Livro de Horas
Três semanas no Inverno, 2018
Ted Bonin

Neste diário que Ted Bonin, galerista em Nova Iorque, escreveu para a Electra, o tempo pessoal e o tempo do mundo agarram-se num interminável abraço. Nos dias registados, a presença é uma máquina de ausências. Aqui, o que se encontra vem com o que se perdeu: as obras de arte trazem rostos e os rostos trazem mortes. Por estas palavras que se entristecem e alegram, passam as perguntas que o tempo faz à arte e à vida. São dias atravessados pelos brilhos e pelos escuros de uma cidade onde tudo não cessa de acontecer. No final, há um nome que não se pronuncia — e o silêncio é a voz de uma ameaça.

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Paul Thek, Portrait of Peter Hujar, ca. 1963
© Fotografia: Fotografia: D. James Dee / Estate of George Paul Thek / Cortesia Alexander and Bonin, Nova Iorque

 

1 de Fevereiro

Peter Hujar: Speed of Life inaugura na Morgan Library & Museum. A natureza íntima dos retratos de Hujar nascia muitas vezes de uma relação ou atracção íntimas. O meu percurso até à obra de Peter fez-se através do trabalho de um dos seus antigos companheiros: Paul Thek. Comecei a trabalhar com Thek em 1988, ano que infelizmente viria a ser o último da sua vida. A relação entre Hujar e Thek começou em Miami no fim dos anos 50 e continuou, de diferentes maneiras, ao longo de décadas. Na sequência da morte de Paul, os seus amigos e conhecidos foram-me dando obras para vender; Thek deu e trocou a sua arte ao longo de toda a vida. Muitas vezes vim a saber que o amigo de Paul era também um amigo de Peter que também tinha uma obra de Hujar. As voltas do acaso, ou do destino, continuaram com um telefonema de Stephen Koch a dizer-me que um quadro de Peter, pintado por Paul, estava no loft de David Wojnarowicz e que o David queria que o fossem buscar, uma vez que iria deixar o apartamento em breve. O testamento de Hujar estipulava que as obras de arte que possuísse aquando da sua morte deveriam ser restituídas aos seus autores. Portrait of Peter Hujar viajou por entre os três artistas e no Inverno de 2018 parece-se com o anel central do tronco de uma árvore a atravessar um surto de crescimento.

Sou convidado para a inauguração na Morgan Library pela Elisabeth Sussman, cujas exposições de Eva Hesse, Diane Arbus, Gordon Matta-Clark e Paul Thek teriam sido acompanhadas por uma retrospectiva de Hujar — não fosse a visão das instituições nem sempre ser tão clara quanto a dos curadores. Encontramo-nos antes para um copo no Langham, um hotel a meio caminho entre a Morgan Library e o Empire State Building. Dois enormes e maravilhosos quadros de Alex Katz pairam atrás do balcão da recepção; recepcionistas e porteiro fazem eco das figuras pintadas por Alex. No andar de cima, o bar é luxuoso, caro, e o lugar ideal para tomar um copo antes de uma caminhada de um quarteirão até à Morgan. Quando chegamos, a inauguração já vai adiantada e a cada passo que damos encontramos um amigo: um amigo da Elisabeth, um amigo do Peter ou um amigo de Paul. Da exposição faz parte todo o leque temático de Hujar, ilustrando a sua inclinação para misturar fotografias dissemelhantes. O título, Speed of Life, evoca o enigma envolto na observação das imagens misteriosas de Hujar. Queremos agarrar-nos a cada imagem, apanhar a sua essência e sentir cada uma das suas tonalidades preciosas antes de continuarmos a avançar. A narrativa da sua vida funde-se com a da nossa e está tudo a acontecer demasiadamente depressa, sendo tudo maravilhosamente inteiro. As fotografias de Hujar dão corpo às margens descosidas da cultura alternativa do downtown e ninguém que tenha acompanhado o seu trabalho poderia imaginar que a sua derradeira apresentação seria numa biblioteca conhecida por expor manuscritos medievais e delicadas águas-fortes dos velhos mestres. Os arquivos de Hujar foram doados à Morgan e irão agora viver para todo o sempre com as cartas de Jane Austen e os diários de Henry David Thoreau.

