Primeira Pessoa
Alexander Kluge: «Temos de arrancar a madeira dos salões e construir jangadas»
António Guerreiro

Alexander Kluge é uma figura excepcional da cultura alemã desde os anos 60 do século passado. Enquanto escritor, cineasta e ensaísta foi sempre, e continua a ser, uma consciência crítica, não apenas em relação à Alemanha, obrigando-a a confrontar-se com os traumas da sua história, mas também em relação a muitos aspectos da vida mutilada no mundo em que vivemos.

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Alexander Kluge, Paris, 2018
© Fotografia: Sandra Rocha

 

Alexander Kluge, enquanto figura importante da cultura alemã desde os anos 60 do século passado, só pode ser apresentado com o recurso a uma pluralidade de nomes: escritor, cineasta, realizador e produtor de programas culturais para televisão, ensaísta, autor de livros de teoria social que nasceram do círculo intelectual e de investigação sociológica e filosófica de que fez parte — a Escola de Frankfurt. Foi nesse círculo que manteve uma proximidade intelectual e uma amizade com Adorno que marcam decisivamente a sua obra. Um livro de 1972, escrito com Oscar Negt, com um título longo (Öffentlichkeit und Erfahrung. Zur Organizationsanalyse von bürgerlicher und proletarischer Öffentlichkeit; a tradução inglesa chama-se Public Sphere and Experience. Analysis of the bourgeois and proletarian public sphere), a prometer um discurso árido, com o sabor da dialéctica tão requintadamente cultivada pela teoria crítica de Adorno e Horkheimer, tem a marca evidente do ambiente teórico de onde nasceu. Mas a herança da Escola de Frankfurt que Alexander Kluge sempre assumiu abertamente foi elaborada na sua obra, com uma enorme inteligência, longe das cristalizações do epigonismo. Para além da pluralidade de campos disciplinares e artísticos que experimentou, está a singularidade da obra que em nenhuma das suas dimensões se deixa apreender nas formas canónicas dos géneros. A sua obra literária integra a ficção narrativa, a teoria, a crítica, a escrita memorialística, o apontamento histórico e tudo o que um escritor, um leitor, um espectador e um observador crítico da sociedade, dotado de finos instrumentos analíticos, pode convocar. O resultado é uma assemblage sob a forma de um conjunto monumental de fragmentos que vão constituindo constelações temáticas e convidam o leitor a fazer percursos sinuosos, não lineares, nesse edifício de muitas entradas, muitas saídas e virtualmente sem fim. De igual modo, os seus filmes (longas metragens, curtas metragens e, mais recentemente, micro-metragens) foram feitos à margem e contra os padrões da indústria cinematográfica. A sua primeira experiência no cinema foi como estagiário ao lado de Fritz Lang (ao qual foi recomendado por Adorno). Mas dessa iniciação iria emancipar-se com grande convicção, quando filmou as suas primeiras curtas metragens, no início dos anos 60. E em 1962 assinou um documento colectivo, o famoso Manifesto de Oberhausen que reclamava uma renovação do cinema alemão. A renovação fez-se e Alexander Kluge bastante contribuiu para ela, ao impor um estilo de fragmentação narrativa (criador de histórias cinematográficas é aquilo que nunca quis ser, enquanto cineasta), inserindo imagens de arquivo, sobrepondo palavras nas imagens, utilizando processos que desrespeitavam completamente os códigos da ficção cinematográfica. Com alguma razão ele dirá que é um iconoclasta (mas acrescenta: «um iconoclasta moderado»). E quando fez uma pausa longa nas lides cinematográficas e se lançou, através de uma produtora que ele próprio fundou, no audiovisual para a televisão (fornecendo aos canais privados programas culturais que elas estavam, por lei, obrigados a difundir), também aí se revelou um inovador que conseguiu subverter os códigos e os conceitos televisivos. Tiveram um enorme sucesso, e permanecem como obras exemplares, os diálogos filmados (e entretanto transcritos em livro) com outro escritor maior da literatura alemã contemporânea, o seu amigo Heiner Müller. Nestes trabalhos de diálogo e cooperação (palavras muito próprias do seu vocabulário teórico), integrou também, de várias maneiras e em várias ocasiões, artistas alemães seus contemporâneos: Gerhard Richter, Baselitz, Anselm Kiefer.

