Assunto
Pós-verdade, mentira e mundo comum
Myriam Revault d’Allonnes

Sobre a noção de pós-verdade, que o dicionário de Oxford elegeu como a «palavra do ano» de 2016, escreveu Myriam Revault d’Allonnes um livro intitulado, na tradução portuguesa, A Verdade Frágil. Neste artigo, a filósofa francesa, professora emérita na École Pratique des Hautes Études, retoma a sua reflexão sobre esse conceito para mostrar que ele não pode ser confundido com a tradicional mentira e para o situar na sua relação quer com a democracia, quer com os regimes totalitários.

Nos últimos anos, fomos confrontados com a irrupção de um conceito — a «pós-verdade» — que não só invadiu a cena política e mediática, como o próprio léxico comum. De tal forma que o termo foi nomeado «palavra do ano» de 2016 pelo respeitável dicionário de Oxford. Com efeito, a sua utilização aumentara 2000% em relação ao ano precedente. Dois acontecimentos marcantes desencadearam esta proliferação: a campanha do Brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos da América.

De acordo com o dicionário de Oxford, a «pós-verdade» refere-se «às circunstâncias nas quais os factos objectivos têm menos influência na opinião pública do que aqueles que apelam à emoção ou às crenças pessoais». Pouco importa se a realidade dos factos informa ou não as opiniões, o que conta é o impacto da mensagem e a eficácia do «fazer crer». Poder-se-ia facilmente objectar que nada disto é novo e que é frequente — e há muito — que a capacidade do discurso político para modelar a opinião pública se baseie nos sentimentos, nas emoções e nas paixões, e não no apelo ao juízo e à reflexão.

A esta constatação, o dicionário acrescenta uma observação mais interessante: a noção à qual o prefixo «pós-» se vem juntar — isto é, a verdade — tornou-se inessencial, secundária, quando não irrelevante. A ruptura decisiva, se houve alguma, deveu-se, portanto, ao facto de a própria verdade se ter tornado obsoleta ou sem pertinência. Ela deixou de ter qualquer efeito sobre a realidade. Dito de outra forma, a «pós-verdade» não se refere à emergência de uma era de mentira generalizada que sucederia à era do triunfo da verdade. Com efeito, a mentira distorce, trunca, dissimula ou nega a verdade, mas não a abole. Ela não a faz desaparecer enquanto referência normativa. Ela não anula a diferença entre o verdadeiro e o falso.

O mesmo não acontece com a pós-verdade: ela apaga a própria divisão entre o verdadeiro e o falso, baralha de tal forma os pontos de referência e as fronteiras que instaura um regime de indiferença assumida em relação à verdade. Este fenómeno — ou melhor, as condições que o facilitam — tem sido frequentemente abordado pelo prisma das fake news e da sua difusão viral na Internet e nas diversas redes sociais. Por muito que os jornalistas tentem resistir-lhe opondo-lhe procedimentos de rectificação e de verificação das informações (o fact-checking), o processo parece irreversível. E, desde 2016, o fenómeno generalizou-se ainda mais, como ficou patente na difusão maciça de notícias falsas pelo candidato Jair Bolsonaro durante a campanha para as eleições presidenciais no Brasil, ou nas técnicas de guerra de informação utilizadas pelo regime de Vladimir Putin, que consistem em promover a multiplicação de mensagens antinómicas em todos os canais.

"A mentira distorce, trunca, dissimula ou nega a verdade, mas não a abole. O mesmo não acontece com a pós-verdade: ela apaga a própria divisão entre o verdadeiro e o falso."

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René Magritte, Le faux mirroir [O falso espelho], 1928 © Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

Mas a questão da «pós-verdade» merece ser considerada a jusante dos efeitos da revolução digital e até da manipulação da informação para fins políticos, mesmo sabendo que as redes sociais (nas quais a maioria dos jovens entre os dezoito e os vinte e quatro anos se informa) facilitam a proliferação de mensagens contraditórias, falsas e muitas vezes conspirativas. Na maior parte dos casos, a recepção destas informações responde ao ponto de vista daquele que deseja que elas sejam verdadeiras e para quem os «factos» reforçam as crenças e os preconceitos já existentes. Porque os algoritmos que seleccionam as informações que consultamos propõem uma visão do mundo consentânea com as nossas expectativas, não favorecendo o exercício crítico e menos ainda o confronto com posições diferentes ou opostas às nossas. Nestas condições, é pouco provável que venhamos a ser expostos a uma informação verdadeira que estimule ou alargue a nossa visão do mundo…

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Francis Picabia, Uncana, 1929 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

 

Verdade e Política

Dito isto, o facto de o termo ter surgido com tamanha amplitude na sequência de dois acontecimentos políticos leva-nos a reexaminar o fenómeno à luz de uma perspectiva bastante conhecida: verdade e política nunca se deram bem e, desde a Antiguidade, o seu conflito parece insuperável. A forma como Platão relata a morte de Sócrates é emblemática: o filósofo que ama a verdade é morto pela cidade democrática, confiada ao poder de um povo ignorante e incontrolável. Este relato inaugurou uma longa tradição de pensamento com ampla difusão. A isto podemos acrescentar a carga da expressão «maquiavelismo» (ou o adjectivo «maquiavélico»). Mesmo tendo pouco que ver com o verdadeiro pensamento político de Maquiavel, ela associa o exercício do poder à prática da mentira e da manipulação. Faz parte da essência do poder ser mau e, da política, ser maléfica: esta representação, como sabemos, generalizou-se na opinião comum.

O que nos leva a perguntar: será a pós-verdade o último avatar desta história atormentada? Será ela a encenação de um conflito ancestral sob uma forma adequada ao nosso tempo e à nossa actualidade? Alguns elementos poderiam, em parte, dar crédito a esta ideia, em particular, o facto de a ascensão dos populismos reactivar a oposição entre o «povo» e as «elites»: sabemos que os populismos se aproveitam do ressentimento contra o poder das elites (daqueles que sabem ou que é suposto saberem). Em contrapartida, uma vez que o povo não é suficientemente esclarecido para tomar decisões racionais, haverá a tentação de ceder ao poder dos especialistas… Hoje, esta tentação «epistemocrática» ou «epistocrática» faz do saber económico e de gestão a matriz de um poder pretensamente racional e que deve necessariamente ser exercido sobre um povo reduzido às suas paixões cegas e irracionais. É fácil perceber como uma certa abordagem à questão da pós-verdade é facilitada por esta oposição binária: a credulidade e o enfraquecimento da referência à verdade andam de mãos dadas com a desconfiança e a rejeição dos governos ditos «elitistas».

Na prática, a pós-verdade não é a continuação, embora sob uma forma renovada, deste antagonismo entre a posse da verdade e o exercício do poder. Porque, ao esbater as fronteiras entre o verdadeiro e o falso, ao tornar a verdade inessencial ou não-significante, ela não reafirma a ideia de que as práticas mentirosas ou manipuladoras são inerentes ao exercício do poder. Da mesma forma, também não inaugura uma era em que o triunfo da mentira substitui o reinado da verdade. Para analisar a natureza do fenómeno e os seus efeitos, é preciso reorientar de alguma forma o olhar e desconstruir um certo número de aproximações e confusões sobre a relação entre política e verdade. Na realidade, o principal problema da política não é o da sua conformidade com a verdade (racional ou científica), mas o da constituição da opinião pública e do exercício de um juízo correctamente fundamentado, o que pressupõe uma reabilitação da «opinião» (a doxa), estigmatizada por Platão por contrariar as condições de acesso à verdade.

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