8 de Fevereiro

Danh Vo inaugura hoje à noite no Guggenheim a exposição Take My Breath Away. A inauguração é precedida de um perfil muitíssimo revelador traçado por Calvin Tomkins na The New Yorker. Um dos talentos de Vo consiste no seu conhecimento profundo do trabalho de outros artistas e na sua sede de ora possuir ora partilhar essas obras. Em 2015 este aspecto do seu trabalho granjeou-lhe carta-branca na Punta della Dogana, em Veneza, para a exposição Slip of the Tongue, que incluiu vários artistas do núcleo íntimo de Vo: Julie Ault, Peter Hujar, Nancy Spero, Paul Thek, David Wojnarowicz e Martin Wong. À excepção de Ault, amiga próxima e colaboradora de Vo, já nenhum deles está vivo mas senti-os todos presentes no seu mundo. A inauguração no Guggenheim acontece uma semana depois da inauguração na Morgan e o triste sonido de Portraits in Life and Death (1976) de Hujar ressoa-me na parte de trás da cabeça à medida que entro na exposição.

A exposição é tão bela quanto desconcertante, sobretudo na inauguração de hoje à noite; está também à pinha, enchendo toda a rotunda do Guggenheim. Apanho o minúsculo elevador meio oval até ao topo e vou vendo a exposição de Vo à medida que desço pela espiral de Frank Lloyd Wright. Encantadoras caixas de cartão cujos logótipos (Budweiser, Coca-Cola, Corona, etc.) foram revestidos com folha de ouro vão surgindo por entre uma série de obras esteticamente desafiantes e «abjectas», tais como a estrutura de uma cadeira despida até ao osso, outrora pertencente a Robert McNamara e comprada por Vo num leilão. Depois de duas rampas e, à medida que me aproximo de dois «quadros» em folha de ouro de We the People, o vigilante que ali está de pé diz: «Os quadrinhos da Estátua da Liberdade estão aqui». Chego cá abaixo e fico contente por ver caras conhecidas. A morte recente de Tim Rollins é um pensamento inevitável à medida que nos vamos cumprimentando, relembrando-o primeiro e pondo-o depois de parte para nos podermos focar no triunfo de Vo. Gostava que a inauguração fosse mais pequena, mas está imensa gente, uma autêntica roda-viva, e não fico muito tempo.

9 de Fevereiro

Uma apresentação do novo livro de Julie Ault, In Part, uma selecção de textos de 1980 até hoje, tem lugar na Galerie Buchholz, paralelamente a uma exposição colectiva ligada ao livro. A galeria nasceu em Colónia e resulta da colaboração de Daniel Buchholz e Christopher Müller. É conhecida pelas suas exposições de um cuidado invulgar — como, por exemplo, a exposição em torno de Raymond Roussel, The President of the Republic of Dreams — e pela sua localização única, a meio quarteirão da porta principal do Metropolitan Museum of Art. Os interesses de Ault são espantosamente variados e o seu trabalho enquanto artista exprime-se sobretudo através de exposições e edições. Membro fundador do Group Material, o trabalho de Ault examina as sobreposições entre política e estética.

