Assunto
Actualidade da governação pelos números
Alain Supiot

Alain Supiot, professor na Universidade de Nantes e no Collège de France, autor do livro La Gouvernance par les nombres (2015), percorre neste artigo a longa história que vai do governo das leis à actual governação orientada pelo primado da quantificação, dos números, não só na economia, mas também no domínio dos factos sociais. A globalização do mercado e os princípios neoliberais que lhe são imanentes, na época da informática, determinaram a hegemonia dos números.

Pouco depois da última guerra, numa conferência consagrada aos «problemas da regulação no organismo e na sociedade», o grande epistemólogo Georges Canguilhem mostrou que é errado confundir a questão da regulação de um organismo com a da organização de uma sociedade humana. Um corpo vivo é um ser auto-regulado, para o qual «a norma ou a regra da sua existência é dada na própria existência». Do mesmo modo, o que é problemático na medicina são as doenças e não a saúde, as cataratas e não a vista saudável. No caso da sociedade, pelo contrário, é fácil pôr-se de acordo sobre quais os males que é preciso combater: a miséria, a corrupção, a violência, etc. É o ideal a alcançar, a justiça, que constitui o problema. Como escreve Canguilhem:

«não existem sociedades sem regras, mas também não existe, na sociedade, auto-regulação. A regulação é sempre acrescentada e precária, por assim dizer [...]. Na sociedade, a regulação suprema, que é a justiça, não está presente sob a forma de um aparelho produzido pela própria sociedade. É preciso que a justiça venha de outro lado».

Mas que outro lado é esse, cuja existência é postulada pelos pobres seres humanos e perseguida desde as primeiras discussões de infância? O mais que se pode dizer, em termos gerais, é que ele deve conter uma terceira parte imparcial e desinteressada. Esse Terceiro começa por ter a figura da mãe ou do pai. Para que o diferendo entre ti e mim não acabe em pugilato, temos de poder contar com Ela ou com Ele; temos de poder referir-nos numa mesma língua a uma mesma lei ou a um mesmo juiz. As figuras desse Terceiro foram inúmeras ao longo da História, mas todas tinham o selo da heteronomia, quer fosse religiosa ou secular. Dito de outro modo, esse Terceiro, garante da justiça, deriva de um acto de fé em verdades indemonstráveis. Pode ser a fé num livro sagrado, como a Bíblia, o Corão ou o Veda; pode ser a fé naquilo a que a Declaração de Independência dos Estados Unidos chama «verdades evidentes em si mesmas». Essas verdades encontram-se proclamadas em declarações internacionais ou constituições nacionais.

Como qualquer sistema normativo, o direito ocidental possui, assim, uma base dogmática, isto é, assenta sobre verdades indemonstráveis que se impõem de igual modo a toda a gente. É o caso, por exemplo, do princípio da igual dignidade de todos os seres humanos, que tem a força de uma verdade jurídica, não obstante as diferenças biológicas ou sociológicas que, na verdade, os distinguem. Mas o direito constituiu-se também, no Ocidente, como uma técnica à disposição dos seres humanos, como a expressão da sua capacidade de fixar por si mesmos, mediante um esforço reflectido, as regras que presidem às suas relações. Foi esse o ideal do primado da lei, orgulhosamente reivindicado pelos Gregos, que afirmavam, com Platão, que «era a lei que reinava, soberana, sobre os homens, e não os homens que se faziam tiranos da lei». A liberdade identificava- se, para eles, com esse reino de uma lei deliberada por todos e não com a posse, por parte de cada um, de direitos individuais. É por isso que o primado da lei foi acompanhado pela invenção da democracia. Construção juridicamente complexa, a democracia implica a instituição de «assembleias da palavra», isto é, processos nos quais os membros de uma comunidade (reduzida, na maior parte dos casos, aos homens livres) se reúnem em pé de igualdade. Jean-Pierre Vernant descreveu estas assembleias num texto magnífico. Forma-se um círculo e coloca-se no centro (en méso, que designa também o meio e a medida) um ceptro, que simboliza o poder. Todos têm igual direito à palavra (isogoria). Quem quiser dizer algo sobre o que as coisas são ou devem ser dá um passo em frente e pega no ceptro; a partir desse momento, as suas palavras não devem exprimir os seus interesses privados, mas aquilo que lhe parece ser ao mesmo tempo verdadeiro e justo para a cidade como um todo. Quando tiver terminado, pousa o ceptro e a sua palavra torna-se novamente privada. É uma construção admirável, mas a sua fragilidade foi sublinhada por numerosos juristas, entre os quais Vico e Montesquieu. Esta construção pressupõe a capacidade do indivíduo de renunciar à consideração dos seus interesses privados quando participa na deliberação do interesse público — a virtude política que Montesquieu dizia ser «uma renúncia a si mesmo, que é sempre algo muito difícil».

antonio sena

António Sena, Sem título, 1966 © Fotografia: João Neves

 

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António Sena, Sem título, 1966 © Fotografia: João Neves

 

"Ao ideal do primado do direito opõe-se, hoje, o da governação pelos números, que está ligada à revolução digital nas suas formas contemporâneas, mas cujas raízes são mais antigas."

A este ideal do primado do direito opõe-se, hoje, o da governação pelos números, que está ligada à revolução digital nas suas formas contemporâneas, mas cujas raízes são mais antigas. O sonho de uma harmonia pelo cálculo remonta a Pitágoras e, mais próximo de nós, à revolução de Galileu e à sua representação matemática do Universo. Impõe-se a ideia de que Deus escreveu com números e não com letras as leis que ordenam a Natureza. E a decifração das leis deste Deus matemático deixa entrever a possibilidade de nos tornarmos «senhores e possuidores da Natureza», como dirá Descartes.

A quantificação não tardou a estender-se aos «factos sociais», sobre uma base claramente normativa, posta em evidência, em particular, pelos trabalhos de Lorraine Daston ou Alain Desrosières. A sociedade, por seu turno, foi apreendida como um objecto que se pousa diante do olhar, para o medir e decifrar as suas leis. E o modelo seguido foi o das leis da física, leis formalizáveis em termos matemáticos. Esta unidade do pensamento matemático, físico e jurídico é central na grande obra de Leibniz. O conceito genérico de «sociedade» surgiu apenas nesta época e conheceu, desde então, um sucesso prodigioso, do «contrato social» ao «socialismo» e à «segurança social», tornando-se mesmo objecto de uma ciência autónoma: a sociologia. Daí nasce o projecto de fundar a lei sobre cálculos de probabilidade extraídos da observação da sociedade. Ao que parece, foi uma questão de saúde pública que deu lugar ao primeiro debate sobre a legitimidade desta nova arte de governar: a questão de saber se a inoculação preventiva da varíola se deveria tornar-se obrigatória. Sabia-se que tal obrigação faria recuar a doença no seu todo, mas que causaria a morte de um certo número de pessoas inoculadas. Para a maioria dos espíritos «esclarecidos» da época, o progresso consistia em indexar o governo dos homens aos dados da ciência. D’Alembert, sozinho entre os filósofos, opôs-se a esta ideia, sustentando que não se podia aplicar a um problema que incide sobre a vida humana um cálculo baseado em dados imperfeitos. Esta atitude original das «ciências sociais» foi a fonte de importantes e indiscutíveis progressos científicos. Mas também suscitou aquilo a que Renan chamou «a audaciosa mas legítima pretensão de organizar cientificamente a sociedade».

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