Primeira Pessoa
Svetlana Alpers: «Suspeito das palavras e das imagens.»
Afonso Dias Ramos

A escritora, professor e crítica norte-americana Svetlana Alpers, cujo trabalho pioneiro redefiniu o campo da história da arte nas últimas décadas, foi recentemente galardoada pela College Art Association of America com o Prémio Carreira em Escrita sobre Arte de 2023. Nesta conversa com a Electra, Svetlana Alpers reflecte acerca de uma vida a pensar e a escrever sobre o olhar, revisitando um percurso que vai desde os seus trabalhos iniciais sobre Tiepolo, Rembrandt ou Rubens, até ao seu interesse mais recente pelas imagens fotográficas e a escrita autobiográfica.

Svetlana Alpers

© Michael Baxandall

 

Existem poucos nomes tão eminentes e dominantes no pensamento e na escrita sobre arte quanto Svetlana Alpers, professora emérita de História da Arte na Universidade da Califórnia, Berkeley, e professora convidada na Universidade de Nova Iorque. Filha de Wassily Leontief, um Prémio Nobel da Economia, e da poetisa Estelle Marks, Svetlana Alpers licenciou-se no Radcliffe College, em 1957, e doutorou-se em História da Arte pela Universidade de Harvard em 1965. Foi das primeiras mulheres a obter uma cátedra em História da Arte em Berkeley, onde deu aulas de 1962 a 1994. Conciliando estudos técnicos, estéticos e iconográficos, os seus trabalhos pioneiros sobre arte flamenga e holandesa, Rembrandt, Velázquez, Tiepolo e Rubens permanecem como referências maiores. Svetlana Alpers foi uma das fundadoras da revista interdisciplinar Representations em 1983, e entre os seus vários livros contam-se The Art of Describing (1983), Rembrandt’s Enterprise (1988), Tiepolo and the Pictorial Intelligence (com Michael Baxandall, 1994), The Making of Rubens (1995), The Vexations of Art (2005), para além da sua anti-memória, Roof Life (2013). Afastou-se recentemente da pintura, desviando o seu foco para a fotografia, com uma aclamada monografia, Walker Evans: Starting from Scratch (2020). A conhecida historiadora da arte fala à Electra sobre uma vida inteira a observar arte, e a escrever sobre olhar para a arte como forma de conhecimento e modo de estar no mundo.

AFONSO DIAS RAMOS  Cresceu numa família de académicos. A arte foi um elemento decisivo na sua educação?

SVETLANA ALPERS  Não necessariamente. Tínhamos arte espalhada pela casa e os meus pais tinham amigos que eram artistas. Mark Rothko era um deles e passava as férias de Verão no mesmo sítio que nós, em Vermont. Por isso, conhecíamos os nossos artistas. Mas a arte não vinha em primeiro lugar. O que vinha em primeiro era a academia. Era a Universidade de Harvard.

ADR  Começou por estudar Literatura. O que a levou a enveredar pelas imagens?

SA  Em parte, acho que foi porque me fartei da interpretação. Aquilo que retirei da literatura foi um tipo de leitura próxima. É uma técnica portátil. Se souber lidar em proximidade com as palavras numa página, posso pegar nisso e aplicá-lo a outra coisa qualquer, que foi aquilo que fiz com as imagens. Interessava-me menos a interpretação de um texto do que, simplesmente, a atenção. Aprendi essa atenção, e depois transferi-me para outro campo. Mas não o fiz antes de acabar a licenciatura. Tive alguns «cursos», como lhes chamávamos em Harvard, sobre história da arte e sobre arte. Aí, sim, fiquei viciada.

ADR  Durante esse período em Harvard, esteve rodeada de nomes importantes da história da cultura. Não foi apenas o seu orientador, Ernst Gombrich, mas toda uma série de exilados alemães fugidos aos nazis. Como viveu esse ambiente intelectual?