A única imagem do livro é a lindíssima fotografia da capa, da autoria de Heinz Peter Knes — um emaranhado de ramos e o núcleo de um botão de flor. O emaranhado ilustra a ideia de Ault de que, por muito prolongada e extensiva que seja a exploração de um tema ou o envolvimento com um arquivo, o texto que daí resulta nunca será uma representação fiel. A introdução a In Part é escrita pela estimada crítica e curadora Lucy Lippard, cujos interesses, consciência política e espírito colaborativo constituem um paralelo histórico para Ault. Six Years: The dematerialization of the art object from 1966 to 1972, de Lippard, é um texto-chave para Ault e sente-se, nesta nova edição, que o trabalho artístico de Lippard e este seu documento essencial são espelhados e levados mais longe. In Part representa de forma bela e humilde quase 40 anos de escrita, começando com uma afirmação do Group Material e terminando com um texto sobre David Wojnarowicz a ser publicado em breve. Durante a apresentação do livro, com Moira Davey, Ault, com sentido de humor, resume do seguinte modo o aspecto de In Part: «Se o visses numa livraria, ias pensar: “Meu Deus, será que ela morreu?”». Os convidados na apresentação de hoje incluem vários dos artistas e colaboradores que têm acompanhado Ault, embora, infelizmente, Tim Rollins tenha morrido repentinamente já depois de o livro ter sido publicado. Durante mais de trinta anos, Rollins deu novo significado às palavras colaboração e educação através do projecto K.O.S. (Kids of Survival) no sul do Bronx. Diz-se que, no primeiro dia de aulas, Rollins terá dito aos seus alunos: «Hoje vamos fazer arte, mas também vamos fazer história».

Os serviços de transporte de passageiros estão, desde há alguns anos, em crescimento mas o Via tem-se distinguido dos outros por usar um software que calcula tanto os pontos de recolha como os pontos de entrega ao «reunir» passageiros. Já por três vezes estive num carro com um amigo e colega. Moramos na mesma parte da cidade, mas só nos vemos em inaugurações e feiras de arte. Agora somos vizinhos que podem falar do tempo ou das últimas notícias nestas nossas viagens matinais. Não costumo ir ao Upper East Side, mas por acaso tenho agora um amigo do Via que partilha o meu percurso através do Central Park. A primeira vez que partilhámos um carro foi no dia da Women’s March, no aniversário da tomada de posse do Trump. Nascido do protesto e da solidariedade, este encontro conjuga uma manifestação do poder das mulheres com o aniversário de um acontecimento chocante. Felizmente, a nossa segunda travessia de carro pelo Central Park foi depois da festa do livro da Julie. Estas viagens partilhadas não se planeiam — resultam de hábitos comuns e do acaso.

13 de Fevereiro

Os retratos por Kehinde Wiley e Amy Sherald de Barack e Michelle Obama são desvelados na National Portrait Gallery, em Washington, D.C. A escolha de artistas contemporâneos, ambos conhecidos pelos seus retratos mas não por encomendas, é uma escolha tão nova e moderna quanto uma família presidencial o permite. Os Obama viveram com arte contemporânea durante os seus oito anos em Camelot II e estão prestes a ser louvados por impregnarem a National Portrait Gallery de novo talento e atitude.

Wiley começou por se destacar pelos seus retratos hiper-masculinizados de negros em poses provocadoras lado a lado com os símbolos da aristocracia (cavalos puro-sangue, armaduras reais), sempre contra padrões de fundo densos e coloridos. Contudo, as qualidades mais inebriantes do trabalho de Wiley continuam por revelar e pergunto-me quais serão os elementos da cuidadosa selecção de Wiley que prendem a atenção de Obama quando este observa o seu trabalho.

O retrato de Amy Sherald foi imediatamente criticado por não se parecer com Michelle Obama, tendo-se chegado a afirmar que a artista tinha pintado «outra pessoa». Sherald pinta a pele dos seus retratados num tom cinzento; o resultado desta grisalha é que eles são, antes de tudo, humanos. A antiga primeira-dama dos EUA, figura venerada e de quem se sente falta, surge como uma princesa de sonhos passados e, neste momento, como alguém por quem o nosso futuro anseia.

14 de Fevereiro

Apesar de nunca nos termos conhecido, já me cruzei duas vezes com Alex Da Corte pelo seu interesse em dois artistas cujos espólios há muito represento. A primeira vez foi quando criou um «monumento em memória» de Paul Thek para a exposição First Among Equals, no ICA de Philadelphia, em 2012. Mais recentemente, para Pledges of Allegiance, na Creative Time, Da Corte criou uma bandeira inspirada num desenho de Ree Morton para o seu projecto de arte pública de 1975, Something in the Wind. Para esse trabalho, Morton criou bandeiras para cerca de 100 amigos, cada uma delas bordada com o seu primeiro nome e um símbolo. Após uma instalação de uma semana nos mastros de um navio no porto de South Street, Morton foi colocando bandeiras em várias exposições ou eventos, enquanto também as dava aos amigos nomeados nas bandeiras. Quarenta anos mais tarde, Friends (for Ree) é instalada em dezasseis localizações em diferentes pontos dos Estados Unidos.

