Assunto
A verdade sobre a mentira na política
Martin Jay

Martin Jay é professor emérito na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e a sua extensa obra, cruzando diversas disciplinas, abarca a área da teoria crítica da cultura, da filosofia, da sociologia, da cultura visual. Autor de um livro sobre o uso da mentira na política, The Virtues of Mendacity: On Lying in Politics, é precisamente desse tema que trata este artigo.

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Francis Picabia, Transparence (Deux Têtes) [Transparência (Duas cabeças)], 1935 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

 

Quando saiu em 2010, o meu livro The Virtues of Mendacity: On Lying in Politics tinha na capa uma reprodução da célebre pintura de Grant Wood «Parson Weems’ Fable»1. Nela, Mason L. «Parson» Weems, o autor de uma biografia hagiográfica de George Washington, é retratado a puxar uma cortina de teatro e a apontar para uma cena em que o futuro «pai da nação», então com seis anos, confessa a seu pai ter cortado uma cerejeira. O encómio que o pai faz ao filho, perdoando-o por ter dito a verdade, fez desta uma das histórias mais apreciadas do folclore político americano quando, na década de 1830, foi incluída nos popularíssimos manuais para crianças McGuffey Reader.

Contudo, tal como sugere astutamente Wood ao representar o episódio como uma encenação de Weems, trata-se na realidade de uma fábula descaradamente plagiada do escritor britânico James Beattie. De maneira a insistir nas origens duvidosas das lendas em torno de George Washington, Wood colocou em pano de fundo duas pequenas figuras a colher os frutos de outra árvore. Se virmos mais de perto, é evidente que são escravos negros como os que a família Washington possuía na sua plantação na Virgínia, dez dos quais herdados por George após a morte do pai. Ao longo do tempo, veio a adquirir outras centenas; foi proprietário de escravos durante 56 anos e adiou-lhes a emancipação até depois de morrer. Estes factos inconvenientes e outros igualmente desconhecidos do grande público têm sido usados por alguns revisionistas históricos para pôr em causa o ano de 1776 como a data emblemática da fundação dos EUA, sugerindo antes o de 1619, ano em que chegaram os primeiros africanos à América do Norte, trazidos da colónia portuguesa de Luanda.

Quando, alguns anos mais tarde, o meu livro foi traduzido para russo, os editores aperceberam-se de que a lenda de George Washington e da cerejeira não teria ressonância no público local, e decoraram a capa com uma imagem muito diferente. Escolheram uma fotografia de Churchill, Roosevelt e Estaline sentados lado a lado na Conferência de Ialta em 1945, de sorrisos cordiais no rosto para dar ares de concórdia e harmonia. Os «Três Grandes» tinham aí comparecido para planear o futuro de uma Europa libertada após a derrota da Alemanha nazi. A declaração que se seguiu ao encontro prometia aos europeus «criar instituições democráticas à sua escolha» através de eleições livres. Como ficou claro logo a seguir à guerra, quando fez a promessa, Estaline tinha os dedos cruzados. Outros assuntos delicados, como o destino do Império Britânico, foram prudentemente deixados por resolver. Quando, pouco depois, começou a Guerra Fria, os sorrisos desfizeram-se com a evidência de que a demonstração de união em Ialta tinha sido uma fachada que escondia os eternos conflitos de interesses e de ideologias que dividiam as potências.

"A crença numa mentira depende, em grande parte pelo menos, da credibilidade da sua asserção e da confiança, mesmo que equivocada, na honestidade de quem a enuncia."

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William N. Copley, Father, Dear Father, Come Home with Me Now, The Clock in The Steeple Strikes One [Pai, querido pai, vem para casa comigo agora, que bate a uma no relógio do campanário], 1966 © Fotografia: Cortesia Galerie Max Hetzler, Berlim / Artists Rights Society (ARS), Nova Iorque / SPA, Lisboa

 

O que a troca de capas do livro revelou foram as relações íntimas e complexas entre política e mendacidade, relações regularmente denunciadas, mas que assumem muitas formas para diferentes propósitos e com várias justificações possíveis. No caso da história fabricada por Parson Weems, a mentira servia para distinguir simbolicamente os EUA do seu progenitor britânico hipócrita e dissimulado, afirmando-o como um novo país onde se honra a sinceridade. A mensagem implícita era a de que o nosso mais distinto pai fundador era um homem íntegro e transparente que definiu um padrão de liderança política virtuosa a respeitar nesta democracia incipiente. Uma questão que não se abordava com a mesma franqueza era a de como se enquadrava a escravatura numa Declaração da Independência que afirmava que «todos os homens são criados iguais»2. Como fábula, é um exemplo típico entre tantas histórias fundacionais questionáveis usadas para legitimar um corpo político com origens pouco inocentes. É demonstrativa do papel que o mito e a lenda desempenham no domínio da legitimação política em geral, na qual reivindicações de soberania sobre território e representações daquele sujeito sempre evasivo chamado «povo» se fundam frequentemente em narrativas duvidosas que uma investigação histórica séria facilmente desconstruiria.