A passagem à literatura deu-se cedo e não se pode dizer que Kluge prosseguiu as vias do cinema por outros meios. Sempre afirmou que há uma diferença irredutível entre a arte das imagens e a arte das palavras e que não transitou de uma para a outra como se seguisse uma via contínua e directa. Os milhares de páginas da sua escrita literária são feitas de toda a matéria do mundo: a história, a política, a cultura, a literatura contemporânea e de todos os tempos (a literatura latina, e muito especialmente Ovídio, ocupa um lugar importante no seu panteão e na sua oficina textual), tudo faz parte dessa sinfonia monumental, em vários volumes, que se chama Crónica dos Sentimentos. E assumindo a responsabilidade de se confrontar com os fantasmas alemães do pós-guerra, Alexander Kluge fez um trabalho de analista e arqueólogo que desenterra o que está submerso. Iniciou quase sozinho essa tarefa de lidar com o passado alemão. Não apenas o passado mais recente: ele achou que devia contar a história infeliz da Alemanha, seguindo esta convicção: «A história alemã, até nas suas raízes, é um laboratório da infelicidade ». Mas a história alemã não é um território delimitado na crónica que acompanha o curso da vida e das histórias infinitas de que é feita a história da Europa, da Antiguidade grega aos nossos dias. Alexander Kluge sente-se contemporâneo de Ovídio e faz com que o poeta russo Mandelstam também o seja. Toda a sua obra consiste na criação de cronologias que não são as do calendário nem as da concepção linear da História. Ele estabelece sincronias paradoxais, faz de Marx um contemporâneo de Joyce, continuando assim um projecto cinematográfico de Eisenstein nesse filme singular, imenso, um filme-fleuve de 570 minutos, que se chama Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, «O Capital» (2008). Prosseguir o trabalho dos grandes autores que o antecederam, fazer abreviações dos grandes romances da literatura ocidental: eis a tarefa que Kluge assumiu com um sentido crítico em relação ao tempo em que vivemos que o leva a diagnosticar uma «inquiétance» do tempo. Esta estranha palavra surge no subtítulo da tradução francesa do Livro II da Crónica dos Sentimentos: «Inquiétance du temps». E, em Paris, onde esteve no final de Setembro para apresentar este livro que tinha acabado de ser publicado em França (uma edição que não é meramente uma tradução, é uma reconstrução da sua obra literária) repetia com grande entusiasmo a palavra «inquiétance» (ainda que falasse sempre em alemão), como se fosse um conceito. Foi precisamente nessa ocasião, em Paris, que esta entrevista foi feita.

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Fotogramas de Die Artisten in der Zirkuskuppel: ratlos [Os Artistas sob a Cúpula de Circo: Perplexos], 1968 (detalhes)
 

ANTÓNIO GUERREIRO  Um dos seus livros, composto de textos e imagens, é uma mistura de ficção e documentário sobre o raid aéreo que destruiu a sua cidade natal, Halberstadt, em 1945. A tragédia da história alemã e europeia deste século entra assim para o centro da sua obra.

ALEXANDER KLUGE  Aquilo que constitui a matéria histórica desse livro é actual. Se olharmos para a Síria, temos hoje a mesma coisa. Há uma guerra por meios aéreos. Os aviões de guerra passam por cima e atacam as pessoas em baixo. E é como se as pessoas fossem de uma outra classe, de um outro mundo. São mundos paralelos que se bombardeiam mutuamente.

AG  Mas acha que se trata de uma tragédia semelhante?

AK  Hoje é pior porque o automatismo das armas modernas é mais sofisticado. As bombas e os drones actuais atacam a partir de grandes distâncias, o que faz com que sejam mais perigosos. E as casas são fabricadas em betão mais resistente e já não de tijolo, são menos tradicionais. É um novo século. Terrível.

AG  Chamou ao século XX o «século negro». Não é fácil pensar que é possível subir nessa escala…

AK  Não há de facto um negro mais negro do que o negro. Podemos é falar de um negativo, o -1. Porque, entretanto, houve uma escalada. O que o novo século nos mostra é a perda da realidade. No século XX temos tragédias, mas também temos um solo sob os pés, sabemos quem é o inimigo. Entretanto, isso tornou-se pouco claro. A realidade é agora esponjosa. E é isso, a essa incerteza sobre o que é real, que chamo «inquiétance» do tempo [embora falando em alemão, Alexander Kluge cita o subtítulo da tradução francesa, dizendo «inquiétance» e não o original Unheimlichkeit der Zeit]. A realidade mente, mostra-se como um camaleão. Este é o desafio que ela coloca à poesia para a representar.

