Editorial
Uma viagem
José Manuel dos Santos e António Soares

Dar, ao tempo, os números em que ele se conta e comemora é procurar uma continuidade que junta o futuro ao passado nesse lugar, que nos é tão habitual e tão estranho, chamado presente. É também praticar uma aproximação àquilo a que os antropólogos chamam um domínio simbólico ou, porventura até, uma ordem mágica. Nessa proximidade, tocamos aquela distância onde os surrealistas viram a vida e a liberdade coincidirem no mito que eterniza o instante.

koudelka

Josef Koudelka
No local de filmagem de O Olhar de Ulisses, realizado por Theo Angelopoulos.
Região do delta do Danúbio, Roménia, 1994

 

Ao publicar a sua 16.ª edição, a Electra faz quatro anos de existência. Neste tempo que passa, tem sido nossa e dos nossos leitores uma viagem em que as chegadas são sempre novas partidas. Não escolhemos por acaso a palavra «viagem» para falar do que a Electra tem sido. Pensamos que viagem diz melhor do que outras palavras a identidade de uma revista que, tendo como seu propósito lançar um olhar atento sobre aquilo a que chamamos contemporâneo, se faz na intersecção móvel de muitas cronologias, de muitas geografias e mesmo de algumas geologias, procurando o que está no subsolo do que acontece e do que não acontece, do que vai ficando e do que vai passando. Nestes anos que começaram em 2018, as mudanças e as acelerações não pararam de jogar umas com as outras um jogo imprevisível e imparável. Mas, de repente, a pandemia da covid-19 inscreveu o seu nome em maiúsculas sempre crescentes no texto que aparece nos ecrãs onde o nosso tempo se mostra e se diz.

Tudo então se fez ao contrário, excepto aquilo que continua a fazer-se da mesma maneira, na obediência aos poderes e aos saberes que determinam as tendências, os movimentos, os sistemas, os dispositivos, as percepções e as práticas que levam o mundo a ser o que tem sido.

Entre esses poderes e esses saberes, o da tecnologia continuou a expandir o seu império pelas terras, os mares e os céus, e estabeleceu a sua soberania sobre os corpos, os espíritos e as almas (para usarmos uma trilogia de que Fernando Pessoa tanto gostava). Não há hoje mundo objectivo ou eu subjectivo que não tenha dado à tecnologia o lugar de uma nova natureza. A tecnologia conheceu uma universalização ontológica. Não há nada que se faça sem ela e, nesse tudo que se faz com ela, ela tudo transforma e tudo se transforma nela.

Para alguns, este avanço avassalador e incessante abriu à humanidade caminhos faustosos e promissores, nem sequer antes pressentidos ou imaginados, e deu à vida possibilidades jamais premeditadas. Pensam esses que é como se o mundo houvesse recomeçado e tivéssemos regressado a um paraíso onde a árvore da vida que está no centro do jardim é a do conhecimento numérico e digital. Nesse paraíso, a serpente, em vez de ser um animal tentador, é uma criatura tentada por aquilo mesmo que oferece como tentação.

Neste cosmos tecnológico, nada já é igual ao que foi e, com a Inteligência Artificial e a robotização, ainda mal somos capazes de adivinhar o que aí vem. O mundo tornou-se o sítio material e imaterial de uma mudança que tudo muda, mudando-se constantemente a si mesma, numa aceleração vertiginosa e permanente. Nesse mundo, só temos lugar se soubermos pôr o coração do presente a bater em uníssono com a pulsação do futuro. Para isso, as palavras que agora se tornaram mais valiosas, indispensáveis e repetidas são inovar, prever, antecipar, transformar, reinventar, recriar, reestruturar, refazer, reformular, refundar, recomeçar, reiniciar.

Para outros, porém, neste pouco «admirável mundo novo», as antigas e tão fascinantes técnicas de telepatia foram-se mostrando desnecessárias, ultrapassadas e substituíveis por tecnologias uniformizadoras e niveladoras que geram um automatismo mecanizado e digitalizado que faz do lugar-comum a senha de reconhecimento do nosso tempo. Não precisamos de tentar ler telepaticamente o pensamento do outro, porque ele é igual ao nosso. E não precisamos de criar ou conhecer o nosso próprio pensamento, porque ele é igual ao do outro.

