A 25 de Agosto de 1979, escreve Roland Barthes: «[…] retomo aliviado as Mémoires d’outre tombe, o verdadeiro livro. Sempre o mesmo pensamento: e se os Modernos estivessem enganados? Se não tivessem talento?».1
Barthes escreveu estas frases, mas não as publicou. Morto pouco mais de seis meses depois, a 26 de Março de 1980, não teve tempo de fazer alguma coisa com elas. De fazer o quê? Tentaremos compreendê-lo um pouco mais à frente. Apesar disso, chegaram até nós, tendo sido incluídas numa recolha póstuma elaborada pelo seu amigo e editor François Wahl (1925–2014), publicada com o título Incidents em 1987, ou seja, sete anos depois da sua morte.
Trata-se de um estranho livro constituído por dois textos muito breves, um sobre «La lumière du Sud-Ouest», o outro, intitulado «Au Palace ce soir», sobre uma discoteca, os quais Barthes escreveu para dois periódicos, o primeiro texto para o diário comunista L’Humanité, o segundo para uma revista de luxo dedicada à moda, Vogue Hommes. Incluía ainda um inédito, uma sucessão de fragmentos muito pessoais sobre Marrocos, «Incidents», que dava assim o título ao conjunto. Tudo é singular neste curioso objecto, desde a justaposição de dois textos íntimos, «Soirées de Paris» e o referente a Marrocos, e de dois textos decididamente «êxtimos», o sobre o Sudoeste e o dedicado ao Le Palace, até aos próprios locais de publicação dos dois artigos, num caso o L’Humanité, o jornal dos proletários, no outro a Vogue Hommes, a revista do capitalismo e do consumo hedonista. Pela minha parte, vejo nesta dupla improvável e inesperada os primeiros sinais do pós-modernismo, da corrosão das grandes unidades ideológicas, sociais, económicas e culturais que começa a manifestar-se na Europa neste início dos anos 1980, fim da modernidade.
Os leitores de Barthes ficaram chocados. Tiveram a impressão que François Wahl utilizava esses artigos anódinos (os do L’Humanité e da Vogue Hommes) para orquestrar uma dupla traição ao seu amigo Barthes. A primeira traição relacionava-se com os seus hábitos, uma vez que, tanto nas «Soirées de Paris» como no texto sobre Marrocos, se podiam ler confidências, por vezes muito cruas, sobre a sexualidade gay de Barthes — uma espécie de outing, ou sobretudo de «coming out contra a sua própria vontade», uma vez que Barthes nunca se tinha pronunciado, pelo menos de forma explícita, sobre aquilo a que hoje chamaríamos a sua «orientação sexual». A segunda traição aparentava uma gravidade semelhante, dado que Barthes, em várias passagens das «Soirées de Paris», parecia condenar a «modernidade», os «modernos», todo esse movimento de avant-garde do qual tinha podido passar por um dos chefes de fila, um dos comentadores ou um dos companheiros de percurso. Traição mais pérfida, uma vez que não apenas Barthes atacava os modernos, que nesse começo do fim do século se encontravam já numa situação complicada, como podia surgir como uma espécie de hipócrita ou de Tartufo da modernidade.
Este dia, ou antes esta soirée — dado que todas as páginas deste «diário», com excepção da última, são relativas a soirées —, no termo da qual Barthes concluiu com severidade a propósito dos modernos «Se não tivessem talento?», toca-me e diz-me directamente respeito, uma vez que me refere no seu início: «Simplesmente, no Flore, com Éric M., onde pedimos salsichas, ovos quentes e um copo de Bordeaux.»2
Barthes relata a soirée que passámos os dois num local muito simbólico da vida intelectual, o Flore, onde Sartre, segundo parece, escreveu L’Être et le Néant, onde Barthes ia muitas vezes, e o qual se tornou entretanto um café bastante vulgar, completamente repleto de turistas. Uma bela mise en abyme se desenha nesse texto, uma vez que, depois de referir que estivemos a falar sobre o diário íntimo, Barthes diz que me dedica o texto que acabou de escrever para a Tel Quel, «Délibération», o qual precisamente aborda a questão do diário, sendo o todo reunido num diário propriamente dito, «Soirées de Paris»…
De regresso a casa, Barthes, como todas as noites, lê um pouco de alguns livros antes de adormecer, «modernos» portanto, e, depois de os ter fechado, as Mémoires d’outre-tombe, «o verdadeiro livro».
Talvez seja necessário referir os dois livros que Barthes abriu, e depois fechou, antes de pegar naquele que relê sem cessar, o de Chateaubriand. O primeiro é designado pelo nome do autor (Navarre), o segundo apenas pelo título, M/S. Tratam-se de modernos, no sentido histórico ou estético? De modo algum. No caso do primeiro livro, trata-se de Yves Navarre (1940–1994), escritor absolutamente tradicional em termos de escrita, cuja única audácia foi ter redigido romances gay. Aquele a que Barthes se refere intitula-se Le Temps voulu e narra uma história de amor bastante convencional entre um professor de letras e um homem muito jovem. Mais misterioso é o outro livro, M/S, mencionado sem o nome do autor. É hoje extremamente difícil, mesmo praticamente impossível, encontrar a mais pequena informação na Internet sobre esse livro. Não se consegue encontrar o nome do seu autor. Trata-se de Christian Pierrejouan. O seu romance é a narrativa de uma relação sadomasoquista homossexual muito radical. Barthes refere-se-lhe uma segunda vez na entrada de 5 de Setembro de 1979, sempre sem mencionar o nome do autor, a propósito de François Wahl, que foi o editor entusiasta do livro (ao ponto de um boato pretender que o teria escrito, o que não era o caso). Mas também aí, apesar do carácter extremo das práticas sexuais relatadas, não se trata de forma alguma de uma obra moderna, de um «texto», de uma escrita textualizante, modernista. Recordo-me que o livro, que ocupava o lugar de honra na mesa de cabeceira do quarto de Barthes, tinha sido forrado com papel negro muito opaco, de modo a que a empregada doméstica não pudesse ver a contracapa da obra, que apresentava um resumo da sua intriga.
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