Editorial
O uso do prazer
José Manuel dos Santos e António Soares

Nesta edição de Electra, o dossier, para falar do nosso tempo, fala da comida. Nos dias que correm e nas horas em que corremos para metas que parecem afastar-se sempre de nós, a comida é hoje um assunto planetário, que atrai e enfeitiça, convoca e mobiliza, fascina e até fanatiza. E que, nalgumas partes do mundo, muitas vezes falta. (...)

Legado e transmissão, experiência e descoberta, tradição e inovação, individual e social, prazer e pecado, necessidade e desperdício, fome e fartura, identidade e alteridade, a comida é cultura e é culto. Comemos e saboreamos o que comemos. Comemos e conversamos sobre o que comemos. Comemos e queremos saber o que comemos. Os sabores e os saberes tornaram-se inseparáveis pela proximidade dos sons e pela atracção dos sentidos. Viajamos para comer. Os restaurantes são lugares de veneração e liturgia. Os chefs são sacerdotes, magos, heróis, vedetas, às vezes mártires. A comida, com tudo o que a ela se liga, é uma arte, um conhecimento, um discurso, uma moda. E um processo cultural, um objecto antropológico, um tema ecológico, um tópico filosófico, uma questão política.

Ao mesmo tempo que a comida se glorifica, a obsessão da eterna juventude e do corpo onde essa juventude se mostra (assunto a que dedicámos o dossier da Electra 5) institui a dieta e os vários regimes em que ela se realiza (ou tenta realizar) como um horizonte contínuo das nossas vidas e das nossas mortes. Mais do que nunca e melhor do que antes, sabemos que a comida pode ser uma saúde e uma doença.

A alimentação passa a ser comida quando a natureza passa a ser cultura, e uma está para a outra assim como o sexo está para a sexualidade. A alimentação e a comida dividem, distinguem e diferenciam continentes, regiões, países, classes sociais, comunidades religiosas, grupos culturais, gerações, pessoas. A comida tem uma história e uma geografia, uma antropologia e uma semântica.

Palavras começadas por «r» tornaram-se inseparáveis da comida que comemos. Fala-se de restaurar, recriar, reinventar, reconstituir, refazer, repor, reproduzir, reelaborar, reaver, retomar, recuperar, restituir. Só não começa por «r» a palavra fusão. Na comida, a memória é um ingrediente tão fundamental como os outros.

A história da alimentação e da comida — a próxima e a distante, no tempo e no espaço — é uma história que hoje se faz e refaz para nos reconhecermos e nos desconhecermos nela, para nos sentirmos herdeiros e por vezes dissipadores. Todos os dias se publicam livros sobre o que a comida foi e como evoluiu, o que representou e o que provocou. A comida é índice, sinal, sintoma, demonstração, prova. As revisões aliam-se às reiterações, as descobertas acompanham as surpresas.

Assim, aqueles que, no nosso tempo, aproximam os olhos da Antiguidade grega, para ver como era a vida que lá se vivia, ficam não raro admirados com o que vêem. Essa surpresa surge, por exemplo, quando procuram conhecer como eram, nesse mundo onde tudo parece ter começado, as relações de cada um consigo mesmo e com os outros — e quais as teorias e as práticas que lhes davam expressão e sentido.

Nessa pesquisa sobre os preceitos, os conselhos e os avisos que configuravam as várias possibilidades de uma ética de vida e de uma estética da existência, observando aquilo a que se chamou o «cuidado consigo» e que hoje alguns chamam «as técnicas de si», uma das descobertas que mais nos podem espantar é a revelação de que os Gregos davam mais importância à comida do que à sexualidade.