Assim, e embora muito se procure, louve e invoque o que é «diferente», o unanimismo, a homogeneização, a massificação passaram a ser compulsões psicológicas, deveres sociais, obrigações morais, prioridades existenciais e condições do sucesso. Segundo os que isso lamentam, não aconteceu, senão parcial e temporariamente, a profetizada, no século XIX, colectivização dos meios de produção, mas está a acontecer, no século XXI, a colectivização dos meios de criação, transformados em meios de recriação, de recreação, de reprodução, de repetição e de entretenimento.

Em contraste com os apóstolos optimistas dos «amanhãs que cantam» da revolução tecnológica digital, estes nostálgicos dos «ontens que cantaram» da estabilidade analógica são os profetas pessimistas do declínio irreversível e da desumanização decadente que vêem, da política à sociedade, da economia à cultura, da educação à ciência, tudo ser assaltado e invadido por aquilo a que nem sequer chamam pensamento único, pois ao que isso é e representa não podem nem querem dar o nome de pensamento.

Tendo esses apóstolos e esses profetas a contemplá-lo das margens, o rio de Heraclito não para de correr e de acelerar. Mais do que em qualquer outra, é nestas alturas que é preciso não desistir de pensar. É necessário pensar sem fazer desse desejo e da vontade que o cumpre uma prevalência aristocrática, um privilégio espiritual ou uma altivez intelectual, mas é também essencial não confundir pensamento com os simulacros simplistas, pueris e grosseiramente utilitários e mercantis que o falseiam e que apenas servem para disfarçar a sua ausência e a sua falta.

Olhar o tempo com a distância que o deixa ver é, desde o seu início, o propósito programático e o projecto editorial da Electra. As palavras e as imagens que lhe dão forma e conteúdo trazem até nós as ideias e as ideologias, as tendências e as tentações, as sensibilidades e as visões que configuram o nosso mundo e o tempo em que ele se faz e se desfaz todos os dias.

Pensar criticamente, criando hipóteses e argumentos, é tentar construir, com o que pensamos, um inteligível que é inseparável de um sensível. Pensar com os que pensam é prosseguir um caminho que não sabemos nunca aonde vai dar. Como lembrámos no nosso primeiro número, citando Michel Foucault: «Momentos há na vida em que a questão de saber se é possível pensar de outro modo daquele que se pensa e perceber de outro modo daquele que se vê é indispensável para continuarmos a observar ou a reflectir.»

A Electra faz, desde há quatro anos, uma viagem que, em cada edição, aumenta, como na odisseia de Ulisses, o conhecimento do mundo e a experiência da travessia. O nosso mapa é desenhado por essa viagem feita com os leitores, a olhar os horizontes onde aparecem os sinais do futuro e do passado, da descoberta e do reconhecimento. É nesses sinais que procuramos um sentido, mesmo quando esse sentido não aparece — e a ausência desse sentido também tem um sentido e um significado.

Analisar, perspectivar, relacionar, investigar, interpretar, decifrar, avaliar, perscrutar, criar — são verbos que declinam formas de pensamento activo, crítico, criativo e contemplativo. Em cada número da revista, tratamos assuntos e temas que, de tão presentes na nossa vida, não raro se tornam invisíveis ou «naturais». Num caso e noutro, não suscitam perguntas. Para pensar esses assuntos e temas, procurando identificar e interrogar os seus antecedentes e consequentes, é muitas vezes fundamental mudar de escala e de olhar. Por isso, partimos frequentemente da parte para o todo, do perto para o longe, do dentro para o fora, do singular para o plural, da regra para a excepção, do território para a fronteira, do idêntico para o diferente.

Os antropólogos nunca desistem de nos dar informações para podermos compreender melhor de onde vem e como é o que nos acontece e o que nós fazemos acontecer. Com o seu poder de sintetizar as análises, Claude Lévi-Strauss afirmou que «a humanidade está constantemente perante dois processos contraditórios, em que um tende a instaurar a unificação, enquanto o outro visa manter ou restabelecer a diversificação» (Raça e História).

Sucessora de Claude Lévi-Strauss no Collège de France e no Laboratório de Antropologia Social, Françoise Héritier pensou o idêntico e o diferente a partir de pesquisas e trabalhos de campo de uma grande originalidade e revelação.