"O que o novo século nos mostra é a perda da realidade. No século XX temos tragédias, mas também temos um solo sob os pés, sabemos quem é o inimigo. Entretanto, isso tornou-se pouco claro."

AG  Tem uma visão muito pessimista da história.

AK  Hoje à noite, haverá uma leitura cénica dos meus textos que se chama O Conhecimento das Saídas de Emergência É o Melhor Teatro do Mundo. Quando um teatro arde, há sempre uma saída de emergência. Ser só pessimista não é nada. Não nos podemos dar ao luxo do pessimismo. Por volta de 1900 podia-se ser pessimista, era uma moda. Mas quando o Titanic se afunda e nós estamos no interior dele não nos podemos permitir o pessimismo. Se não temos barcos de salvação, temos de arrancar a madeira dos salões e construir jangadas.

AG  Walter Benjamin, falou em «organizar o pessimismo». A sua ideia está próxima?

AK  Mas ele também disse que não há épocas de decadência. Descreveu o anjo da história a partir de um quadro de Paul Klee [mostra o quadro, reproduzido num livro em inglês, embora publicado na Alemanha, que acaba de sair, com o título The Snows of Venice, com textos do próprio Kluge e do poeta americano Ben Lerner, e com imagens de Gerhard Richter e Thomas Demand]. Mas há um outro quadro de Klee que é para mim muito importante — Stachel, der Clown —, que representa não um anjo melancólico, mas pragmático. Os dois em simultâneo são a minha bandeira. Este último tem uma pá para escavar, é um arqueólogo.

AG  Não percebo como se articulam, como se opõem ou completam estes dois desenhos.

AK  O segundo também é de Klee, também é um anjo, mas é um comediante. Um, o anjo da história, situa-se no topo da tenda de circo e o outro está em baixo, no solo, e tem utensílios, é um operativo. O primeiro é um profeta. Os dois juntos são gémeos.

AG  Um profeta que olha para trás…

AK  Um olha para trás e outro para a frente, formam um rosto bifronte, como Janus. Um é prático e trabalha com as mãos e o outro trabalha com a cabeça.

AG  Portanto, não um anjo de Klee, aquele a que Benjamin chamou o anjo da história, mas dois anjos, são a configuração da sua concepção da história…

AK  Eu sou um fiel servidor da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Benjamin tem um amigo muito jovem, é um pequeno pedaço de mim. E Adorno está ao lado. Quando estão comigo entendem-se melhor.

AG  Refere-se ao facto de eles nem sempre se terem entendido bem, de ter havido desacordos filosóficos entre ambos?

AK  Há diferenças radicais entre eles. E há também diferenças de tom. São duas músicas diferentes, duas orquestras diferentes. Quanto a mim, eu penso com a pele, penso com a cabeça, penso com o diafragma, penso com todos os sentidos. São diferenças.

AG  Mas o senhor é fiel a essas duas dimensões? Integra a diferença entre Benjamin e Adorno?

AK  Sempre. Eles estão em guerra civil e sou eu quem os reconcilia. Mas, a propósito, é preciso dizer que a literatura faz outra coisa diferente daquela que faz a teoria. A literatura também é teoria e há uma força poética da teoria. Mas a literatura argumenta a partir do particular. Somos advogados do particular, não do geral, do detalhe e não do geral.

AG  Poderíamos citar Adorno: «O todo é a mentira.»

AK  Exactamente, e em cada narrativa podemos exprimi-lo de maneira precisa. O que eu faço é também teoria. As palavras não são cavalos com selas, são livres, mas quando se encontram num discurso filosófico já não são livres. Eu, por exemplo, posso partir de erros para fazer uma narrativa, mas o filósofo não pode. Tenho necessidade de fazê-lo, senão sou socrático. Preciso, em igual quantidade, de Dada e de sentido lógico e racional. Mas a filosofia não conhece Dada. Mesmo Benjamin faz de conta que tem em conta Dada e os dadaístas, mas assim que começa a escrever Dada desaparece. O Stachel, der Clown, de Klee, é uma espécie de Dada na Bauhaus.

AG  Tentando definir o género a que pertence a escrita de Crónica dos Sentimentos, podemos identificá-lo com uma tradição muito moderna e muito alemã do Denkbild, da «imagem de pensamento», em que há uma mistura do teórico e do narrativo.

