Figura
Luisa Casati, a divina marquesa
José Manuel dos Santos

Nasceu muito rica e morreu muito pobre. Entre o nascimento e a morte, todos os dias foram dela. Afirmou que queria fazer de si mesma uma obra de arte. Musa, mecenas e mundana; excêntrica, excessiva e extravagante; livre, liberta e libertina, a sua vida foi uma performance ininterrupta. Coleccionava-se a si própria com a avidez e a obsessão dos coleccionadores insatisfeitos. Foi pintada, desenhada, esculpida, fotografada por dezenas de artistas. Multiplicava a sua imagem para se tornar outra — e só assim ser ela. Deu as festas mais loucas, exibiu os vestidos mais originais, usou as maquilhagens mais tétricas. O seu reino estendeu-se pelos seus palácios e casas: Milão, Roma, Veneza, Capri, Paris, Londres. A «marquesa futurista», como lhe chamou Marinetti, anunciou as modas e adivinhou as atitudes artísticas e culturais do século XX e XXI.

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Luisa Casati, ao centro da imagem, na Praça de São Marcos, em Veneza, 1913

 

Era em Veneza, quando as horas são atiradas ao silêncio pelos relógios e os leões dançam uma dança invisível e voada. Essa cidade-sonho parecia existir para lhe dar um lugar que a sua imaginação exaltada aceitasse e reconhecesse como seu.

Nas noites quentes e lentas de Verão, o seu vulto alto e esguio passava sob as arcadas sucessivas da Praça de São Marcos. Os cabelos tinham uma cor gritante, os olhos eram desenhados, pintados, acrescentados, egipciamente, com um pigmento negro chamado kohl, as pupilas eram dilatadas, agigantadas, exorbitadas com gotas de beladona, a pele era empoada para ser branca como um Além. Ia nua, apenas coberta com uma majestosa capa de veludo ou de pele, e levava nas mãos as longas trelas, ao fim das quais estavam presos dois leopardos com as suas pintas. Ou, de quando em quando, dois dálmatas com as suas manchas.

Às vezes, trocava os colares de diamantes, rubis, safiras ou esmeraldas que lançavam o seu brilho breve à escuridão alta e azul da noite, por uma cobra coleante, com escamas frias e fortes, que ela punha ao pescoço como quem aí põe a sua alma exilada noutro reino. Atrás dela, um colossal criado núbio dava luz aos seus passos com um candelabro de doze velas. O olhar dela não via o que olhava, mas olhava o que via — uma visão que alargava, alastrava, alteava, alterava, alertava, alarmava tudo.

Há pessoas que têm o poder de dar à realidade a forma dos seus fantasmas, fantasias, sonhos, ilusões, quimeras, obsessões. E têm o dom de conceder aos seus devaneios, delírios, desejos, imaginações, alucinações, ficções a figuração da realidade. Nesta passagem de um mundo para outro mundo, uma das mais perigosas e mal vistas pelos deuses, arrisca-se o que se é e o que se tem.

O nobiliário desta ancestral dinastia de figuras faz-se de deuses desterrados, como Vulcano; homens expulsos, como Adão; anarquistas coroados, como Heliogábalo; génios martirizados, como Giordano Bruno; aristocratas assassinas, como Isabel Báthory; carrascos vitimados, como Sade; soberanos destituídos, como Luís II da Baviera; imperatrizes fugitivas, como Isabel da Áustria (Sissi); dandies aviltados, como Oscar Wilde; artistas encarcerados, como Artaud; santos criminosos, como Genet; condottieri falhados, como Mishima; mágicos assassinados, como Houdini; vénus torturadas, como Anaïs Nin; hereges esfacelados, como Pasolini.

A marquesa Luisa Casati pertence, por linhagem mitológica e direito natural, a essa incansável e estranha genealogia dos que fizeram da vida um destino e um desatino. Ela foi uma dessas heroínas trágicas que vivem por sua conta e risco, tornando-se na obra de arte de que são artistas e no livro de que são autores.

