentro, mas não era pela má digestão da picanha deliciosa, servida na Majórica. Liguei a televisão. O presidente Trump afirma que os senadores negros de Baltimore são os verdadeiros racistas norte-americanos. Eles trabalham contra o seu povo. Por negligência deles, bairros de Baltimore sobrevivem aos escombros e infestados de ratos, ele tinha dito. E visita a cidade com vistas ao apoio dos políticos republicanos na próxima eleição presidencial.

Semiadormecido, lembrei que a família de Jared Kushner é dona de empresa imobiliária em Baltimore. Em devaneio, me ocorreram a palavra gentrificação e um pedaço de verso alheio: «pés de ratos sobre cacos».

O sono, só o sono nos salva da angústia, ainda que ele só baixe ao corpo se em conluio com um comprimido de Stilnox.

Desperto-me da bem dormida noite de 48 horas. Corro à estante de livros. Pego o de T. S. Eliot que procuro. E destaco uma estrofe do poema «Os homens ocos»:

Aqueles que atravessaram
De olhos retos para o outro reino da morte
Nos recordam — se o fazem — não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como homens ocos
Os homens empalhados.

Aos olhos do outro, atravesso ocozinho da silva para a morte.

«Mistah Kurtz — he dead» — Eliot pede de empréstimo ao romance The Heart of Darkness, de Joseph Conrad, uma das epígrafes do poema «Os homens ocos». Não precisei pegar outro livro na estante para juntar aos versos de Eliot uma frase de Jean-Paul Sartre que explica o gosto atual pela expressão fake news. Guardo-a na memória: «Admiro como alguém pode mentir colocando a razão do seu próprio lado.»

Sincero não sou. Hipócritas, somos todos. Serei cínico de natural? Ou perverso? «Fernando Pessoa é dessas pessoas que nascem poeta» — há muitos anos escutei Agostinho da Silva começar por essa frase sua conferência sobre Pessoa,
e a achei engraçada. Sincero não sou. Serei Pessoa, a pessoa que nasce ficcionista? A meu favor, na juventude usei o pseudônimo António Nogueira.

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René Burri, 1967
© Fotografia: Magnum Photos

12 de setembro

Dia de massagem. As gratificações que meu corpo recebe semanalmente são de responsabilidade do cardiologista. Ao diagnosticar a hipertensão rebelde, ele me receitou betabloqueador e recomendou bodybuilding. Na velhice, não me teria ocorrido substituir por mãos alheias e profissionais o encanto e o prazer oferecidos na idade madura ao corpo estendido na areia da praia, em dia de sol. Praia de Ipanema, 1972, dunas do barato.

Contrato uma personal trainer. Segunda, quarta e sexta-feira, fisiculturismo na academia de ginástica. Quinta-feira, massagem.

No silêncio salutar e hedonista da maca, lembro-me dos anos 60, época em que morei e trabalhei nos Estados Unidos. Em sociedade desconhecida, trago a curiosidade à flor da pele. Leitor de jornais e revistas, entusiasmo-me com uma notável mudança temática no jornalismo investigativo, ponto alto da imprensa naquele país. Não abandono os livros. Os romancistas policiais Dashiell Hammett e Raymond Chandler fazem parceria com os jornais e semanários. Num formato, a não-ficção. No outro, a ficção. A curiosidade ata os interesses do leitor, e dão o nó.

De repente, o nó é desatado. Novos jornalistas e novos escritores despertam insuspeitas curiosidades minhas. Saio das páginas de política e de crime e sigo para a leitura dos recentes e longos ensaios escritos pelos jornalistas Gay Talese e Tom Wolfe. Eles vêm ao encontro à sensibilidade de alguém nascido em país periférico, então só alcançado pelos tentáculos cosmopolitas do cinema hollywoodiano. Os dois jornalistas abandonam campo minado para se adentrar em terreno virgem, escorregadio e exigente. O da privacidade na vida cotidiana da cidadã e do cidadão. Descubro uma sociedade moderna e em plena efervescência.

«Workers by day, swingers by night» (Trabalhadores durante o dia, descolados à noite) — o sociólogo Daniel Bell vaticinou o futuro em nada promissor da classe operária. Dava adeus a Max Weber, teórico do protestantismo anglo-saxão. Apesar dos dois Relatórios Kinsey (1948 e 1953) já terem escancarado a vida sexual desregrada dos gringos, a privacidade continuava sem os nomes dados na pia batismal. O comportamento íntimo da cidadã e do cidadão ulula em silêncio e camufla o caminho a ser percorrido pela investigação jornalística. Talese e Wolfe criam um gênero em que a não-ficção e a ficção se misturam. A sangue--frio, Truman Capote batizou o novo gênero: faction. De repente, a privacidade passa a ter os nomes próprios da cidadã e do cidadão.

[...]