Mas o que significava (se é verdade, como dizem os poetas, que um vestido significa alguma coisa)?
Stéphane Mallarmé, La Dernière mode
Foi a deusa das deusas, a esfinge das esfinges, o mistério dos mistérios. Madame Grès brilhou no universo exclusivo da alta-costura parisiense, deixando como legado uma obra marcada por uma incessante busca da beleza absoluta. Os seus longos vestidos drapeados, feitos de mestria técnica e de obsessão, constituem uma profunda reflexão sobre a moda, o tempo e a memória. Quem escreve sobre a vida e a obra desta grande couturière é Anabela Becho, curadora e investigadora da área da moda.
Silêncio. Tudo começou e acabou em silêncio. A sua longa vida foi perpassada por um fio de silêncio. Tudo em torno do silêncio. Menos a sua obra, que nasceu no e do silêncio, mas é tudo menos silenciosa. Sempre falou e continua a falar muito alto, assertiva e eloquente, nunca estridente. Na sua eterna associação com a escultura contém em si uma perenidade inerente, afirmativa, sólida, sem tempo. O exercício dos princípios do design está na génese do discurso têxtil de Grès. Porque é de um discurso que efectivamente se trata, um pensamento que se transfigura em matéria, que se vai consubstanciando prega após prega, num jogo alternado de luz e de penumbra, guardando nas concavidades das dobras sucessivas dor e mistério, melancolia e persistência, obsessão e convicção. É para o corpo feminino que os vestidos de Grès são inequivocamente concebidos, num exercício de corte e manipulação do tecido, uma técnica prodigiosa e precisa, sem margem para excedentes de qualquer tipo. São, por esta mesma razão, peças exemplares do mais alto desígnio do design. No entanto, é precisamente na relação entre corpo e vestido, composta de harmonia e tensão entre o orgânico e o inorgânico1, que a obra de Grès extravasa o domínio do design. Passa naturalmente para um campo legítimo de criação, pois os vestidos da couturière não se limitam a vestir o corpo; transfiguram-se no próprio corpo, no qual matérias têxtil e carnal assumem uma entidade una e indivisível. Absoluta.
Sendo inequivocamente moderna, a obra de Grès parece não pertencer a uma época específica, remetendo-nos em simultâneo para um passado distante e para o futuro. O poder evocativo dos vestidos da couturière é completamente avassalador. Algo que se entrelaça na sua materialidade, nos detalhes de construção, na busca pela perfeição e pela beleza. Embora fosse uma mulher do seu tempo, ligada a um determinado contexto artístico, cultural, social e político, podemos observar no âmago do trabalho de Grès uma busca deliberada de atemporalidade e um inegável ímpeto criador. Sem concessões, Grès criou a sua moda sem se importar com as tendências impostas pela moda.
Quando se procura reconstruir a vida de Grès, surge inevitavelmente a aura de mistério que a designer cultivou. Raramente dava entrevistas. Os factos em torno da sua vida são muitas vezes contraditórios, havendo escassez de material biográfico. Grès reinventou-se ciclicamente, adoptando diferentes personae ao longo da vida. Rigorosa, obsessiva, austera e monástica, manteve a privacidade longe dos holofotes do universo da moda, sob os quais brilhou intensamente a sua obra.
"Sendo inequivocamente moderna, a obra de Grès parece não pertencer a uma época específica, remetendo--nos em simultâneo para um passado distante e para o futuro."
Nasceu a 30 de Novembro de 1903, em Paris, no seio de uma família da pequena burguesia. Foi baptizada como Germaine Emilie Krebs, nome que afirmou odiar, talvez por não o considerar suficientemente distinto e singular. Da infância pouco se conhece, mas sabe-se que um entendimento artístico do mundo terá sido inato, sendo a escultura e a dança referências maiores. Talvez seja mais acertado dizer que era o corpo a sua grande referência: o corpo ideal e escultural, marmóreo; e o corpo em movimento da dança moderna de Isadora Duncan, que despontava na época da jovem Germaine.