A Casati, como era conhecida, não aceitava nada tal lhe era dado. Levantava a leveza de um castelo sobre o peso parado de uma colina. Abria um rio veloz e atento num terreno pedregoso e apático. Erguia as asas para um voo vertiginoso no vértice de um vento violento. Ficcionava o mundo, espectralizava a realidade, volatizava a matéria, transubstanciava a natureza, sublimava o corpo. Para ela, viver era transgredir. Mais: era transfigurar. Melhor ainda: era transmigrar.

Era uma das mulheres mais ricas do seu tempo e, no fim, uma das mulheres mais pobres dele. Viveu no esplendor e depois na miséria. Foi milionária e miserável, fadada e malfadada, musa e mártir, mecenas e mendiga. Tudo o que tocava ganhava o timbre rouco da sua voz, a cor insolente dos seus olhos, a longa lascívia dos seus gestos.

 

"A marquesa Luisa Casati foi uma dessas heroínas trágicas que vivem por sua conta e risco, tornando-se na obra de arte de que são artistas e no livro de que são autores."

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Nada lhe bastava. Adorava magnificar, surpreender, provocar, exorbitar, exibir. Só gostava do que era magnificente, incomum, excêntrico, extravagante, bizarro, esquisito, exagerado, estranho, singular, original. Usava sapatos de diamante como os de uma Cinderela, adorava plumas e turbantes, ostentava peles sumptuosas e vestidos vertiginosos, pintava o cabelo de verde vegetal ou de fulvo fogo, disposto em penteados arrojados, era amiga, às vezes amante, quase sempre mecenas, dos mais célebres escritores e artistas, que a retrataram, formando assim uma colecção infinita e fulgurante de fabulosas imagens dela, dava bailes e festas memoráveis, insólitas e escandalosas, tinha leopardos luxuriantes, pássaros psicadélicos, macacos maliciosos e sinuosas serpentes como animais de estimação, consumia todas as drogas e todas as alucinações, habitava palácios magníficos e hotéis faustosos, gastava dinheiro como quem o despreza. Acabou desprezada por ele, em busca de abrigo, a revolver os caixotes de lixo, numa Londres que a não reconhecia.

O mistério era o seu metal e as ciências ocultas eram o seu íman. Andava sempre com uma bola de cristal e tinha réplicas da sua figura em cera. Numa delas, em tamanho natural, pôs uma peruca feita com o seu próprio cabelo. Sentava-a frente a ela, no outro topo da mesa de jantar a que presidia, criando uma perturbante e profética duplicação virtual de si mesma: um avatar. Sobre ela, corriam rumores raros, boatos burlescos, mexericos miríficos, inverosimilhanças verídicas, ditos anedóticos. Ela acolhia-os com uma indiferença real e recebia os seus autores ou propagadores sem mexer as pesadas e perversas pestanas postiças.

Era nocturna e noctívaga. Era diabólica e divina: chamaram-lhe «a divina marquesa», assim Sade era chamado «o divino marquês». Era insolente e inocente. Era ligeira e alucinada. Era felina e ferina. Era feia e bela. Era o grande palco onde o espectáculo de si própria se apresentava e representava. A sua cara era a sua máscara e a sua máscara era a sua cara. Jogava-se a ela mesma como se jogasse cartas no pano verde da vida.

Dela, disse Catherine Barjansky, sua ceroplasta: «Tinha um temperamento artístico, mas não sendo capaz de exprimi-lo em qualquer ramo da arte, fez de si mesma uma obra de arte. Não tendo nenhuma vida interior, nem nenhuma capacidade de concentração, procurava ideias selvagens para a vida exterior».

Queria ser uma «obra de arte vivente» e tudo o que usava (vestidos, chapéus, jóias, adereços, objectos, obras de arte, palácios, pessoas, animais, gestos, sentidos, sentimentos) tinha o propósito de a tornar nisso. Era uma performer contínua, incansável e ininterrupta. Tudo nela era a arte de si mesma. Assim, por exemplo, quando usou o vestido de lâmpadas, recebendo um choque que a fez revirar-se, estava a ser uma obra de arte futurista e a fazer o culto da técnica, da máquina da velocidade e da violência. Aquele vestido transformava-a na sua Ode Triunfal: «À dolorosa luz das lâmpadas eléctricas / tenho febre e escrevo…» (Fernando Pessoa / Álvaro de Campos).

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