No livro que tem por título L’identique et le différent, diz esta antropóloga:

A oposição entre o idêntico e o diferente pareceu-me rapidamente ser uma oposição conceptual absolutamente maior […]. Ela está na base das categorias mentais que opõem os valores sob a forma de binómios, em todas as sociedades humanas. […] Ia dar esses exemplos [o quente / o frio, o alto / o baixo], mas há muitos outros: o puro / o impuro, o secreto / o dizível, o são / o malsão, o vazio / o cheio, o seco / o húmido, o único / o múltiplo, o concreto / o abstracto, etc. Não há, de que tenha conhecimento, sociedade em que o pensamento e a língua prescindam de categorias dualistas. Algumas podem servir-se delas de maneira mais complicada. Mas, mesmo nesse caso, como na China, o yin e o yang opõem e misturam o idêntico e o diferente. Assim, o idêntico e o diferente são, aos meus olhos, as categorias originais que estão na base dessas categorias mentais que nos servem para pensar. E porque estão elas na base? Porque são fundadas por qualquer coisa de irredutível que é o funcionamento universal do espírito. Imaginemos um ser humano, uma criança, postos em presença de qualquer coisa totalmente desconhecida; a única maneira de dominar esse desconhecido é tentar relacioná-lo por pormenores de forma, de cor, de processo ao que já conhece. É uma forma racional de proceder que é própria de toda a humanidade.

Os seres humanos vivem entre a procura do seu Eu e a busca do seu Outro. Atraídos pelo que lhes dá identidade, fascina-os o que lhes concede a diferença. Assegurados pela proximidade que os acolhe e reconhece, desejam a distância que os desafia, estranha e surpreende. Portadores da imagem do que julgam ser, correm ao encontro do espelho que lhes permite a imagem do que querem ou sonham ser, sem afinal nunca saberem bem o que são. Como se dizia na poesia clássica, os que a si mesmos se chamam humanos precisam de raízes e de asas: raízes que os fixem e firmem; asas que os movam e levem. Sob o sol ameaçador e irresistível, ouvimos o aviso cauteloso de Dédalo para não subir demasiado, mas lançamo-nos no voo imprudente e arrebatado de Ícaro. Vivemos entre a permanência de Parménides e o devir de Heraclito. As doenças da identidade excessiva e as doenças da falta dela equivalem-se nas suas consequências e nos seus perigos.

Símbolo das perguntas que a identidade nos faz é o Navio de Teseu e o que, prosseguindo os debates da filosofia grega, sobre ele disseram Hobbes, Locke e Leibniz, que estabeleceu uma lei para a identidade que é feita de mudança.

De Descartes a Nietzsche, do sujeito uno e fundador ao sujeito decomposto e multiplicado, a identidade foi construindo e desconstruindo a sua luz e a sua sombra. Para Foucault, as identidades podem ser formas falsas de fixação e de reificação. Tal como nos processos de subjectivação, se e quando há processos identitários, as identidades não são mais do que estabilidades momentâneas e provisórias, pois nunca são revelações de uma coisa que já existe, mas criações renovadas do que se quer fazer existir.

Com o Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, a questão da identidade inaugurou o romance moderno e nunca mais cessou de ser tomada e retomada. Cheia de duplos, de espelhos, de disfarces, de máscaras, de simulações, de simulacros, de fantasmas, de coincidências, de conflitos, a literatura e a arte, em todas as suas disciplinas, podem ser vistas como uma alta tensão (no sentido psicológico e sociológico, mas também eléctrico) entre criações, afirmações, interrogações, negações, fugas, reversões e perversões da identidade.

O início do século XX fez do tema da crise um dos seus bastões: crise da identidade, do sujeito, da verdade, da linguagem, da arte, da burguesia (Thomas Mann e, antes dele, a catástrofe inevitável de Marx e o ódio ao burguês de Flaubert), do espírito (Paul Valéry). E, já vinda do século XIX («Je est un autre», Rimbaud), o alvorecer do século das duas guerras mundiais tornou a crise da identidade, individual ou colectiva, um motor do seu andamento sobressaltado.

Fernando Pessoa deu a esse fantasma o seu corpo mais real, múltiplo e irrequieto: «Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? / Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! / E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!» («Tabacaria»); «Ah, poder ser tu, sendo eu!» («Ela canta, pobre ceifeira»).

