Primeira Pessoa
Philippe Descola: «Nós, modernos, somos os únicos a pensar a diferença entre natureza e cultura.»
António Guerreiro

Philippe Descola, que teve como mestre Claude Lévi-Strauss, com o qual fez o seu doutoramento, é uma figura central da Antropologia desde que publicou Par-delà nature et culture. A tese que desenvolveu nesse livro teve e continua a ter uma enorme repercussão, mesmo para além do seu campo disciplinar. Os novos tempos, de crítica do etnocentrismo europeu, tornaram-se muito favoráveis a uma recepção triunfante dos seus trabalhos.

philippe descola

© Bénédicte Roscot

 

Esta entrevista a Philippe Descola foi feita em Maio de 2023, por altura de uma conferência que este antropólogo francês, professor no Collège de France, pronunciou na Culturgest, em Lisboa. O tema da conferência retomava o título de um livro monumental publicado há dois anos: Les Formes du visible. A figuração, a produção de imagens, é uma operação comum a todos os humanos, ensina-nos Descola nesse livro, que é uma longa e fantástica viagem através das diversas maneiras de «fazer mundo», isto é, de representar a pluralidade de configurações do mundo, próprias das diferentes culturas. Uma antropologia das imagens já tinha estado na base de uma exposição muito singular, com um carácter de tese muito forte, que Descola concebeu para o Museu do Quai Branly, um museu de etnografia, em 2010. Chamou-se essa exposição La Fabrique des images.

Com este extenso estudo das tradições e dos estilos iconográficos, Philippe Descola prossegue uma tarefa de grande alcance teórico, iniciada com Par-delà nature et culture, um livro de 2005 que colocou Descola num lugar cimeiro, a nível mundial, no campo científico da Antropologia. Essa tarefa consistiu em desfazer o dualismo natureza e cultura que aloja o nosso etnocentrismo. O trabalho de investigação do etnólogo Philippe Descola na Amazónia resultou numa tese que iria marcar profundamente o campo disciplinar da Antropologia: a oposição entre natureza e cultura está longe de ser universal, é apenas a «nossa» maneira, enraizada na nossa tradição metafísica, de objectivar a realidade. Mas não a de outras culturas. Descola desdobrou então «antropologia da cultura» numa «antropologia da natureza».

Recentemente, Philippe Descola entrou no espaço público mediático por razões estranhas à sua ciência: apoiou e envolveu-se activamente nalgumas acções do grupo ecologista que dá pelo nome de Les soulèvements de la Terre. Daí a entrar numa lista negra de «eco-terroristas» elaborada pelo Governo de Emmanuel Macron foi um curto passo que escandalizou muita gente do mundo científico e cultural.

levi strauss tristes tropiques

Claude Lévi-Strauss, Desenhos faciais Cadiuéus, 1936

 

ANTÓNIO GUERREIRO  A cátedra que ocupa actualmente no Collège de France foi antes a de Lévi-Strauss. Sente-se na posição de herdeiro?

PHILIPPE DESCOLA  Há os autoproclamados herdeiros e há os que são classificados como herdeiros. Não gostaria de dizer que sou um herdeiro de Lévi-Strauss. Fui seu aluno, inscrevo-me na tradição estruturalista e de facto prossigo a sua obra numa direcção muito particular, mas não como herdeiro.

AG  Essa sua inscrição na tradição estruturalista comporta no entanto enormes desvios…

PD  Não é um desvio de métodos. Lévi-Strauss utilizava a oposição entre natureza e cultura, sublinhando que se tratava de uma oposição metodológica e não ontológica. Pareceu-me que era possível e necessário não utilizar mais esses utensílios classificatórios para conceber outras maneiras de tematizar e organizar as continuidades e descontinuidades entre humanos e não-humanos. Desse ponto de vista, dou um passo ao lado, mas o método que utilizo é o estrutural, isto é, o método que consiste, mesmo na ordem dos fenómenos, em acentuar as diferenças e não as semelhanças.

