«Moscovo»… Quanto evoca este som Nos corações de todos os russos! A. S. Pushkin
Nesta bela e original evocação de Moscovo, feita para a Electra, passam épocas distintas, figuras da política, vultos da cultura, acontecimentos memoráveis, lugares de culto. Cruza-se a história pessoal de quem escreve com a história da cidade e a de um mundo que aí jogou o seu destino. E também se fala do Eusébio e do vinho do Porto. O autor, Yuri Slezkine, é um reconhecido historiador e tradutor nascido na Rússia. Foi professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, e em Oxford. É considerado um dos grandes especialistas mundiais de História da Rússia e tem uma obra sobre este tema considerada de referência.
Moscovo começou por ser uma fortaleza (o Kremlin) e, como em grande parte das cidades, cresceu adicionando bairros de mercadores e artesãos, protegendo-os com muralhas, incorporando mais bairros e construindo mais muralhas (o russo город significa «lugar cercado»). Tal como a maioria das cidades russas, Moscovo estava sujeita a raides frequentes de nómadas das estepes e vizinhos invejosos. Ao contrário da maior parte das cidades russas, tornou-se assento principesco (sendo favorecida num momento crucial pelos mongóis), residência do patriarca (descendente de Constantinopla), capital de um czarado (derivado de «César») eurasiático e, de acordo com uma teoria, a «Terceira Roma». A rápida ascensão de São Petersburgo e o grande incêndio de 1812 (que enviou Napoleão no seu caminho tortuoso até Waterloo) roubaram algum do esplendor de Moscovo, mas não o apagaram. O Kremlin permaneceu o centro simbólico da Rússia; as muralhas, as fortificações e os fossos tornaram-se estradas e avenidas em «anéis» concêntricos ao seu redor; a imigração em massa de antigos servos alimentou o desenvolvimento capitalista, ao mesmo tempo que encheu as fileiras dos seus coveiros.
A revolução bolchevique começou em Petrogrado, mas o novo governo mudou-se para Moscovo, o que a transformou na Quarta Roma (anti-imperial), a capital do futuro. Guerras, fomes, colectivização forçada, assim como a proliferação de faculdades, comissariados e zonas de construção, trouxeram mais imigrantes; os apartamentos privados tornavam-se «comunais» à medida que os recém-chegados se apertavam para se instalarem em todos os recantos. Derrubaram-se os antigos campanários, endireitaram-se as vielas sinuosas, planearam-se e por vezes construíram-se novos edifícios construtivistas. A maior igreja da Rússia, a Catedral de Cristo Salvador, foi demolida para dar lugar ao maior edifício do mundo, o Palácio dos Sovietes.
"Quando os nazis chegaram a trinta quilómetros do Kremlin, Estaline inspeccionou a parada do Dia da Revolução numa Praça Vermelha coberta de neve e disse às tropas que se mostrassem à altura da grande missão que a História lhes tinha confiado. Assim o fizeram; a maior parte morreu em semanas."
Quando os nazis chegaram a trinta quilómetros do Kremlin, Estaline inspeccionou a parada do Dia da Revolução numa Praça Vermelha coberta de neve e disse às tropas que se mostrassem à altura da grande missão que a História lhes tinha confiado. Assim o fizeram; a maior parte morreu em semanas. As vigas das fundações inacabadas do Palácio dos Sovietes foram usadas como barreiras antitanque. A Batalha de Moscovo enviou Hitler no seu caminho tortuoso para o bunker.
Depois da guerra, os prisioneiros alemães foram postos a desfilar pelas ruas de Moscovo e usados na construção de novas avenidas rectas, grandes aterros e os «arranha-céus de Estaline», concebidos para complementar o Palácio dos Sovietes e substituir as cerca de quatrocentas igrejas demolidas como marcos distintivos da cidade. Só sete foram construídos antes da morte de Estaline (o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Universidade de Moscovo, os hotéis Ucrânia e Leninegrado, e três edifícios residenciais para a elite). O Palácio dos Sovietes nunca saiu do papel.
O reinado de Khrushchov começou com o decreto «Sobre a eliminação dos excessos no design e na construção», que pôs fim ao monumentalismo estalinista, e com o discurso «Sobre o culto da personalidade e as suas consequências», feito três semanas depois do meu nascimento. O fosso para os alicerces do Palácio dos Sovietes tornou-se a maior piscina ao ar livre do mundo. O quarto que os meus pais arrendavam numa moradia térrea na Rua Pushkinskaya tinha um fogão a lenha e uma infiltração no tecto. As minhas primeiras memórias são do meu pai a partir lenha para o fogão e a tirar neve do telhado. Um dos nossos vizinhos criava coelhos e guardava-os em pequenas gaiolas no quintal.
"O reinado de Khrushchov começou com o decreto Sobre a eliminação dos excessos no design e na construção, que pôs fim ao monumentalismo estalinista, e com o discurso Sobre o culto da personalidade e as suas consequências, feito três semanas depois do meu nascimento."
A Rua Pushkinskaya (anteriormente Bolshaya Dmitrovka, renomeada durante o Jubileu Pushkin de 1937) ia do Teatro Bolshoi e da Casa dos Sindicatos até ao monumento a Pushkin na Avenida Strastnoi (Paixão de Cristo), passando pela mansão onde Pushkin perdeu uma fortuna às cartas e pelo Arquivo do Partido Comunista, onde passei horas a fio na esperança de encontrar qualquer coisa interessante. A Casa dos Sindicatos costumava ser a Casa da Assembleia da Nobreza, onde Liszt e Rachmaninoff deslumbravam multidões, onde os antepassados do meu pai dançavam a polonesa e onde Dostoievski fez o seu discurso de homenagem a Pushkin, que se mostrou decisivo para a canonização de ambos (no mesmo dia em que os restos mortais de Luís de Camões foram trasladados para o Mosteiro dos Jerónimos, marcando os trezentos anos da sua morte e o início da sua canonização oficial). Nos tempos soviéticos, foi um dos principais locais para cerimónias de Estado, entre elas os Processos de Moscovo e os velórios públicos dos líderes que mantinham boas relações com o Partido, como Lenine, Estaline e Brejnev.
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