Editorial
No tempo em que os animais falam
José Manuel dos Santos e António Soares

Dos outros animais, os animais humanos fizeram, ao longo dos tempos, a sua superioridade ou a sua inferioridade, a sua confirmação ou o seu desmentido, a sua identidade e a sua alteridade, a sua fronteira e a sua continuidade. Na altura ou na fundura a que os puseram, tornaram-nos deuses ou demónios, soberanos ou escravos, algozes ou vítimas, livres ou cativos, seres vivos com dignidade ou produtos sem ela.

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John Wesley, Dream of Unicorns [Sonhar com unicórnios], 1966
© John Wesley. Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque
Cortesia do artista e de Fredericks & Freiser

 

Para nós, afinal, todos os animais, com o enigma que ocultam em si, são animais mitológicos. Quando Édipo olha a Esfinge, monstro fabuloso com atributos de vários animais, ouve a pergunta que ela lhe destina e faz dessa pergunta o seu destino. O confronto destas duas vozes, tão cheias da sua diferença, ressoou então com um eco que chega até nós. É como uma música sem outras notas, senão as que escutamos no interior da nossa imaginação inquieta.

Às vezes, os animais são também aqueles que nos dão a proximidade de uma amizade dita com as palavras claras do olhar. Com os animais, não raro sabemos que somos melhores do que somos com os homens e mulheres. Mas, outras vezes, os animais acrescentam à crueldade humana a infâmia de se abater sobre o incompreendido ou o indefeso.

Dos tempos que se iniciaram sem nós na Terra, os animais vêm em tropel ao encontro do hoje em que estamos. Vêm na solidão da sua singularidade elegante ou na força da sua multidão multiplicada, fazendo do substantivo colectivo a sua campanha e a sua companhia. Lá avançam eles em alcateias, bandos, cardumes, varas, rebanhos, manadas, matilhas, malhadas, armentos, formigueiros, enxames, cáfilas. Houve sempre, nessas marchas, um cinema mesmo antes do cinema.

As idades da Terra são atravessadas por animais que aparecem e desaparecem como numa grande magia glaciar. E a história da cultura é simbolizada, antropomorfizada, alegorizada, fabulizada por eles. Das feras de Gilgamesh aos dinossauros e tubarões de Spielberg; do leão de São Marcos e de São Jerónimo às borboletas de Ernst Jünger; das aves de Aristófanes aos pássaros de Hitchcock e de Olivier Messiaen; das cabras e dos cervos de Lascaux aos cães e aos cavalos de Velázquez; dos touros e dos tigres de Pomar (e também de Borges) aos porcos, aos coelhos, às avestruzes e às mulheres-cão de Paula Rego; dos carneiros de Brokeback Mountain à macaca do Tarzan; dos galos de Joana Vasconcelos aos antílopes de Miguel Branco; do lobo de São Francisco de Assis e de Prokofiev ao papagaio de Flaubert; do rinoceronte de Dürer aos leões de Delacroix; dos porcos de Orwell aos ratos de Walt Disney; da serpente de Adão e Eva e de Bergman ao corvo de Edgar Allan Poe; dos grous de Kobayashi Issa ao cavalo açoitado que fez desmaiar Nietzsche e ao insectomorfo de Kafka; dos gatos de Eliot, Doris Lessing, Patricia Highsmith, Vieira da Silva e Cesariny aos bichos de Yourcenar; da truta de Schubert aos cisnes de Tchaikovsky e de Saint-Saëns; do Nosferatu de Murnau a O Homem Elefante de David Lynch, os mundos que, na arte e na literatura, criamos para aí olharmos os nossos vultos, os nossos medos, os nossos mitos, os nossos segredos, os nossos crimes, os nossos sonhos, estão povoados de animais. E ouve-se piar, bradar, bramir, rugir, urrar, coaxar, grasnar, cacarejar, palrar, silvar, ornear, relinchar, miar, ladrar, uivar, gritar.

