Neste portfólio de João Penalva, um artista amplamente reconhecido pelos seus trabalhos de cruzamento do vídeo, da instalação, da fotografia, da música, da performance, do texto e da imagem, apresenta-se uma série inédita de fotografias a preto e branco, que foram feitas nos caminhos percorridos pelo seu autor em Londres, e que se assemelham visualmente às pinturas do expressionismo abstracto norte-americano, como comenta o historiador da arte Afonso Dias Ramos no breve ensaio que o acompanha.

A mentira tem uma história cheia de declinações. Por isso é que não devemos ficar encerrados na simples oposição entre a verdade e a mentira, como se não existissem modalizações subtis e aparentemente paradoxais, tais como a verdade da mentira e a mentira da verdade. Nessa história, a relação entre a mentira e a política teve sempre uma grande importância, e para percebermos que é quase de natureza consubstancial o vínculo que une uma à outra nem é preciso evocar o maquiavelismo. No nosso tempo, o da comunicação e difusão de mensagens em massa num espaço público horizontal, rizomático, a mentira entrou num novo regime, do qual as fake news são a manifestação extrema. A noção de «pós-verdade» (que o dicionário de Oxford considerou em 2016 a palavra do ano) surgiu então como uma estranhíssima designação que muitos julgaram tratar-se simplesmente de um novo nome para uma realidade antiga. Mas é outra coisa: a pós-verdade está para além do verdadeiro e do falso, dissolve a diferença entre esses dois pólos. Por isso, não se anula através de um desmentido. Mas não é só destas questões que se ocupa este dossier da Electra, que se detém também noutras paragens obrigatórias: a arte, a ficção, o delírio, os poderes da técnica.

Para o «Assunto» deste número da Electra convocámos um tema ao mesmo tempo muito universal e muito contemporâneo: a mentira. As variadas contribuições desenham percursos com estações obrigatórias na política (Martin Jay), na arte e nas imagens (Peter Hill e Daisy Dixon), no regime mediático da pós-verdade (Myriam Revault d’Allonnes), nas etapas da história natural filogenética, até à hegemonia da técnica (António Bracinha Vieira), e em dois case studies de duas intelectuais brasileiras perseguidas e ameaçadas por fake news (Bárbara Reis).

Martin Jay é professor emérito na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e a sua extensa obra, cruzando diversas disciplinas, abarca a área da teoria crítica da cultura, da filosofia, da sociologia, da cultura visual. Autor de um livro sobre o uso da mentira na política, The Virtues of Mendacity: On Lying in Politics, é precisamente desse tema que trata este artigo.

Bárbara Reis, reputada jornalista do Público, do qual já foi directora, reuniu dois testemunhos impressionantes de duas mulheres brasileiras que contam o que passaram a partir do momento em que se viram perseguidas por «milícias digitais» que difundiam mentiras sobre elas e as ameaçavam de morte.

Daisy Dixon, professora na Universidade de Cardiff, autora de ensaios e artigos académicos na área da filosofia da arte e também artista, escreve sobre uma complexa questão: de que modo se pode falar de mentira a propósito das imagens artísticas? O ponto de partida desta reflexão é uma fotografia encenada, pretensamente documental.

Sobre a noção de pós-verdade, que o dicionário de Oxford elegeu como a «palavra do ano» de 2016, escreveu Myriam Revault d’Allonnes um livro intitulado, na tradução portuguesa, A Verdade Frágil. Neste artigo, a filósofa francesa, professora emérita na École Pratique des Hautes Études, retoma a sua reflexão sobre esse conceito para mostrar que ele não pode ser confundido com a tradicional mentira e para o situar na sua relação quer com a democracia, quer com os regimes totalitários.

Peter Hill, artista australiano, curador e professor na Universidade de Melbourne, autor de uma Encyclopaedia of Superfictions, apresenta aqui, seleccionados por um tal Fernão Mentes Minto, excertos de uma «Enciclopédia da Mentira» que faz parte das suas «superficções».

As linhas de separação entre a verdade e a mentira estão sujeitas a quebras impostas por alguns factores que o escritor, psiquiatra e etólogo António Bracinha Vieira descreve e analisa, começando pelo exemplo da inteligência social dos primatas, que recebemos em herança através da nossa história natural filogenética.

Desde a infância, e ao longo da sua quase centenária vida, a grande pintora americana Georgia O’Keeffe fez da maneira como vestia o seu corpo uma afirmação como mulher e artista moderna. Usando na criação do seu guarda-roupa a mesma originalidade e imaginação estilísticas com que criava a sua pintura, deixou-nos um corpus de vestidos da sua autoria ou da sua escolha, cujo conhecimento é fundamental para a compreensão da artista, nas suas várias dimensões, e do seu tempo, nas suas diversas transformações e rupturas. «A escolha meticulosa do que vestia e a forma como posava revelam que ela sabia claramente a imagem que queria projectar e imortalizar», diz a autora deste ensaio, Anabela Becho, historiadora de moda, curadora e investigadora.