Para T. S. Eliot, a crise da identidade é a crise do homem moderno (Os Homens Ocos). Pirandello e Proust, Henry James e Virginia Woolf, Franz Kafka e James Joyce, Gabriel de Tarde e Spengler, Freud e Max Weber foram seus sagazes observadores e descobriram algumas das caligrafias secretas ou invisíveis com que o texto dessa crise se escreve.

O fio da crise da identidade andou pelo labirinto de todo o século XX até chegar à pós-modernidade que com ele desenhou no lençol branco do tempo o seu rosto móvel ou mesmo ausente. De tantas obras que dessa crise fizeram motivo, a de Samuel Beckett, de Jorge Luis Borges ou de Milan Kundera (A Identidade) são exemplos.

Num livro provocatório, publicado em 1987, intitulado A Derrota do Pensamento, Alain Finkielkraut põe em evidência duas concepções de nação que se foram enfrentando ao longo do século XIX: a ideia electiva e a ideia étnica. A primeira vê a nação como uma associação voluntária de indivíduos livres e a sua origem está no Iluminismo que inspirou a Revolução Francesa. A segunda, que procede dos românticos alemães e também se reconhece em Edmund Burke e nos contra-revolucionários franceses, invoca o Volksgeist, o génio nacional, de que os indivíduos são emanações. Para o autor deste livro-manifesto, sempre que a pulsão étnica e identitária se impôs à teoria electiva e contratual, os nacionalismos venceram e a Europa soçobrou num afundamento agónico. A partir desta apreciação, Finkielkraut faz uma análise muito crítica da cultura contemporânea e, segundo acusa, do seu tribalismo hedonista, consumista, etnicista, relativista e anti-universalista.

Destas e doutras matérias trata o dossier do número 16 da Electra, dedicado à(s) Identidade(s). Nele, multiplicam-se, ora coincidentes, ora complementares, ora divergentes, diferentes pontos de vista sobre estas questões que fazem mover o nosso tempo, dando-lhe militâncias aguerridas, exclamações indignadas, ocasiões de luta, oportunidades de afirmação, impulsos de exclusão, ímpetos de anulação.

Das identidades de género às étnicas, das nacionais às culturais, estão aqui presentes as perguntas que todos os dias fazemos com júbilo ou inquietude. Essas perguntas são mais do que perguntas, pois são interpelações e modos de acção.

Uma história da História poderia ser uma história das identidades e das alteridades, que se reconhecem, desconhecem, suspeitam, aliam, combatem, matam, numa geometria variável de rotas e numa constelação mutável de destinos.

A História faz-se de paradoxos inesperados e de ironias trágicas. No nosso tempo de proximidade instantânea, de comunicação global, de equilíbrio instável e de guerras inconcebíveis reapareceu a tensão entre o idêntico e o diferente, entre o nós e os outros, entre o universalismo e os particularismos, indo não raro buscar às formas do passado a sua referência e a sua ampliação.

Por todo o lado, contra o ideal de l’uomo universale de Leonardo da Vinci-Vitrúvio, aparecem os símbolos ameaçadores e guerreiros das identidades particulares que se afirmam por hostilidade, ódio e pelo não reconhecimento retribuído das diferenças, consideradas unilateralmente e agressivamente sem reciprocidade. Cada grupo identitário (etnia, classe, género, religião, nação, região, partido, clube, corporação) quer obrigar o mundo a submeter-se aos seus códigos e aos seus interesses, quando não aos seus dogmas, às suas mitologias e aos seus fantasmas. Em nome de uma liberdade que se afirma e se defende, quer-se que a liberdade do outro se submeta à nossa, numa espécie de protectorado ético ou de feudalismo hierárquico de valores.

