Assunto
Élisabeth Roudinesco: O narcisismo das pequenas e das grandes diferenças
António Guerreiro

Nesta entrevista, a célebre psicanalista, ensaísta e historiadora Élisabeth Roudinesco fala da inflação da «cultura identitária», com forte acento narcísico das figurações e comportamentos sociais, à qual corresponde um certo abandono de antigos ideais emancipatórios.

Élisabeth Roudinesco é psicanalista e autora de uma vasta obra de teoria psicanalítica e sobre a história da psicanálise. Dos seus trabalhos nesta área, devemos destacar uma biografia de Freud e outra de Lacan, assim como um dicionário de psicanálise (do qual Michel Plon é co-autor). Um diálogo que manteve com Derrida resultou num livro que tem por título De quoi demain…

A entrevista que lhe fizemos incide quase exclusivamente na matéria que constitui o seu último livro, Soi-même comme un roi. Essai sur les dérives identitaires (2021). Trata-se de um livro que entra com um forte teor polémico nas questões da identidade que estão no centro de um debate contemporâneo muito vivo e sem fim, com divisões e campos ideologicamente bem demarcados. Élisabeth Roudinesco lança-se numa crítica da lógica comunitarista das identidades (os movimentos feministas e anti-racistas mais recentes são o seu principal alvo), por, segundo ela, corresponder ao abandono das reivindicações de carácter universalista e com dimensão emancipatória. Identificando algumas derivas identitárias bem acentuadas, Roudinesco defende no seu livro que se chegou a resultados opostos à intenção inicial. Mas este livro também traça algumas linhas que delimitam zonas da paisagem social do nosso tempo, como são os sintomas exacerbados de um narcisismo generalizado.

ANTÓNIO GUERREIRO  O seu livro Soi-même comme un roi tem como subtítulo Essai sur les dérives identitaires. A utilização da palavra «deriva» implica já a ideia de um desvio, de uma mudança de direcção. Começo por lhe pedir que fale desses desvios.

ÉLISABETH ROUDINESCO  O que é que divergiu? Começámos, com muito boas intenções, a tentar estudar as discriminações e as identidades, partindo de autores como Derrida e Foucault, a estudar a questão do género como diferente do sexo, e a mostrar que tínhamos passado a considerar o que há de construção, e não apenas a biologia, o género, o sexo, etc. E o mesmo se aplica à questão da raça, que não existe, muito embora exista o racismo. Mostrei então que, no espaço de duas décadas, as coisas tinham ido na direcção oposta. O projecto inicial era o de libertar as subjectividades, compreender melhor os compromissos colectivos, as questões da exploração e da discriminação ligadas à identidade. Mas houve uma deriva na direcção contrária à da emancipação. E chegámos a algo oposto ao que tinha começado com Edward Said, Foucault, Derrida: às classificações identitárias. Estamos hoje mergulhados nelas. Analiso no meu livro muitos autores que vieram depois de Derrida e de Foucault, tais como Homi Bhabha, Judith Butler, Spivak e muitos outros. E mostro que o resultado é a exclusão e a privação de liberdade. Começa-se com objectivos de emancipação e chega-se ao lugar oposto — deu-se uma deriva.

AG  É o que acontece também com os regimes e os movimentos políticos.

ER  Sim, é de facto o que acontece com todos os movimentos de emancipação. Acaba por se instituir um catecismo, geralmente acompanhado por um vocabulário terrível de dogmas e raciocínios absurdos. No que diz respeito ao identitarismo nacionalista de extrema-direita, aí não há qualquer deriva, segue sempre no mesmo caminho, é sempre igual na forma como refere a raça, o género, etc. O meu livro teve um destino muito estranho, porque foi atacado pela esquerda e pela direita.

"Quanto ao feminismo, devo dizer que considero o neo‑feminismo muito pouco atractivo."

AG  É fácil compreender as razões desse duplo ataque.

ER  Obviamente, era muito difícil em França chamarem-me, por exemplo, homofóbica ou reaccionária de direita. Fiz campanha a favor do casamento homossexual e de todos os movimentos de emancipação. Mas a questão trans interpela-me de outra maneira, sobretudo se se trata de crianças e de adolescentes. Na minha opinião, o movimento transgénero nada tem que ver com a emancipação de uma identidade, como a dos homossexuais. No meu livro sou muito clara quanto aos adultos que querem mudar de sexo: podem recorrer às clínicas, às cirurgias e medicamentos de que precisam e ninguém se deve opor. Isto não se trata de emancipação, porque é preciso recorrer a cirurgia. De resto, num livro anterior tinha feito esta pergunta: o que é que faz com que o impulso identitário das pessoas transgénero seja tão forte que decidam submeter-se a cirurgias fisicamente terríveis, de reconstrução e ablação (do pénis, nos homens, dos seios, nas mulheres) e a tratamentos hormonais para toda a vida? Isto é algo sobre o qual não temos nada a dizer, foi desclassificado pela psiquiatria porque não é uma psicose, não é uma neurose, não é uma perversão, não se enquadra na nomenclatura psiquiátrica.

AG  Nos escritos de Freud há alguma referência a este assunto?

ER  A questão não se colocava na altura, porque a cirurgia para mudar de sexo não existia. Os transexuais de hoje eram então travestis. Foram os pós-freudianos que levantaram a questão e, em particular, o grande psicanalista Robert Stoller, que se interessou por aquilo a que se chamou «transexualidade» logo que a cirurgia a tornou possível. Enquanto a cirurgia não existiu, a transexualidade era vista do lado da bissexualidade, do travestismo ou da convicção de se pertencer ao sexo oposto. A minha posição é esta: quem quer mudar anatomicamente de sexo pode fazê-lo se for adulto. A questão que me interessa é a das crianças e adolescentes que manifestam o desejo de o fazer. Há leis em toda a Europa que dizem que um menor não tem a idade de consentimento. Para as relações sexuais, a idade legal é a partir dos quinze anos. Temos o direito de encaminhar alguém que o pede, quando é menor, para tratamentos extremamente graves, para uma cirurgia com efeitos irreversíveis? Sou contra. Penso que temos de proteger o corpo da criança. Acho que não podemos ter uma sociedade que protege as crianças de todas as agressões possíveis e, ao mesmo tempo, lhes permite actuarem sobre o próprio corpo. Há outras formas de tratar estas crianças ou adolescentes e esperar para ver se o desejo de mudar de sexo é tão forte que se mantém a partir dos dezoito anos. A realidade parece dar-me razão, já que os dados nos dizem que 50% das crianças e adolescentes podem mudar de opinião. Penso que estamos a caminhar para uma legislação extremamente liberal.

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