Era em Veneza, quando as horas são atiradas ao silêncio pelos relógios e os leões dançam uma dança invisível e voada. Essa cidade-sonho parecia existir para lhe dar um lugar que a sua imaginação exaltada aceitasse e reconhecesse como seu.
Nas noites quentes e lentas de Verão, o seu vulto alto e esguio passava sob as arcadas sucessivas da Praça de São Marcos. Os cabelos tinham uma cor gritante, os olhos eram desenhados, pintados, acrescentados, egipciamente, com um pigmento negro chamado kohl, as pupilas eram dilatadas, agigantadas, exorbitadas com gotas de beladona, a pele era empoada para ser branca como um Além. Ia nua, apenas coberta com uma majestosa capa de veludo ou de pele, e levava nas mãos as longas trelas, ao fim das quais estavam presos dois leopardos com as suas pintas. Ou, de quando em quando, dois dálmatas com as suas manchas.
Às vezes, trocava os colares de diamantes, rubis, safiras ou esmeraldas que lançavam o seu brilho breve à escuridão alta e azul da noite, por uma cobra coleante, com escamas frias e fortes, que ela punha ao pescoço como quem aí põe a sua alma exilada noutro reino. Atrás dela, um colossal criado núbio dava luz aos seus passos com um candelabro de doze velas. O olhar dela não via o que olhava, mas olhava o que via — uma visão que alargava, alastrava, alteava, alterava, alertava, alarmava tudo.
Há pessoas que têm o poder de dar à realidade a forma dos seus fantasmas, fantasias, sonhos, ilusões, quimeras, obsessões. E têm o dom de conceder aos seus devaneios, delírios, desejos, imaginações, alucinações, ficções a figuração da realidade. Nesta passagem de um mundo para outro mundo, uma das mais perigosas e mal vistas pelos deuses, arrisca-se o que se é e o que se tem.
O nobiliário desta ancestral dinastia de figuras faz-se de deuses desterrados, como Vulcano; homens expulsos, como Adão; anarquistas coroados, como Heliogábalo; génios martirizados, como Giordano Bruno; aristocratas assassinas, como Isabel Báthory; carrascos vitimados, como Sade; soberanos destituídos, como Luís II da Baviera; imperatrizes fugitivas, como Isabel da Áustria (Sissi); dandies aviltados, como Oscar Wilde; artistas encarcerados, como Artaud; santos criminosos, como Genet; condottieri falhados, como Mishima; mágicos assassinados, como Houdini; vénus torturadas, como Anaïs Nin; hereges esfacelados, como Pasolini.
A marquesa Luisa Casati pertence, por linhagem mitológica e direito natural, a essa incansável e estranha genealogia dos que fizeram da vida um destino e um desatino. Ela foi uma dessas heroínas trágicas que vivem por sua conta e risco, tornando-se na obra de arte de que são artistas e no livro de que são autores.
A Casati, como era conhecida, não aceitava nada tal lhe era dado. Levantava a leveza de um castelo sobre o peso parado de uma colina. Abria um rio veloz e atento num terreno pedregoso e apático. Erguia as asas para um voo vertiginoso no vértice de um vento violento. Ficcionava o mundo, espectralizava a realidade, volatizava a matéria, transubstanciava a natureza, sublimava o corpo. Para ela, viver era transgredir. Mais: era transfigurar. Melhor ainda: era transmigrar.
Era uma das mulheres mais ricas do seu tempo e, no fim, uma das mulheres mais pobres dele. Viveu no esplendor e depois na miséria. Foi milionária e miserável, fadada e malfadada, musa e mártir, mecenas e mendiga. Tudo o que tocava ganhava o timbre rouco da sua voz, a cor insolente dos seus olhos, a longa lascívia dos seus gestos.
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