Os animais estão nas teogonias e nas cosmogonias, nas biologias e nas zoologias, nas narrativas e nas representações, nas palavras e nas imagens, nos sons e nos sentidos, nas sombras e nas luzes. Estão nos cumes e nos abismos, nos céus e nos infernos, nos ares e nos mares, nos solos e nos subsolos, nas cavernas e nas casas, nos templos e nos túmulos, nos altares e nos presépios, nas arcas de Noé e nos jardins zoológicos, nos aviários e nos matadouros, nas bandeiras e nos brasões.

No começo de um texto a que deu um título vindo do Eclesiastes — «Quem sabe se a alma dos bichos vai para baixo?» —, Marguerite Yourcenar lembra: «Um conto das Mil e Uma Noites diz-nos que a Terra e os animais tremeram no dia em que Deus criou o Homem. Esta admirável visão de poeta assume todo o seu valor para nós, que sabemos bem melhor que o contista árabe da Idade Média até que ponto a Terra e os animais tinham razão para tremer.»

Um dos livros do século XX — Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss — termina a sua viagem com um «piscar de olhos, cheio de paciência, serenidade e perdão recíproco que um entendimento involuntário permite, por vezes, trocar com um gato».

Num dos poemas, escrito na sua própria voz, Fernando Pessoa faz uma ontologia dos privilégios paradoxais da condição animal sobre a condição humana:

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Este é um dos poemas mais desolados da literatura: clamor no deserto do Ser, caminhada sem chão, confissão sem absolvição, testemunho sem testamento. O gato é aquele cuja sorte o poeta inveja, fazendo dessa inveja e das razões dela o fundamento sobre o qual ergue o seu génio à altura do perigo.

O nosso tempo olha os animais com um olhar que os torna outros e nos torna outros a olhá-los. É, por isso, que o «Assunto» deste número de Electra, ao falar dos animais, fala do mundo onde eles e nós somos ameaçados e ameaçadores. Fala do nosso lugar e do lugar deles nesse mundo. Fala do espelho côncavo em que nos olhamos, quando nos olhamos uns aos outros. Fala de uma história cheia de alianças, lutas, caçadas, abandonos.

Esta história e o pensamento dela são percorridas por conceitos como os de humanismo, anti-humanismo, animalismo, mecanicismo, vitalismo, ecologia, etologia, behaviorismo, budismo, razão, consciência, culpa, instinto, direitos; ou por nomes como Aristóteles, Montaigne, Descartes, Rousseau, Buffon, Darwin, Emerson, Freud, Konrad Lorenz, John Berger, Desmond Morris.

Este é o tempo em que os animais falam — em que os animais voltam a falar! Qual o significado — antropológico, político, ético, sociológico, psicológico cultural, científico — da emergência da defesa dos animais, e até da sua libertação, como uma das grandes causas-bandeiras destas primeiras décadas do século XXI? É esta indagação crítica que, na sétima edição de Electra, se faz. Continuamos assim o nosso propósito de ir desenhando, no tempo a que chamamos nosso, alguns traços do seu rosto móvel e misterioso.

Neste tempo que faz da aceleração a sua única velocidade, o mundo foi fazendo da mudança uma presença e um presente omnipresente, sem futuro nem passado, como se o tempo fizesse coincidir em si aquilo que é linear com o que é circular.

Nesta edição de Electra, os fotógrafos e editores José Pedro Cortes e André Príncipe estiveram uma semana em Tânger para conversar-entrevistar Hisham Mayet.

A voz deste editor-realizador-arqueólogo-investigador musical-etnólogo-viajante, nascido na Líbia e cidadão do mundo e dos mundos que foi criando, transporta as vozes que consigo se cruzaram (até as dos insectos da Ásia) ou contra si se despedaçaram. É uma voz-memória, que conta as histórias da História e as visões da vida. É uma voz que viu, ouviu e fala.

As palavras com que essa voz fala são atravessadas por imagens que lhes dão um outro entendimento e uma nova convicção. Por isso, se tornam, muitas vezes, palavras-ícones. É com elas que o passado se restitui ao futuro, num presente que flui como o rio em cujas águas trémulas os animais matam a sede, olhando a sua imagem sem conseguir fixá-la.