Entre todos os vestígios de que dispomos da Exposição do Mundo Português há um acervo que se sobrepõe a todos os outros: o das inúmeras fotos que a representam e reproduzem. Imperativas, retêm uma tensão própria de um artefacto cultural do passado, actualizado pelo nosso olhar impuro, do presente. O «poder interpretativo» (Benjamin, 2015) destas fotos incita a um esforço voluntário em reconfigurá-las numa sequência temporal, dando-lhes continuidade espacial e vivência política, pois estes registos insistem em apresentar-se como objectos estéticos, captados em planos separados, sem qualquer relação entre si.
Transponho a entrada, quatro blocos gigantescos, quatro sentinelas medievais, cuja magnitude e gravidade conserva quase intacta a força de atracção de tudo o que é imenso. A demonstração de poder mantém-se a salvo, mas o recurso à persuasão estética surge perturbado, as fotos já só registam um desejo: transformar uma proclamação de autoridade numa operação de sedução. Obrigo-me a fixá-las como ilustrações e emblemas, expressão do esforço enunciativo da narrativa apologética do nacionalismo autoritário do Estado Novo e do seu projecto imperial. Porque a memória colectiva não é inerte, destrói, conserva e transfigura, e na actualidade permanece um campo de luta política, onde se joga o esquecimento, mas também a recordação, nem sempre espontânea, frequentemente provocada.
E a cada linha, volume, ornamento e símbolo captados, que narram a grandeza da nação, a eloquência do império ou o virtuosismo do colonialismo suave e do bom colonizador, adiciono o desígnio dos organizadores da Exposição do Mundo Português, que decorreu em Lisboa, entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940: o de impor uma ideologia legitimadora de um poder político tomado por uma elite que se quis intérprete exclusiva do interesse nacional.
Inserida no programa do Duplo Centenário da Nacionalidade (o da Fundação, 1140, e o da Restauração, 1640), importa envolver a Exposição do Mundo Português no ambiente desse meta-acontecimento, eminentemente discursivo, tomado por regras do mundo simbólico e entregue aos profissionais da enunciação, políticos de vários métiers, padres e jornalistas. A eles coube, durante três anos, desde o anúncio das celebrações até à sua concretização (1938–40), traduzir o sentido providencial do nacionalismo autoritário salazarista, relatando, repetidamente, o desígnio inevitável e indiscutível de todos. Como exortava António Ferro, «As crianças, finalmente, compreenderão, por instinto, que nasceram num Portugal melhor e hão-de rir com mais saúde, com mais alegria» (Diário de Notícias, 17.06.1938). Coube ao guião das comemorações do Duplo Centenário, seguindo o enredo narrativo e cerimonial, autodefinidor, traduzir o conteúdo ideológico do dispositivo da Exposição.
Em Março de 1938, num contexto internacional marcado pela ascensão dos regimes de inspiração fascista e de afirmação interna de um projecto totalitário de reeducação dos portugueses (Rosas, 2013: 318), toda a imprensa e emissoras radiofónicas divulgam a nota oficiosa do chefe do governo, Oliveira Salazar, anunciando a comemoração do Duplo Centenário. O novo regime autoritário, institucionalizado há apenas cinco anos, garantiria que a iniciativa fosse o mais importante acontecimento político-cultural do Estado Novo, disponibilizando amplos recursos materiais e humanos. Coincidiam os preparativos da comemoração com o período de consolidação interna da base de apoio ao regime, de maior militância ideológica, um dos momentos mais duros de repressão política (entre 1937 e 1938, os presos políticos somaram, nas estatísticas possíveis, mais de oito mil indivíduos; e no campo de concentração do Tarrafal a maioria dos presos penava sem julgamento). Todos os dispositivos ideológicos foram mobilizados, com as suas competências já confirmadas e obra realizada. E basta lembrar a convocação do mito do império recriado na Exposição Colonial (1934), a insistente afirmação do mito da essência católica portuguesa, já materializada na cruz de Cristo exposta em cada sala de aula (1936), ou a construção do mito da pureza do mundo rural, presente no concurso da «Aldeia mais Portuguesa de Portugal» (1938). Recrutaram-se múltiplos organismos, muitos deles recém-criados, como a Direcção dos Serviços de Censura, o Secretariado de Propaganda Nacional, as corporações, os sindicatos nacionais, a Mocidade, a Legião, a Obra das Mães, e outros reabilitados, como o Ministério da Educação, a Igreja católica, a imprensa, a rádio, os museus e as academias.
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