Hisham Mayet é um cineasta, fotógrafo, editor, investigador musical e aventureiro sonoro. Nascido em Trípoli, na Líbia, mudou-se para os Estados Unidos da América aos dez anos. Com Alan Bishop é fundador e dono da editora discográfica Sublime Frequencies. Do rock psicadélico palestiniano, passando pela electrónica dos insectos do Sudeste Asiático, colagens radiofónicas, gravações de gente a andar à noite, até à música do Eixo do Mal de George W. Bush, a Sublime Frequencies conta com mais de cem edições. Os seus CD, vinis, cassetes e livros redefiniram a música etnográfica contemporânea, resgatando-a da rigidez académica e conferindo-lhe uma existência política e de rua plena de urgência. Deram-lhe o nome de etnografia punk. Recentemente, a editora virou a sua atenção para algumas das figuras lendárias e pioneiras da área, publicando importantes livros sobre a obra de Deben Bhattacharya, Charles Duvelle e a sua influente editora Disques Ocora. Passámos uma semana à conversa com Hisham em Tânger, bebendo café no Colon e assistindo ao mundo à distância.
Hisham Mayet é uma daquelas figuras que podem dar à literatura ou ao cinema personagens que não conhecem o esquecimento. Nascido na Líbia e educado no Reino Unido e nos EUA, faz do mundo o seu caminho incessante. Vivendo entre a realidade e a ficção dela — ou entre a ficção e a realidade dela —, as suas memórias, os seus gestos, os seus actos, as suas obras atravessam muitos tempos e muitos espaços, muitas mudanças e muitas miragens.
Cineasta, fotógrafo, editor, investigador, Músico, escritor, criador, aventureiro, viajante, cidadão de todos os lugares, com tudo o que diz e com tudo o que faz, ergue uma vida vivida contra a vida vulgar. Pela sua conversa, passam a arte e a política, o eu e o outro, o interior e o exterior, o passado e o futuro, o aqui e o além.
Nessa semana, Hisham estava em Tânger. Os fotógrafos e editores André Príncipe e José Pedro Cortes foram ao seu encontro para ouvi-lo contar a sua vida e acompanharam essa narrativa de um ensaio visual para este Número de Electra. Falaram com este grande conversador durante horas e ficaram a saber que o fascínio sentido por ele tinha uma razão de ser ainda maior do que aquela que imaginavam. Esta é uma entrevista--retrato-reportagem feita, com atenção e avidez, na Primeira Pessoa. Lê-la é ouvir uma voz medida (e modulada) por muitas vozes — e é olhar uma imagem misturada (e miscigenada) com muitas imagens.
18 de abril. Pequeno-almoço no café Tingis
HISHAM MAYET A Notre-Dame, como sabem, ardeu e tem havido estas promessas de dinheiro. Já conseguiram 800 milhões. Os Estados Unidos prometeram mais 200 milhões de euros. Uma radiografia da farsa que é o capitalismo global. Não é para ajudar quem quer que seja, mas para reforçar a ideia da classe dominante e os seus monumentos. A história do momento é, aliás, o cardeal francês, aquele que tem andado a abusar crianças, ter dito: «Não, não me podem obrigar a abdicar, recuso-me!» Eis a Igreja Católica francesa e nós a despejarmos todo este dinheiro na reconstrução daquela relíquia.
JOSÉ PEDRO CORTES Os nossos símbolos culturais ainda existem para serem apreciados e adorados, mesmo numa época em que não paramos de ouvir que não há dinheiro. De repente, surgem essas quantias.
HM São símbolos de poder e são importantes para reforçar a dominação. De forma bastante polémica, haverá quem diga que, sim, Notre-Dame vale uma série de vidas humanas, tal como aconteceu no passado. Mas foi sempre assim, só nos está a ser vendido de outra forma. Pensemos no 11 de Setembro e no simbolismo da civilização ocidental a ser atacada pela civilização não ocidental. Para o mundo antiamericano, foi um momento de vitória porque o gigante foi posto de joelhos, mesmo que por pouco tempo. O simbolismo aí foi profundo. Num certo sentido, Notre-Dame representa o mesmo para os anticolonialistas.
ANDRÉ PRÍNCIPE Há uma história sufi sobre uma mulher que vai fazer compras ao mercado. Precisa de ovos e o vendedor está a pedir-lhe dez cêntimos por cada. Ela oferece cinco e consegue-os por sete. Fica satisfeita consigo mesma. Depois vai comprar legumes a um agricultor que pede dez cêntimos por cada peça. Ela regateia outra vez e consegue comprar a seis cêntimos cada. Depois, sentindo- se muito contente com o dia que está a ter, vai a um restaurante caro onde almoça por 50 euros e, sem que lho peçam, deixa uma gorjeta de 30 euros.