Nos seus sistemas de valores morais e nos seus regimes de condutas individuais, no seu pensamento sobre os prazeres e na sua sensibilidade face ao seu uso, a cultura e a sociedade gregas concediam à comida — e ao jejum que alguns lhe associavam — um interesse mais alto do que o dado às questões da sexualidade. É bom notar que estes sistemas de valores e estes regimes de condutas não se destinavam a forçar uma normalização homogeneizadora de todos, mas a criar escolhas pessoais propostas por escolas filosóficas. Muito diferentes das normas de permissão e interdição impostas pelas religiões monoteístas, aqui as escolhas eram plurais e distinguiam-se umas das outras, embora seja possível encontrar algumas regras, tendências e interditos comuns.

Esta hierarquia grega de lugares na escala das preocupações morais teóricas e práticas, que dava prevalência à comida sobre a sexualidade, permaneceu durante muito tempo, pois no início da era cristã ainda se observava. Assim, nos regulamentos da vida monástica a grande preocupação é manifestada sobretudo com a alimentação e os apetites que gerava (a gula). Na Idade Média, foi ocorrendo uma lenta mutação e, com a crescente atenção prestada à sexualidade, houve como que um equilíbrio no nível das duas preocupações. Foi apenas no século XVII que a sexualidade como problema conquistou uma grande predominância, que não mais parou de aumentar.

No entanto, e mesmo com a prevalência posterior das ordenações e proibições de carácter sexual, a atenção dada à comida e aos comportamentos alimentares nunca desapareceu do horizonte cultural das diversas épocas, variando, nos sucessivos períodos, de maior ou menor presença e visibilidade. Disso mesmo nos dão testemunho, ao longo dos tempos, muitas obras — na religião, na filosofia, na literatura, nas artes, nas ciências, na moral, no direito.

No século XVI, numa época de viragem, Rabelais cantava (ou fingia cantar) a «ciência da boca» e a «santa garrafa», inventando o povo dos Gastrólatras, que nada fazem nem trabalham, com medo de «ofender ou emagrecer o ventre». Adoram o deus Gaster, ao qual sacrificam produtos e pratos, cuja enorme lista nos é, com minúcia, vastamente fornecida. Este escritor que foi monge, médico e professor de anatomia fez coincidir, no Pantagruel e no Gargantua, a bulimia dos saberes com a bulimia dos sabores, a imaginação mental e a imaginação física, a avidez intelectual e a avidez sensual, a abundância imaginativa com a exuberância verbal, a seriedade e a sátira, a fecundidade estilística e a farsa literária. Graças a ele, a palavra Pantagruel passou de substantivo próprio a substantivo comum, juntando-se a este o adjectivo pantagruélico, que tanta e tão boa fortuna tem conhecido ao longo dos séculos. O século de Rabelais é também o século de Bruegel e das suas pinturas de camponeses a festejar, comendo e bebendo, as suas alegres bodas nupciais.

Quando o século XVI caminhava para o fim, Michel de Montaigne dedicou várias páginas dos seus celebrados Ensaios à comida e à alimentação, falando da experiência e dos seus ensinamentos, do gosto e das suas mudanças, dos odores e das suas mensagens, da escolha dos alimentos, das sensações do apetite, da procura do prazer, dos cuidados e dos excessos, dos jejuns e das saciedades, dos fundamentos da saúde e das causas da doença, das prescrições médicas e do abuso delas, dos hábitos e dos horários, dos ensinamentos da natureza, do convívio à mesa, da harmonia entre o corpo e o espírito, da sabedoria e da meditação. Para Montaigne, devemos dar à comida os mesmos cuidados que damos à vida para que a felicidade a visite.

Do século de Rabelais e Montaigne é também Luís de Camões, que alude na sua obra a comidas e banquetes, iguarias e ementas. A partir daí, na fidelidade ao que o poeta diz, e com uma perspicaz investigação sobre a época, os seus produtos culinários e os seus costumes alimentares, e com alguma imaginação para preencher lacunas e desconhecimentos, têm sido compostos menus para refeições que trazem ao nosso tempo os pratos próprios desse tempo distante em que as navegações traziam a Portugal o que nunca se tinha aqui provado.