SA  O meu pai era russo, mas não exilado. Veio para os EUA para desenvolver trabalho científico. Partiu de São Petersburgo para Berlim onde concluiu o doutoramento. Depois, ainda muito jovem, veio para os EUA e começou a dar aulas em Harvard. A Harvard em que eu cresci era a de muitas pessoas que tinham fugido do nazismo. Em parte por o meu pai ser russo, mas europeu, acabei por crescer num mundo muito europeu. Obviamente, a história da arte na América não era totalmente, mas em boa medida, povoada por exilados. Por isso, cresci nessa atmosfera, ou nessa bolha europeia, quando a história da arte ainda era europeia. Não era a história da arte contemporânea, mas sim uma história da arte histórica.

"Aquilo que retirei da literatura foi um tipo de leitura próxima. É uma técnica portátil."

ADR  Na altura, escreveu um famoso artigo sobre as descrições da arte de Vasari, que ia ao encontro das preocupações vigentes da disciplina. Mas depois rompe a hegemonia da tradição ítalo-humanista quando gravita para a arte holandesa. Como é que isso foi recebido?

SA  Primeiro foram os flamengos. Temos de separar as categorias, é o nacionalismo da história da arte… Mas comecei por trabalhar sobre Rubens e isso constituía já uma ruptura, embora ele fosse uma espécie de pan-europeu. Rubens foi um artista que viajou para Itália e que lá trabalhou durante oito anos, pintando num estilo que combinava o italiano com o do Norte. Desviei-me do caminho quando decidi escrever a minha dissertação sobre Rubens, e só depois é que transitei para a arte holandesa. Esse foi o segundo passo. Mas estava claramente a ir contra a corrente. Em Harvard, a preocupação central da História da Arte enquanto disciplina tinha por base a arte de Itália. E isso perdeu-se hoje. Acho que é pena, porque o modo como as pessoas pensavam era determinado pelo facto de a arte renascentista italiana estar no coração do estudo da história da arte. Eu aprendi com isso.

ADR  Como vê o estado actual desta disciplina, dado que continua a expandir-se para além desses limites geográficos?

SA  Existe um termo que me parece ser insustentável: «história da arte global». A história da arte já acabou e a história da arte global não faz sentido. Trata-se de outra modalidade de estudo. Essa definição, nos EUA, passou a ser «estudos visuais». É interessante que, na altura, tenha respondido a um questionário da revista October em que me perguntavam o que achava dos estudos visuais. Respondi que, quando usei esse termo, referia-me à arte holandesa, que era essencialmente visual e não textual. Não estava a dizer que o meu campo de trabalho eram os estudos visuais. Agora, o campo global resume-se a estudos visuais, não na acepção que lhe dei, mas no sentido que as pessoas dão quando dizem que tudo é visual. Podem ser vídeos, podem ser filmes, ou qualquer outra coisa. Os estudos visuais tornaram-se um termo muito abrangente.

"Vivemos numa era que se preocupa com a tolerância, mas ela própria é extremamente intolerante. A arte, em certo sentido, paira acima de tudo isso."

Walker Evans

Walker Evans, Restaurante na Bowery, Nova Iorque, 1933 © Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

Walker Evans

Walker Evans, Sem título, 1936  © Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

ADR  Curiosamente, o seu trabalho é muito invocado nos estudos visuais, não só a sua defesa da centralidade da arte entre disciplinas do conhecimento, mas sobretudo a sua observação sobre a proximidade entre pinturas e mapas. Não era a sua intenção?

SA  O que está feito, está feito. Eu não tinha projectos grandiosos para além daquilo. Se lhes serve, então as pessoas podem fazer o que quiserem com isso. Por exemplo, o que aconteceu com os mapas foi que passaram a estar associados a ideias de império. Mas o meu estudo da arte e dos mapas era formal. Estava a falar do modo como os pintores holandeses estruturavam e concebiam as suas imagens como mapas e não a dizer que os holandeses tinham partido para oprimir o resto do mundo. Não estava interessada em mapas num sentido político, mas sim formal, tendo em conta a sua aparência. Pegaram nisso e o estudo dos mapas tornou-se, em larga escala, embora não completamente, um estudo sobre o imperialismo. Montei um argumento sobre associar as duas categorias, pinturas e mapas, e as pessoas depois levaram isso por um caminho que não me interessava.

ADR  Mas isso foi produtivo de inúmeras maneiras diferentes. Além disso, ninguém acha que o trabalho de Simon Schama, por exemplo, é um estudo do imperialismo…

SA  Presumo que não.

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