Trabalhou ao longo de seis décadas, inicialmente sob o nome Alix, criando e recriando vestidos como se de esculturas vivas se tratasse, sempre em busca do vestido ideal, o vestido dos vestidos, um meta-vestido, modelo que inventou, trabalhou, aperfeiçoou e purificou. As suas criações emergiam na tridimensionalidade, em afinidade com a concepção clássica da disciplina da escultura:
Nunca crio um vestido a partir de um esboço. Coloco o tecido no busto de um manequim para estudar a sua natureza e só depois uso a minha tesoura. O corte é a fase mais crítica e importante na criação de um vestido. Em cada colecção que preparo, uso três pares de tesouras. (Grès citada por Hata, 1980: 254).
A coerência pauta a obra de Grès; encontram-se, no entanto, algumas contradições que não comprometem a sua integridade. Apesar de ter afirmado nunca criar uma peça a partir de um desenho, a existência de inúmeros esboços rápidos e informais conservados no acervo do Palais Galliera Musée de la Mode de la Ville de Paris, executados pela própria designer, explorando as potencialidades do drapeado, testemunham que o gesto gráfico serviria como experimentação e inspiração.
Outra discrepância diz respeito à inspiração clássica eternamente associada à sua obra, que Grès tanto refere, como refuta:
É necessário ter vontade de fazer algo com alguma coisa. Esses vestidos drapeados, dizem que remetem para a Antiguidade. Mas eu nunca me inspirei na Antiguidade. No tempo em que este tecido não existia (um jersey de seda finíssimo), não pensava fazer drapeados. Mas a partir do momento em que o tive nas mãos, o tecido assumiu o seu próprio caimento. Os escultores gregos fizeram as suas esculturas a partir dos materiais que se adequavam (Alix Grès, L’Enigme d’un style, 1992: 16).
"Grès reinventou-se ciclicamente, adoptando diferentes personae ao longo da vida. Rigorosa, obsessiva, austera e monástica, manteve a privacidade longe dos holofotes do universo da moda, sob os quais brilhou intensamente a sua obra."
Nas primeiras duas décadas do século xx, Paris era o centro da maioria dos movimentos artísticos de vanguarda, como o cubismo e o surrealismo. Um lugar de liberdade e criatividade onde, simultaneamente, começou a emergir uma ânsia de classicismo, semelhante à tendência neoclássica do final do século XVIII e início do século XIX. Na moda, Paul Poiret, cujos vestidos de cintura alta referenciam o neoclassicismo (o estilo Directoire), e Mariano Fortuny, com os vestidos de seda plissada Delphos ou Peplos (vestido de duas peças), lançaram as sementes para o vestuário de inspiração clássica. Na mesma década de 1910, Madeleine Vionnet libertou o corpo feminino, envolvendo-o de uma forma harmoniosa e natural, captando a mais bela essência da estética clássica — a relação entre o corpo e o movimento.
Sempre olhando para o futuro, Alix iniciou a carreira em 1933 e tomou como base para a sua identidade estética um método de inspiração clássica reinterpretando-o através da mais alta tecnologia têxtil. Num salto de tigre2 para a Antiguidade, a couturière reinventou para a modernidade um modelo de gosto helenístico, baseado nas técnicas de vestuário da época — chiton, peplos e himation —, utilizando, no entanto, os tecidos mais modernos, maleáveis e delicados, sobretudo o jersey de seda, muitos fabricados em exclusividade para ela por empresas têxteis de renome, como a Rodier.
Em 1935, Alix criou figurinos de inspiração helenística para a peça La Guerre de Troie n’aura pas lieu, escrita por Jean Giraudoux e encenada por Louis Jouvet. A Antiguidade Clássica representava uma visão utópica de pureza, estabilidade e unidade, num tempo de instabilidade política e social — o período entre as duas guerras mundiais.
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