Furo
Maria Helena Vieira da Silva: Viagem a Itália
Sandra Brás dos Santos

Em 1928, tinha vinte anos. Havia saído de Portugal para estudar arte em Paris e, de França, foi a Itália numa viagem de estudo. Enquanto percorria os caminhos que a levaram a Milão, Verona, Pádua, Veneza, Bolonha, Florença, Pistoia, fazia, a lápis, esboços rápidos do que via, num caderno de apontamentos. Ao mesmo tempo, escrevia cartas à mãe para lhe contar, num tom cúmplice, as suas impressões, descobertas e sensações. Estes desenhos e estas cartas, que estabelecem entre si um diálogo íntimo e consonante, permaneceram inéditos. Pertenciam ao legado pessoal da artista, que foi depois integrado no acervo da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva. Uma selecção destas imagens e palavras é revelada pela Electra, constituindo um documento muito interessante dos anos de aprendizagem da grande pintora Maria Helena Vieira da Silva, que nasceu em Lisboa e viveu em Paris, e cuja obra magistral está representada nos mais importantes museus e colecções do mundo.

Caderno de viagem

O caderno

Este caderno faz parte da colecção da Fundação Arpad Szenes–Vieira da Silva identificado como «Carnet de Venise, 1er carnet». Apesar da indicação de ser um primeiro caderno, pressupondo a existência de outros, é o único registo visual conhecido da viagem de Vieira da Silva a Itália, em 1928. O caderno tem folhas lisas, picotadas para serem destacadas, capa de cartão e lombada de tecido. As folhas foram numeradas de 1 a 52, duas delas soltas, por Guy Weelen, que inventariou o espólio da artista e do marido, o pintor Arpad Szenes (Budapeste, 1897 – Paris, 1985). Contam-se 73 folhas pré-existentes, através dos vestígios das margens picotadas, algumas usadas como papel de carta. O caderno não consta do catálogo raisonné da artista, publicado em 1994.

A par do portefólio são publicados excertos das cartas enviadas por Vieira da Silva à mãe, Maria da Silva Graça (Lisboa, 1884 – Paris, 1964). O conjunto integra o acervo epistolar de Arpad Szenes e de Maria Helena Vieira da Silva, pertencendo ao arquivo da Fundação Arpad Szenes– Vieira da Silva por legado testamentário da artista.

A partir dos esboços do caderno e da correspondência, é possível recriar o itinerário da pintora em Itália. Os desenhos são simples instantâneos de viagem, sem propósito académico ou diarístico, alguns inacabados, outros rasurados, apontamentos do que lhe chamou a atenção ao longo da viagem: as fisionomias e o tipo físico dos viajantes, o casario, as pontes, os monumentos e as esculturas.

O caderno e as cartas são inéditos.

A viagem

Órfã de pai desde os cinco anos, Vieira da Silva teve uma infância e juventude atípicas. Não frequentou o ensino público, sendo educada em casa por professores de música e de desenho considerados no ambiente cultural e artístico lisboeta. Viveu num palacete, com jardim e uma grande biblioteca à qual tinha acesso livre, com uma família informada e habituada a viajar até às duas principais metrópoles europeias, Londres e Paris. Conviveu com um avô republicano, José Joaquim da Silva Graça, proprietário do jornal O Século, um dos maiores periódicos liberais do início do século XX. Também foram determinantes para o seu sucesso uma avó divorciada, culta e financeiramente independente, e uma mãe viúva e de espírito aberto, que a apoiavam sem questionar as suas escolhas. Maria Helena Vieira da Silva emancipou-se para todos os efeitos legais a 28 de Outubro de 1927, em Lisboa.

Em Janeiro de 1928, Vieira da Silva foi para Paris com a mãe. Cedo percebeu que em Portugal não havia espaço — político, económico e social — para seguir uma carreira como artista. Instalaram-se num hotel próximo das academias de ensino artístico, de entrada livre e sem programa pré-definido. Inscreveu-se na Grande Chaumière, em Escultura, indecisa ainda entre esta prática e a pintura, ao mesmo tempo que tinha liberdade total para circular pela cidade e visitar os museus e galerias. Tudo a interessava e a oferta cultural era imensa. A pintura começou a definir-se como uma via de pesquisa cada vez mais óbvia, e a vontade de conhecer a obra dos mestres italianos determinou a viagem a Itália nos meses de Agosto e Setembro de 1928. Foi fulcral para o sucesso desta viagem de formação o apoio e a confiança da mãe, que autorizou a jovem de vinte anos a viajar sozinha de comboio, em 3.ª classe, sem garantia de alojamento nem referências ou contactos. A comunicação fazia-se por posta-restante, com dias de intervalo entre o envio e a recepção da correspondência.

Vieira da Silva saiu de Paris no início de Agosto, presume-se que a partir da Gare de Lyon. Atravessou Dijon e cruzou a Suíça, onde passou pelo Lago Léman junto a Lausanne. Atravessou os Alpes italianos em direcção ao Lago Maggiore, e chegou a Milão em meados de Agosto. Nesta cidade, visitou a Catedral e o Convento de Santa Maria delle Grazie, para ver A última ceia (1494––1498), de Leonardo da Vinci. No dia seguinte, a 16 de Agosto, partiu para Verona, e depois para Pádua. Entre os locais que visitou — e que desenhou — estão a Cappella degli Scrovegni, decorada com frescos de Giotto que contam a história da Virgem e de Cristo (1303–1305), o monumento equestre a Gattamelata (1453) e o conjunto escultórico que compõe o altar de Sant’Antonio (1447–1450) na homónima igreja, da autoria de Donatello.

A 17 de Agosto chegou a Veneza, tendo assistido às festas da cidade e visitado os museus. Desenhou a Colonna, a estátua equestre em bronze do condottiere Bartolomeo Colleoni, criada por Andrea del Verrochio entre 1480 e 1488. A estátua foi colocada sobre um pedestal no campo de Santi Giovanni e Paolo em 1506, aí permanecendo até hoje. Verrocchio ter-se-á inspirado na escultura de Gattamelata, situada em Pádua, que Vieira já havia desenhado no seu caderno. A pintora referiu também o tempo passado na Praça de São Marcos, onde desenhou os cavalos de bronze da Basílica e o Leão de Veneza.

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