A história da gastronomia na Europa fala francês. Embora a palavra gastronomie tenha sido inventada em 1801, pelo poeta e humorista Joseph Berchoux, que deu este nome a um poema brincalhão, a arte que ela designa começou a praticar-se e a apurar-se muito antes. Em 1651, no meio do «Grand Siècle», a obra Le Cuisinier François, de François Pierre de La Varenne, cozinheiro do marquês d’Uxelles, marcou a passagem da cozinha medieval para a grande cozinha moderna francesa. É este um tempo de variadas mudanças na comida: dos alimentos pesadamente condimentados para a descoberta do sabor natural dos produtos. Este livro representa uma revolução e nele se desenvolvem terminologias e se codificam princípios, regras e receitas ainda hoje reconhecíveis e palatáveis. Algumas das suas ideias sobre os alimentos vieram ter ao nosso tempo ou foram por ele recuperadas. Nesta época, na pintura A leiteira de Vermeer ou nas naturezas mortas de Josefa de Óbidos os alimentos parecem dizer-nos segredos.

No Século das Luzes, as transformações levaram — já então! — a uma nouvelle cuisine. Em 1735, apareceu o livro Le Cuisinier moderne, de Vincent La Chapelle, que foi chef de várias cortes, entre as quais a de D. João V de Portugal. Alguns anos depois, surge Les dons de Comus, de François Marin (1739), em cujo prefácio o autor escreveu:

A cozinha antiga é aquela que os franceses puseram em voga por toda a Europa. […] A cozinha moderna, estabelecida sobre os fundamentos da antiga, com menos embaraços, menos aparelhos e com tanta variedade, é mais simples, mais própria e talvez ainda mais sábia. A antiga cozinha era muito complicada e de um pormenor extraordinário. A cozinha moderna é uma espécie de química.

caravaggio

Michelangelo Merisi da Caravaggio, Baco, c. 1590
© Fotografia: Scala, Florença / Galleria degli Uffizi, Florença

 

Para este chefe cozinheiro de Madame de Pompadour, a famosa e aproveitadora amante do rei Luís XV, deve buscar-se não a quantidade, mas a harmonia das qualidades para chegar à quintessência requintada. Este é o século em que o pintor Jean-Baptiste Chardin pinta magistralmente os utensílios, as loiças, os alimentos e o apetite por eles. Quem o viu não esquece o ardiloso gato da sua pintura La Raie.

O século XIX, o século dos restaurantes, é aquele em que nasce o jornalismo gastronómico e é também o tempo em que a cozinha e a literatura, mais do que nunca, se atravessam uma à outra. Sobre a influência dos restaurantes na vida social, política, cultural e económica, escreveu então um escritor, dirigindo-se aos restaurateurs:

Vós não sabeis o que valeis. Com os vossos almoços, vós sois os reguladores da opinião, das finanças, dos interesses das famílias, dos votos do Instituto [Academias], e algumas vezes talvez da câmara electiva. Na nossa bela França, tudo gira sobre as vossas mesas e em redor das vossas garrafas.

Isto mesmo podia ser dito no nosso tempo e, a propósito desses almoços à volta dos quais tudo gira, alguém exclamou há uns anos: «Não há almoços grátis!»

Em 1833, Antonin Carême publicou L’art de la cuisine française au XIX siècle. Este homem, nascido numa família tão pobre que até fome passava, fez pela vida com invulgar tenacidade. Foi primeiro auxiliar de cozinha, depois aprendiz de pasteleiro, chegando a pasteleiro de alto nível. Prosseguindo a sua ascensão, tornou-se cozinheiro e chef de reis, príncipes, aristocratas e banqueiros da Europa: Napoleão, Joachim Murat, o rei de Nápoles, Talleyrand, o czar Alexandre I da Rússia, o rei Jorge IV de Inglaterra, James de Rothschild, entre outros. Era o cozinheiro mais bem pago do mundo. Não sabendo redigir bem, a sua obra monumental foi escrita, segundo as orientações dos seus conhecimentos e das suas experiências, por ghostwriters e estava inacabada na altura da sua morte precoce, sendo completada por um discípulo. Além de outros livros que assinou sobre pastelaria, L’art de la cuisine française au XIX siècle foi durante muito tempo uma «bíblia dos cozinheiros». É considerado um livro fundador, que formou e influenciou gerações sucessivas.