Quando o segundo milénio se aproximava do fim, Eduardo Lourenço, que tanto psicanalisou as identidades e os seus mitos construtores, escreveu:

O nosso mundo, na aurora de um novo milénio, parece-se com um desses grandes aeroportos onde a humanidade se cruza sem se ver. Esta imagem, simbolizando a tão falada mundialização, sugere ao mesmo tempo a dissolução, num gigantesco maëlstrom, colorido como um carnaval, das identidades históricas e culturais que durante séculos caracterizaram povos e nações. Mas a esta primeira visão de proximidade e quase fusão num banho identitário unido por música de fundo, estilo karaoke e flashes em inglês, sobrepõe-se o sentimento não menos forte de que essa festa de unanimismo planetário é também exibição, exaltante ou melancólica, de irredutíveis identidades. A perspectiva de nos dissolver num magma universal de imagens e de vozes, onde a nossa, familiar, está já submersa ou é inaudível, devolve-nos para a espécie de solitude que cada um de nós descobre no seio da multidão.

Como, segundo Pascal, existe uma boa maneira de tirar proveito da doença, também para esta, que podia chamar-se a de solidão cultural em tempos de plenitude cosmopolita, deve existir maneira de nos confrontarmos positivamente com o desafio que ela representa, com aquilo que somos ou imaginamos ser como diferentes dos outros, senão únicos. Com a condição de não fazer da «identidade» uma ideia paranóica, autista, fonte das piores aberrações que o século XX ainda não acabou de ilustrar. A única identidade não aberrante é a da nossa comum humanidade. E essa não separa, une. O que separa é a confiscação do que nos é comum em nome de particularismos — religiosos, ideológicos, culturais, civilizacionais — que se instituíram, por contingências históricas, em paradigma da humanidade. «Tempo Português» in Janus, 1997

Desde então, e nestas primeiras duas décadas do século XXI, as identidades não pararam de se mobilizar (também no sentido bélico da palavra) e de afirmar os seus direitos e os deveres dos outros perante eles. Para muitos desses, os direitos próprios são sempre absolutos e os alheios sempre relativos ou mesmo anuláveis.

Num livro que causou controvérsia, com o título As Identidades Assassinas, o escritor franco-libanês Amin Maalouf, a partir da sua condição de homem que vive entre o Ocidente e o Oriente, entre dois países e várias línguas, interroga-se por que razão, na história humana, a afirmação de si próprio é tantas vezes feita à custa da negação do outro. Contemplando as pilhas de cadáveres e as manchas de ruínas, o autor de As Cruzadas Vistas pelos Árabes indigna-se perante a loucura feita de fanatismo surdo e de fatalismo cego que leva a estas tragédias.

É claro que o reconhecimento e a afirmação das identidades longamente perseguidas, silenciadas, vilipendiadas, humilhadas, secundarizadas ou suprimidas, e a reivindicação dos seus direitos recusados ou postergados é um combate nobre e indispensável, uma causa justa e inadiável. Mas fazer essa luta em nome de uma violenta verdade absoluta, de um poder ou contra-poder tirânico, e usando métodos totalitários, tira razão a quem a tem e torna o perseguido em perseguidor.

Ao dedicarmos o dossier desta edição ao tema da(s) Identidade(s), temos consciência de que tratamos um assunto fundamental para a compreensão da nossa época. E sabemos que esse assunto gera entusiasmos, adesões, paixões, mas também irracionalismos, censuras e vigilâncias. Fazemos o que sempre fizemos. Contamos com a colaboração de autores que, com rigor e originalidade, vêm dedicando o seu trabalho de pensamento e análise à questão das identidades. Têm pareceres plurais e perspectivas diferentes, consoante os domínios de reflexão e as posições filosóficas. A sua participação neste dossier constitui um contributo fundamental para um debate que nos nossos dias se tornou central.

Não há questões humanas que não mereçam a procura de soluções. Claude Lévi-Strauss costumava dizer, com a sua ironia melancólica: «Das duas, uma… E normalmente essa é uma terceira.» É por pensarmos assim que a Electra é uma Xerazade, que, como a d’As Mil e Uma Noites, não cessa de contar as histórias que lhe dão vida, consistência, duração e alcance.

Fazemos há quatro anos, com os leitores, esta viagem que vale e se justifica a si mesma. Como diz Konstantinus Kavafis no seu sábio e belo poema «Ítaca»:

Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.
Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora,
senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

(Tradução de Jorge de Sena)

Este é o melhor salvo-conduto para alcançarmos o tempo que vem do futuro, trazendo ao presente as perguntas que fazem com que a Electra coincida com aquilo que quer ser.

   

cilix

Ulisses e a armadura de Aquiles, cílice grego, c. 480 a.C.