"O que nós vemos como sendo uma singularidade positiva e uma herança da filosofia do Iluminismo, a diferença entre natureza e cultura, é na verdade algo que nos impede de ser universais porque somos os únicos a pensar dessa maneira."

paul bril

Paul Bril, Caça ao cervo, 1590 © Fotografia: Musée du Louvre, Paris

 

AG  Desfazer a oposição entre natureza e cultura é um dos seus grandes empreendimentos teóricos que não estão previstos na obra de Lévi-Strauss.

PD  Tem razão, mas as ferramentas que utilizo para o fazer foi Lévi-Strauss que as forjou. Com efeito, é uma grande mudança. O conceito de «natureza» é central na metafísica ocidental, porque permite qualificar por defeito todas as noções a que esse conceito se opõe: natureza e arte, natureza e história, natureza e religião, natureza e consciência, etc. Mas é em si mesmo impreciso e pode prestar-se a numerosas formas de alternância e de oposição relativamente a outros conceitos. Ele desempenha um papel fundamental na metafísica ocidental. E os modernos, os que acreditam na existência da natureza e na existência da cultura, foram os únicos a fazê-lo. O que nós vemos como sendo uma singularidade positiva e uma herança da filosofia do Iluminismo, a diferença entre natureza e cultura, é na verdade algo que nos impede de ser universais porque somos os únicos a pensar dessa maneira. A nossa cosmologia dualista é completamente singular na história da humanidade, ainda que ela tenha levado tempo a tomar a forma actual, com declinações sucessivas desde a filosofia grega, passando pelo cristianismo e pela revolução científica. A questão é esta: como é que esses conceitos oriundos de um percurso histórico singular que caracteriza uma cosmologia também ela muito singular podem ser utilizados como o fazemos nas ciências sociais e no quotidiano, na nossa maneira de pensar, para no fundo tratar os fenómenos de maneira universal? Chamo assim a atenção para o falso universalismo da modernidade.

AG  E como é que chegou à crítica desse dualismo?

PD  No Par-delà nature et culture usei como epígrafe da primeira parte um poema de Fernando Pessoa, do heterónimo Alberto Caeiro, que diz que há árvores, ervas, flores, montanhas, mas não há a natureza [Vi que não há Natureza, / Que Natureza não existe, / Que há montes, vales, planícies, / Que há árvores, flores, ervas, / Que há rios e pedras, / Mas que não há um todo a que isso pertença, / Que um conjunto real e verdadeiro / É uma doença das nossas ideias. // A Natureza é partes sem um todo / Isto é talvez o tal mistério de que falam]. Portanto, um poeta da dimensão de Pessoa já tinha chegado a essa conclusão. Eu não tenho essa capacidade poética, mas tenho a experiência etnográfica com o povo Achuar, na Amazónia, que me levou a perceber que o que eu designava como «natureza» e «sociedade» não tinha sentido porque não havia, por um lado, a natureza, e por outro a sociedade. Havia, pelo contrário, uma relação de continuidade muito profunda porque, para os Achuar, as plantas e os animais são dotados de um espírito, uma alma. De tal modo que são parceiros sociais e não uma natureza externa. Essa verificação, no terreno, levou-me a aprofundar a investigação, para além dos Achuar, na Amazónia e depois noutras regiões do mundo, fazendo antropologia comparativa, utilizando os textos dos meus colegas. E assim me apercebi de que a oposição entre natureza e sociedade era uma singularidade absoluta dos modernos. Como não tenho a clarividência de um poeta como Pessoa, foi um abalo etnográfico que me levou a pôr em causa a universalidade da oposição entre natureza e cultura.

AG  Esse «abalo» pode ser sentido na designação de uma «antropologia da natureza». Para a nossa maneira de pensar, este nome é um paradoxo…

PD  É paradoxal e é provocador. É um oxímoro…

farid belkahia

Farid Belkahia, La main [A mão], 1983

 

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