Antes, em 1825, aquele que é tido por um dos fundadores da gastronomia francesa, de seu nome Jean Anthelme Brillat-Savarin, magistrado, homem de letras e epicurista afamado, havia publicado, anonimamente, os dois volumes da sua Psicologia do gosto. Esta obra de ambição filosófica é considerada um dos momentos inaugurais de uma progressiva intelectualização dos dons, usos e prazeres da gastronomia, tendo contado, nas suas reedições de 1838 e 1839, com um prefácio de Honoré de Balzac, que lhe louvou a forma e o conteúdo. Nesse livro, Savarin faz uma afirmação que, nos nossos dias, muitos repetem sem saberem que de uma repetição dele se trata: «Diz-me o que comes e eu te direi quem tu és.»

Quando olhamos esse tempo, temos a impressão de que os escritores não paravam de comer. Se Gabriel García Márquez deu às suas memórias o título de Viver para Contar, poderíamos dizer que estes escritores comiam para contar. De Balzac a Flaubert, de Guy de Maupassant a Émile Zola, nas suas obras a comida tem um papel enorme e é, ao mesmo tempo, descrição literal e imagem metafórica. E houve escritores que eram, além de gourmets, verdadeiros eruditos da gastronomia. A última obra do popular romancista Alexandre Dumas pai, autor d’Os Três Mosqueteiros e afamado gourmet, que teve honras no Panteão Nacional de França em 2002, é o Grand Dictionnaire de cuisine, reeditado recentemente em três volumes.

A arte do romance é, em muitos casos, acompanhada de uma arte da cozinha. Em todas as literaturas há livros e livros que mostram a ligação entre estas duas artes, inventariando autores, obras, personagens, situações, receitas, refeições, alimentos, doces, bebidas que, nos romances, novelas e contos, aparecem em narrativas e descrições que dão aos nossos sentidos motivos para se porem alerta.

Esses relatos fazem o retrato de um tempo e de uma sociedade, revelando as diferenças de posses, de atitudes e de costumes entre as classes sociais. Se, em Portugal, nas obras de Camilo Castelo Branco, a gastronomia aparece, muitas vezes, para ajudar a caracterizar personagens, é em Eça de Queiroz que os prazeres da mesa convidam a que nos juntemos aos que os desfrutam, fazendo-nos crescer água (ou vinho) na boca. Este é também o tempo em que os escritores (e outros artistas) dão o seu nome a pratos que inventaram ou comiam com assiduidade. Em Portugal, as amêijoas à Bulhão Pato são o exemplo mais difundido. Na segunda metade do século xix, os pré-impressionistas e os impressionistas, com, entre muitas outras pinturas, Le déjeuner sur l’herbe, de Manet, Le déjeuner des conotiers, de Renoir, ou um outro Le déjeuner sur l’herbe, de Monet, tornaram- -se símbolos de uma nova relação dos corpos com a natureza e uns com os outros. Depois, Os Comedores de Batatas, de Van Gogh, Le déjeuner sur l’herbe, de Cézanne, ou À la Mie, de Toulouse-Lautrec, mostram, por motivos existenciais ou razões formais, uma mudança no olhar. As cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro deram à comida e às artes da mesa uma magnífica metonímia.

Na passagem do século XIX para o século XX, avulta a figura do chefe cozinheiro Auguste Escoffier. Ele foi, depois de Carême, de quem é considerado seguidor, o maior renovador (e reformador) da arte culinária. Com uma sólida formação em todas as disciplinas das artes gastronómicas, foi pioneiro em muitas coisas, desde logo na aliança da cozinha com o marketing. Todos os grandes acontecimentos em que participou culinariamente e todas as grandes personalidades que serviu deram-lhe um prestígio e uma fama que ele soube aproveitar e projectar nos jornais da época. Ainda no século XIX, dirigiu a Maison Chevet, que organizava grandes banquetes em França e por toda a Europa. Um dia encontrou César Ritz, então director do Grande Hotel de Monte Carlo, que o convidou para seu chefe cozinheiro. Este é um encontro que vai marcar a sua vida e a história da hotelaria e da restauração.