AK  O Denkbild é a mais importante forma dialéctica de expressão. É a dialéctica intensificada; condensa a dialéctica. É o que a poesia pode fazer, na medida em que não tem a obrigação de ser discursiva. Pode formar labirintos. Ficar num estado impreciso, a precisão da indecisão, isso é a literatura. De Ovídio até hoje, dos rabinos na Babilónia até hoje há uma continuidade. As grandes fragatas da filosofia são belas. Belo é Cícero, Platão, Aristóteles, os filósofos árabes, a universidade de Paris, Abelardo, Kant, Horkheimer, Adorno. Todos eles são os grandes navios de guerra. A literatura são os pequenos barcos, os submarinos que procuram as minas. Somos os barcos da batalha de Salamina, muitos barcos pequenos. E Darius, o rei dos Persas, tinha os grandes barcos.

AG  A forma alegórica é uma constante no seu discurso…

AK  Sim, sim. Os Denkbilder têm uma parte, por baixo, que é alegórica, emblemática, metafórica. E têm uma parte superior que é cristalina, exacta, precisa, sistemática. As coisas podem ser invertidas, é isso que a poesia faz.

"Hoje, que vivemos sob um dilúvio de imagens, sou iconoclasta, mas um iconoclasta moderado, regresso aos filmes de um minuto."

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Paul Klee, Stachel, der Clown, 1931
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

AG  Cultivando a forma breve dos Denkbilder, não parece conceder nenhum privilégio à forma do romance, que é hoje a forma hegemónica da narrativa literária.

AK  O romance é importante para mim. Mas, numa constelação, um romance pode tornar-se breve. Se eu tiver cem romances, e todos tiverem força gravitacional, esta força faz com que eles se abreviem uns aos outros. Anna Karenina é um dos meus romances favoritos, mas depois de Ossip Mandelstam, que escreveu Tristia e esteve no mar Negro, como Ovídio, do qual ele é sucessor, Tolstói continua a ser exactamente tão bom como antes, mas é outro corpo celeste na força gravitacional da Rússia de 1937. A força gravitacional encurtou-o, como uma estrela que se aproxima de um buraco negro e muda a sua forma. Aumenta a velocidade, torna-se mais pequena, tem o poder de dez sóis apesar do seu tamanho não ser maior do que um campo de futebol. Não digo que o sei realizar, mas o meu ideal é contar constelações de romances e, para isso, é preciso concentrá- los. Dou-lhe um exemplo: há uma história neste livro, uma Anna Karenina de 1915, que não se apaixonaria por um cavaleiro louco como Vronsky. Na minha história, no meu romance, o filho de Anna Karenina tem uma infecção terrível, uma febre, e a mãe não o consegue deixar sozinho. O marido dela chega e apercebe- se disso. O cavaleiro que tanto conseguia quebrar a espinha dorsal dos cavalos como o coração de Anna Karenina é esquecido. Isto é uma vitória do filho. Quem vence é quem mais precisa do amor da sua mãe. Esta criança vence contra a tragédia. E agora Anna Karenina é finalmente salva. Conto-lhe outro romance: Madame Butterfly, uma ópera.

Quando essa bela mulher, como todas as sopranos, se suicida, o seu filho é adoptado e chega a Boston. Em 1943, ele é comandante da força aérea dos EUA e bombardeia Tóquio, e faz com que a cidade arda. E incendeia a casa de madeira, o bungalow, onde foi concebido. Isto também é um romance, é a continuação da ópera, para além do quinto acto. Se eu agora retomasse e continuasse o maior romance que conheço, a Ilíada, de Homero, tomaria a personagem de Eneias, que tem a infelicidade de Tróia sob os seus pés. Ele chega a Cartago e mata Dido e funda Roma. E Roma ocupa e incendeia Coríntia. Ópera de Rossini. E agora, os gregos vivem o que eles mesmo fizeram aos troianos. Eis o círculo da vingança. É uma história curta, posso contá-la porque há a Ilíada. Para que as história e os romances não acabem, tem de se contar para além do fim do romance. A Montanha Mágica acaba em 1914 e Franz Castorp vai à Grande Guerra. Este é o método que uso porque já existe a grande literatura. Não devo repetir Musil, embora ele seja um dos meus ídolos. O segundo volume de O Homem Sem Qualidades é tão volumoso como este [mostra o segundo volume de Crónica dos Sentimentos], e é feito também de fragmentos. Adoro os fragmentos. Coloco então este volume ao lado de Musil.

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