A capa russa conta uma história diferente. Aqui, a duplicidade é típica das alianças políticas tanto internas como externas, alianças frágeis por inerência, formadas habitualmente com o propósito de combater um inimigo comum e não se mantendo para lá do fim da disputa. Veja-se, por exemplo, os políticos que se atacam veementemente durante a primeira fase de uma campanha eleitoral — as eleições primárias na política americana ou as legislativas na Europa antes da formação de coligações. Eleito um dos candidatos, os ataques são rapidamente esquecidos, e os derrotados resignam-se e fazem grandes louvores ao vencedor. Em algum momento do processo, talvez até em todos os momentos, alguém faz um jogo dissimulado. Um exemplo cómico recente é o da montanha-russa de atitudes do senador Lindsey Graham, da Carolina do Sul, ora desdenhoso, ora bajulador em relação a Donald Trump3.

Muito mais pode dizer-se sobre os variados papéis que os discursos tendenciosos, obscuros, embelezados ou pura e simplesmente mentirosos desempenharam e continuam a desempenhar na política. Contudo, no espaço que tenho ao dispor, posso apenas oferecer algumas observações dignas de nota. O que se deve reconhecer em primeiro lugar é que, sem pelo menos alguma fé na honestidade e na integridade de quem nela participa, a política, tal como praticamente todos os outros modos de interacção humana, não funciona. A hipocrisia, como nos disse há muito La Rochefoucauld, é «a homenagem que o vício presta à virtude». Seja qual for o contexto, não se consegue enganar o outro com uma mentira sem que o modo de comunicação por defeito seja o de dizer a verdade. A crença numa mentira depende, em grande parte pelo menos, da credibilidade da sua asserção e da confiança, mesmo que equivocada, na honestidade de quem a enuncia.

E porém, como observou Hannah Arendt, «nunca ninguém teve dúvidas de que a verdade e a política têm uma má relação, e nunca ninguém, que eu saiba, contou a honestidade entre as virtudes políticas»4. A política, afinal de contas, é um empreendimento tão antagónico quanto colaborativo, onde o que está em jogo justifica praticamente todos os meios para se alcançar a vitória. Mais do que intrinsecamente imoral, ela é um espaço onde se entrechocam moralidades e interesses em competição — pense-se no debate em torno do direito ao aborto —, de tal forma que abre uma clivagem entre valores nobres e as tácticas impiedosas usadas para os defender. Além disso, a verdadeira moeda de troca da política são as opiniões, que podem ser voláteis, ambivalentes e rudimentares, e não os factos sólidos e irrefutáveis. De resto, a política é feita também da competição entre narrativas incomensuráveis formadas por memórias históricas concorrentes que projectam metas potenciais em futuros ainda por realizar. Mesmo quando a luta pelo poder não envolve violência, ou a ameaça de violência, a política recorre tanto à sedução da retórica e das imagens quanto à força persuasiva do melhor argumento numa deliberação racional.

1. Martin Jay, The Virtues of Mendacity: On Lying in Politics, Charlottesville: University of Virginia Press, 2010. Pintada em 1939, a obra está exposta no Museu Amon Carter de Arte Americana, em Fort Worth, no Texas.
2. É claro que George Washington não assinou a Declaração, estando já nessa altura no terreno a combater os britânicos, mas apoiava-a integralmente. Quando John Hancock lha enviou para que fosse proclamada, de imediato fez que fosse lida às tropas em 9 de Julho de 1776.
3. Quem precisar de relembrar, veja Sam Van Pykeren, «All of Lindsey Graham’s Flagrantly Self-Serving Flip-Flops on Trump: A 5-Act Play», Mother Jones, 11.01.2021.
4. Hannah Arendt, «Truth in Politics», The Portable Hannah Arendt Reader, P. Baehr (ed.), Nova Iorque: Penguin, 2000, p. 545.

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