Os dois homens vão criar e afirmar um conceito de novos e faustosos hotéis (os Palaces), nos quais as artes da comida e as salas de jantar tinham um papel fundamental. Essas salas passaram a ter como protagonistas poderosos de todos os poderes e as mulheres passaram a frequentá-las, o que não acontecia anteriormente, pois tomavam as refeições em suítes privadas. Graças a esta mudança, os restaurantes dos grandes hotéis tornaram-se salões mundanos, onde se exibiam toilettes, amantes, jóias e relações sociais. Em 1890, Escoffier foi para Londres como chef do Hotel Savoy, cujo restaurante se tornou um santuário da cozinha francesa mais refinada e exclusiva. Depois de turvas acusações de roubo de vinhos e corrupção, feitas aos dois por um escansão, César e Auguste foram para França e fundaram, em 1898, o Hotel Ritz de Paris.

O grande cozinheiro sabia o que queria fazer e uma das novidades que pôs em prática foi a reorganização dos espaços da cozinha e o recurso a novos instrumentos e utensílios, como, por exemplo, fornos concebidos propositadamente para os objectivos pretendidos. A sua doutrina fundava-se na inovação, nomeadamente dos cuidados de higiene, na disciplina que exigia às suas equipas e na especialização (quem fazia molhos não fazia assados). Conseguia, assim, um serviço mais rápido e com os pratos servidos à temperatura certa. Tornou-se também um precursor da utilização dos «produtos do território».

O Ritz de Paris foi (continua a ser) um glorioso sucesso. Lugar histórico dos rich and famous, foi de lá que a princesa Diana de Gales partiu para a morte. Escoffier trabalhou também no Carlton de Londres, tendo-se tornado consultor de várias empresas e projectos, pago a peso de ouro. Escritor culinário de enorme influência, colaborava também nas grandes revistas gastronómicas desses anos e foi um incansável guardião, sistematizador e codificador de milhares de receitas, que coligiu no famoso Guide culinaire. Este guia permanece, até hoje, como uma grande referência da cozinha e da gastronomia. Reformou-se em 1920 e, um ano antes, foi condecorado com a Legião de Honra.

No Ritz, um dos clientes habituais de Escoffier era Marcel Proust. Para o grande escritor, a cozinha, com os seus produtos e pratos, as suas operações e rituais, contribuía para dar substância àquele grande universo de sensações de que o seu imenso e múltiplo romance dá testemunho. E servia ainda para alimentar o seu obsessivo trabalho de inventariação, catalogação, diferenciação, associação, decifração.

Em Proust, o que se come emite sinais. E o como se come, o onde se come, o quando se come e o com quem se come também emitem poderosos signos, formando sistemas e definindo conjuntos de indícios que exigem uma atenção astuta e uma hermenêutica subtil. Proust é o escritor que fez de um bolo —  a madeleine — uma das alavancas com que levantou o seu mundo literário. Com o seu poder de evocação e ao ser erguido à condição de instrumento da memória involuntária, a madeleine proustiana passou a ser um dos objectos-símbolo mais importantes da história da literatura. Alcançou mesmo um estatuto igual ao das grandes personagens da ficção romanesca.

No modernismo, a comida continuou a fazer a sua magnífica carreira literária. No poema «Dobrada à Moda do Porto», de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, esse prato que lhe foi escandalosamente servido frio, em vez do amor que tinha sido pedido, e que não lhe foi dado para comer, torna-se um símbolo metafísico do nosso desencontro repulsivo com a vida e o mundo. Por esse tempo, vindos do final do século anterior, nabis, como Bonnard e Vuillard, cubistas, como Picasso e Braque, ou fauvistes, como Matisse e Derain, pintaram maravilhosamente naturezas-mortas, tornando-as verdadeiras naturezas vivas.

