Vista de Delft
A minha Moscovo
Yuri Slezkine

Nesta bela e original evocação de Moscovo, feita para a Electra, passam épocas distintas, figuras da política, vultos da cultura, acontecimentos memoráveis, lugares de culto. Cruza-se a história pessoal de quem escreve com a história da cidade e a de um mundo que aí jogou o seu destino. E também se fala do Eusébio e do vinho do Porto. O autor, Yuri Slezkine, é um reconhecido historiador e tradutor nascido na Rússia. Foi professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, e em Oxford. É considerado um dos grandes especialistas mundiais de História da Rússia e tem uma obra sobre este tema considerada de referência.

«Moscovo»… Quanto evoca este som Nos corações de todos os russos! A. S. Pushkin

popova stepanova

Liubov Sergeyevna Popova, Esboço para tecido, 1923–24 © Fotografia: Scala, Florença / Colecção privada, Moscovo

 

Moscovo começou por ser uma fortaleza (o Kremlin) e, como em grande parte das cidades, cresceu adicionando bairros de mercadores e artesãos, protegendo-os com muralhas, incorporando mais bairros e construindo mais muralhas (o russo город significa «lugar cercado»). Tal como a maioria das cidades russas, Moscovo estava sujeita a raides frequentes de nómadas das estepes e vizinhos invejosos. Ao contrário da maior parte das cidades russas, tornou-se assento principesco (sendo favorecida num momento crucial pelos mongóis), residência do patriarca (descendente de Constantinopla), capital de um czarado (derivado de «César») eurasiático e, de acordo com uma teoria, a «Terceira Roma». A rápida ascensão de São Petersburgo e o grande incêndio de 1812 (que enviou Napoleão no seu caminho tortuoso até Waterloo) roubaram algum do esplendor de Moscovo, mas não o apagaram. O Kremlin permaneceu o centro simbólico da Rússia; as muralhas, as fortificações e os fossos tornaram-se estradas e avenidas em «anéis» concêntricos ao seu redor; a imigração em massa de antigos servos alimentou o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo que encheu as fileiras dos seus coveiros.

A revolução bolchevique começou em Petrogrado, mas o novo governo mudou-se para Moscovo, o que a transformou na Quarta Roma (anti-imperial), a capital do futuro. Guerras, fomes, colectivização forçada, assim como a proliferação de faculdades, comissariados e zonas de construção, trouxeram mais imigrantes; os apartamentos privados tornavam-se «comunais» à medida que os recém-chegados se apertavam para se instalarem em todos os recantos. Derrubaram-se os antigos campanários, endireitaram-se as vielas sinuosas, planearam-se e por vezes construíram-se novos edifícios construtivistas. A maior igreja da Rússia, a Catedral de Cristo Salvador, foi demolida para dar lugar ao maior edifício do mundo, o Palácio dos Sovietes.

"Quando os nazis chegaram a trinta quilómetros do Kremlin, Estaline inspeccionou a parada do Dia da Revolução numa Praça Vermelha coberta de neve e disse às tropas que se mostrassem à altura da grande missão que a História lhes tinha confiado. Assim o fizeram; a maior parte morreu em semanas."

Quando os nazis chegaram a trinta quilómetros do Kremlin, Estaline inspeccionou a parada do Dia da Revolução numa Praça Vermelha coberta de neve e disse às tropas que se mostrassem à altura da grande missão que a História lhes tinha confiado. Assim o fizeram; a maior parte morreu em semanas. As vigas das fundações inacabadas do Palácio dos Sovietes foram usadas como barreiras antitanque. A Batalha de Moscovo enviou Hitler no seu caminho tortuoso para o bunker.

Depois da guerra, os prisioneiros alemães foram postos a desfilar pelas ruas de Moscovo e usados na construção de novas avenidas rectas, grandes aterros e os «arranha-céus de Estaline», concebidos para complementar o Palácio dos Sovietes e substituir as cerca de quatrocentas igrejas demolidas como marcos distintivos da cidade. Só sete foram construídos antes da morte de Estaline (o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Universidade de Moscovo, os hotéis Ucrânia e Leninegrado, e três edifícios residenciais para a elite). O Palácio dos Sovietes nunca saiu do papel.

O reinado de Khrushchov começou com o decreto «Sobre a eliminação dos excessos no design e na construção», que pôs fim ao monumentalismo estalinista, e com o discurso «Sobre o culto da personalidade e as suas consequências», feito três semanas depois do meu nascimento. O fosso para os alicerces do Palácio dos Sovietes tornou-se a maior piscina ao ar livre do mundo. O quarto que os meus pais arrendavam numa moradia térrea na Rua Pushkinskaya tinha um fogão a lenha e uma infiltração no tecto. As minhas primeiras memórias são do meu pai a partir lenha para o fogão e a tirar neve do telhado. Um dos nossos vizinhos criava coelhos e guardava-os em pequenas gaiolas no quintal.

"O reinado de Khrushchov começou com o decreto Sobre a eliminação dos excessos no design e na construção, que pôs fim ao monumentalismo estalinista, e com o discurso Sobre o culto da personalidade e as suas consequências, feito três semanas depois do meu nascimento."

popova

Liubov Sergeyevna Popova, Esboço para tecido, 1923–24 © Fotografia: Scala, Florença / Colecção privada, Moscovo

 

A Rua Pushkinskaya (anteriormente Bolshaya Dmitrovka, renomeada durante o Jubileu Pushkin de 1937) ia do Teatro Bolshoi e da Casa dos Sindicatos até ao monumento a Pushkin na Avenida Strastnoi (Paixão de Cristo), passando pela mansão onde Pushkin perdeu uma fortuna às cartas e pelo Arquivo do Partido Comunista, onde passei horas a fio na esperança de encontrar qualquer coisa interessante. A Casa dos Sindicatos costumava ser a Casa da Assembleia da Nobreza, onde Liszt e Rachmaninoff deslumbravam multidões, onde os antepassados do meu pai dançavam a polonesa e onde Dostoievski fez o seu discurso de homenagem a Pushkin, que se mostrou decisivo para a canonização de ambos (no mesmo dia em que os restos mortais de Luís de Camões foram trasladados para o Mosteiro dos Jerónimos, marcando os trezentos anos da sua morte e o início da sua canonização oficial). Nos tempos soviéticos, foi um dos principais locais para cerimónias de Estado, entre elas os Processos de Moscovo e os velórios públicos dos líderes que mantinham boas relações com o Partido, como Lenine, Estaline e Brejnev.

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