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Alex Da Corte, Friends (for Ree), 2017
© Fotografia: Nicholas Prakas / Cortesia Creative Time

 

17 de Fevereiro

C-A-T Spells Murder, uma exposição do trabalho recente de Da Corte, inaugura na Karma Gallery da East 2nd Street. Está a nevar imenso, o que torna a entrada no espaço da galeria, coberta de alcatifa cor-de-laranja, ainda mais surreal. «Montras» iluminadas a néon, que poderiam facilmente ser encontradas no mesmo quarteirão da cidade, estão penduradas nas paredes, conduzindo a uma projecção de vídeo com uma mulher cuja cara é velada por um triângulo de bolas de bilhar, cada uma delas decorada com um ícone ambíguo. Um livro de histórias de terror acompanha a exposição. Muito a descobrir.

20 de Fevereiro

Regresso ao Upper East Side para uma espreitadela matinal a Take My Breath Away. O museu abre às 10h mas cheguei tão cedo que estou à espera que sejam 9h30 para poder entrar na livraria. Por um dia, o Inverno está a acalmar, com a previsão da temperatura a apontar para os 15 oC. Não está propriamente quente — está fresco e ventoso. Ao longo do último ano tenho acordado todos os dias com a esperança de que um vento forte sopre para longe o pesadelo da nossa actual administração e, sentado à porta do Guggenheim, isso parece-me por momentos uma possibilidade. Hoje, a luz natural cumpre o seu papel ao preencher as rampas e as curvas desta instalação adicional. A esta hora da manhã, o museu tem apenas uma dúzia de visitantes. Archive of Dr. Joseph M. Carrier 1962–1973 (2010) parece particularmente forte e, tal como muitas obras de Vo, é uma apresentação de trabalhos já existentes, sendo que aqui a sensação do artista como pessoa é mais evidente. A obra alterna com aparente timidez entre representante e representado e está magnificamente disposta em pequenas caixas iluminadas embutidas nas paredes do Guggenheim. O ritmo mais calmo de uma visita pela manhã abre espaço à atenção que a exposição de Vo exige. Panos de veludo vindos de um armazém do Vaticano, esbatidos nas zonas não cobertas pelas figuras sagradas que em tempos de lá pendiam, vasos Talavera representando atrocidades mas servindo de suporte a folhagem nova, castiçais de cristal deslocados e desconstruídos… todos cantam.

Depois do Guggenheim, regresso à Buchholz, uma vez que a multidão da festa de apresentação de Ault não me permitiu ver a exposição, cuja maior recompensa é o quadro de quatro metros de largura de David Wojnarowicz, Earth, Wind, Fire, and Water, raramente visto desde que foi pintado, em 1986. É uma das obras maiores e mais bem conseguidas de Wojnarowicz e é maravilhoso vê-la em tão boa forma passados trinta anos. O Whitney vai preparar a exposição History Keeps Me Awake at Night em Julho deste ano, trazendo para um lugar mais proeminente mais um membro da nossa sociedade perdida. A lista está a crescer: Thek, Hujar, Wong, Wojnarowicz. O que terá o ano de 2018 para trazer tanta atenção a estes artistas, atribuindo-lhes um estatuto anteriormente negado?

Há mais de dez anos que recebo o New York Times por e-mail. Não sei bem como começou mas deve ter sido um estudo de mercado ou de implementação de assinaturas digitais. De início senti falta do jornal em papel, pelas suas qualidades tácteis e abrangência, mas agora prefiro a brevidade da síntese à cadeia infindável de tristes horrores que emanam da capital da nossa nação. Hoje, mais de metade das notícias dizem respeito a uma pessoa cujo nome juro nunca mais pronunciar.

*Tradução de Moira Difelice