Nos séculos XX e XXI, a comida tem sido estudada segundo as várias disciplinas que já existiam ou se foram instituindo, nos domínios que vão das ciências exactas às ciências humanas. E as artes, da pintura à escultura, do teatro ao cinema, foram tendo a comida como tema e motivo. Quem viu A Grande Farra não esquece o que ali viu.

Entre aqueles que deram a este tema um olhar a que se pode chamar novo, está o antropólogo Claude Lévi-Strauss. O seu livro O Cru e o Cozido foi acolhido como uma revelação. Uma das ideias fundamentais que trouxe é a de que a passagem do cru ao cozido representa a passagem da natureza à cultura. Já o apodrecimento constitui um retorno à natureza e um acabamento da transformação natural. Estas noções tão imediatamente aplicáveis à cozinha foram apropriadas por outros discursos, como, por exemplo, o da crítica de cinema.

Na contemporaneidade, a comida não é apenas um tema tratado ou uma matéria usada pelas artes visuais, como aconteceu, entre outros, com a pop art (Andy Warhol, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg) ou Dieter Roth e Francis Bacon. Passou a fazer parte das suas manifestações mais importantes e mundanas. Na década de 70, Gordon Matta-Clark com os futuros membros do grupo Anarchitecture criaram o Food, em Nova Iorque, um restaurante aberto ao público, onde os artistas cozinhavam alimentos, ideias e projectos.

Um dos pólos da Documenta de Kassel de 2007, dedicada à transformação da forma, foi dos mais célebres restaurantes do mundo de então, El Bulli, situado na Catalunha. O seu chef e proprietário, Ferran Adrià, uma vedeta planetária, revolucionou a arte de cozinhar com a chamada «cozinha molecular». Nesta altura, Adrià tinha já publicado, à semelhança dos catálogos de arte, um catálogo raisonné das suas criações culinárias, em seis volumes. Disse este cozinheiro: «A cozinha não é uma disciplina musealizável. É uma disciplina artística que necessita do seu próprio cenário. E o seu cenário é o lugar onde a fazemos.» E acrescentou:

Uma das muitas características da cozinha, que a fazem única, é o facto de ser uma disciplina onde o espaço e o público são muito importantes. É uma actividade multissensorial, comunicativa, que não se pode fazer para mais de 30, 40 ou 50 pessoas. É uma actividade muito participativa, onde a pessoa que a recebe tem grande importância.

Pasolini

Fotograma de La Ricotta [«O Requeijão»], Pier Paolo Pasolini, 1963
Filme, 35 min. França e Itália

 

josefa de obidos

Baltazar Gomes Figueira e Josefa de Ayala, Mês de Março, 1668
© Fotografia: José Pessoa / Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

 

A alimentação, a comida, a cozinha, a culinária, a restauração, a gastronomia, a dietética, a enologia, as artes da mesa estão hoje presentes, como nunca haviam estado, em todo o lado: nas conversas, nas televisões, nos jornais e revistas, nas redes sociais, nos congressos e colóquios. Estão presentes nas universidades, nos museus, no comércio, na medicina, na literatura, nas artes plásticas, na publicidade. Estão presentes na ética, na ecologia, na religião, na história, na sociologia, na química, na biologia, na política, na economia, no direito, na mediologia, na linguística. Os alimentos recuperaram a sua função sagrada. Os restaurantes são lugares de culto. Os chefs e as suas cozinhas de autor são dos mais famosos ídolos do nosso tempo. As estrelas Michelin têm o prestígio dos títulos nobiliárquicos, das canonizações religiosas, dos prémios literários, dos óscares do cinema ou das taças do desporto.