HM A religião tem sempre a ver com dinheiro e poder. Fomos programados culturalmente para acreditar nesses conceitos. Por curiosidade, alguns de nós lidamos de maneira diferente com dogmas não tão antigos assim. O cristianismo tem dois mil anos. Se olharmos para o todo, são só dois mil anos, o que não é nada. Sou um firme crente no panteísmo, que no fundo é o animismo. A ideia de que sou uma parte, um microorganismo do planeta Terra. A ideia de hierarquia na religião é para mim absurda. Um ser humano a dominar outro ser humano é um absurdo completo. A energia de um trovão tem mais força e verdade do que qualquer texto dogmático.
"Nasci no dia 6 de Janeiro de 1970, em Trípoli, na Líbia, dois meses antes de Kadhafi ter tomado o poder. Ambos os lados da minha família foram tremendamente afectados. O meu avô materno tinha vindo de Manisa, um porto mediterrânico situado na parte ocidental da Turquia."
16 de abril. Talk the Casbah, Talk the Casbah
AP E se começássemos pelo início?
HM Nasci no dia 6 de Janeiro de 1970, em Trípoli, na Líbia, dois meses antes de Kadhafi ter tomado o poder. Ambos os lados da minha família foram tremendamente afectados. O meu avô materno tinha vindo de Manisa, um porto mediterrânico situado na parte ocidental da Turquia, e tinha sido enviado pelo sultão otomano para pôr fim a uma revolta em Trípoli. Essa família, a família Sarraj, fixou-se então na Líbia e viria a tornar-se uma das maiores proprietárias de Trípoli e arredores. A família do meu pai, El Mayet, que significa «O Morto» ou «Aquele que Morreu», está na Líbia, tanto quanto sei, desde a época romana, há três mil anos. Os meus dois avôs foram figuras de grande relevo a seguir à colonização. Ambos fizeram parte da assembleia que redigiu a constituição. O meu avô paterno foi ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro da Administração Interna do rei Idris. O meu pai estava nomeado embaixador na Dinamarca no Verão de 69. No dia 2 de Setembro, Kadhafi levou a cabo o golpe de Estado. Se Kadhafi não tivesse aparecido, eu teria provavelmente nascido na Dinamarca. No início da década de 70, o meu pai tornou-se o advogado da oposição, o que era, claro, um cargo difícil. Em 1974 houve um apelo para eliminar por inteiro a oposição líbia, e o meu pai foi um dos principais alvos. Em 76, o meu pai viu a vida ameaçada a ponto de ter de partir para Londres. Nós fomos atrás dele pouco depois. Da noite para o dia tivemos de reunir tudo o que pudéssemos e apanhar um avião.
Londres era uma cidade onde o meu pai e os meus tios passavam a vida, tinham negócios por lá, um hotel, pelo que não foi uma loucura assim tão grande. Já lá estavam a viver dois tios meus, o meu pai ia a Londres muitas vezes em viagens de negócios. Foi uma mudança completa de vida, um período de adaptação muito intenso para o meu irmão mais novo e para mim. A minha irmã ficou na Líbia e o meu irmão mais velho estava em escolas militares no Norte de Inglaterra. Vivíamos em Kensington, a apenas três quarteirões do Harrods. Estávamos nos anos 70, era um bairro muito selecto, embora não tão ostensivo como hoje em dia. Tive uma infância incrível. Íamos passear ao Hyde Park. Para nós, o Harrods era uma espécie de parque infantil. Andei numa escola chamada St. David’s, que ficava perto do Museu de História Natural, um colégio para filhos de diplomatas. Sauditas, italianos, jugoslavos, miúdos do Qatar, holandeses, uma pequena escola internacional, 25 alunos, três professores. Muito exigente. Uma educação muito intensa, extrema. Não sei se terá sido muito saudável... toda aquela disciplina!
Em 1979, o Kadhafi começou outra vez a querer eliminar toda a oposição, mesmo quem vivesse no estrangeiro. Surgiam notícias de que ele estava a enviar assassinos para a Europa e que muita gente tinha morrido. Nessa segunda vaga, apareceram uns tipos no escritório do meu pai e mataram à queima-roupa o sócio dele, que estava sentado à secretária. O meu pai era para estar lá, mas felizmente não estava. Foi notícia de destaque na BBC. O meu pai saiu imediatamente de Londres, e do Reino Unido. Soubemos pela televisão e foi o pânico em nossa casa. O meu tio apareceu a bater à porta. Nós recusávamo-nos a abrir a quem quer que fosse, mas reconhecemo-lo e lá abrimos. Duas horas depois estávamos de malas feitas e partimos para um exílio de seis semanas em Aqaba, na Jordânia. Como o filho do rei Hussein era um conhecido do meu pai, conseguimos voos para Amã. Estivemos lá uns quatro, cinco dias, escondidos no Mar Vermelho, tentando não dar nas vistas. Eu tinha oito anos e foi um misto de choque e a tentativa de esquecer o que se estava a passar. Acho que os meus pais tentaram que a nossa vida fosse tão segura e normal quanto possível.
[...]
*Tradução de Vasco Gato
Partilhar artigo