Dos doces aos salgados, dos secos aos molhados, dos sólidos aos líquidos, dos crus aos cozinhados, de tudo se fala. Todos os dias há novas descobertas, novas criações, novas informações, novas experiências. Há pessoas que se metem no avião durante horas e horas para irem jantar a um restaurante novo que abriu nos confins do mundo. Tal como o portfólio do chef, o portfólio do cliente passou a ser uma razão de estatuto social, um atributo de imagem, um motivo de orgulho.

Os vinhos e tudo o que à volta deles gira provocam hoje investimentos, investigações, guerras comerciais. Há quem saiba (ou presuma saber) tudo de vinhos. Há, sobre isso, discussões de horas que acabam em alianças para o resto da vida ou põem fim a amizades antigas.

A comida e a cozinha passaram a ser uma moda universal. Os livros sobre comida e sobre cozinha enchem prateleiras e prateleiras das estantes das livrarias. A Internet está cheia de comida e de bebida. Nas universidades, os estudos, de toda a ordem e em todas as áreas e especialidades, sobre alimentação pululam sem parar. As preocupações ecológicas e os direitos dos animais mudaram o nosso olhar sobre a alimentação. A alimentação e a comida falam do nosso presente e já do nosso futuro, prefigurando alguns dos debates que nele se vão disputar.

É como se nestas primeiras décadas do século XXI tivessem sido restituídos à comida o lugar e a relevância que detinha na Grécia antiga. Mas, como tudo o que acontece nestes tempos vertiginosos e exibicionistas, a comida passou a ser um além de si mesmo. O seu predomínio actual é um sinal que diz também quem somos e como somos o que somos.

É por isso que, ao tratarmos da comida e da alimentação no «Assunto» desta edição de Electra, continuamos o propósito de irmos desenhando o rosto móvel do nosso tempo, através das suas grandes tendências ou dos seus pequenos sintomas, manifestos ou latentes. A comida fala-nos de tudo. Fala-nos sobretudo de um tempo que faz de tudo um espectáculo, uma mercadoria, uma fama e um narcisismo. Tudo isto se fazendo com a boa consciência de quem pensa que o mundo nasceu agora.

Confirmando o que somos, Electra dirigiu um convite à célebre Agência Magnum, criada em 1947, para que seis dos seus fotógrafos criassem imagens que constituam uma leitura visual dos temas deste dossier. A comida é assim olhada por grandes fotógrafos, em trabalhos originais feitos para a nossa revista. As imagens de Alex Webb, Jacob Aue Sobol, Cristina de Middel, Gueorgui Pinkhassov, Martin Parr, Lindokuhle Sobekwa foram obtidas em Boston (EUA), Horslunde (Dinamarca), Cidade do México (México), São Petersburgo e Moscovo (Rússia), Bristol (Reino Unido), Joanesburgo e Thokoza (África do Sul). Não é preciso notar aqui o que se torna evidente: o significado cultural, artístico e comunicacional deste projecto.

Na secção «Furo», que dá a conhecer obras inéditas de criadores, apresentamos também o trabalho de um consagrado fotógrafo. Trata-se do espanhol Alberto García-Alix e estas imagens foram realizadas a partir de uma residência artística que fez no Museu do Prado.

É este o magnífico começo de um livro:

Esta história começa numa noite de Março tão escura quanto a noite enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.

Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo, passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.

Quem escreveu este início foi Clarice Lispector, em A Maçã no Escuro. No centenário do seu nascimento, publicamos um ensaio que nos desvenda uma face pouco conhecida desta grande escritora brasileira de origem ucraniana: a da sua relação tão especial — e pouco evidente — com a política. Há poucas autoras tão misteriosas como esta. Nela, o mistério não se faz de alguma coisa que intencionalmente se esconda. Ele é a substância de tudo e o alimento cuja procura a obrigava a não deixar de escrever. Se assim é, este pode também ser um bom motivo para que cada edição de Electra seja uma procura e um avanço na descoberta do mundo que nos chega com o tempo em que ele se cumpre e nós nos cumprimos.