Estamos no início de Setembro de 2023 e dirijo-me para La Goulette, no porto de Túnis, bem perto do local onde atracam os ferries vindos da Europa. Ao lado, as ruínas romanas de Cartago. La Goulette foi um famoso santuário mediterrânico de piratas durante a ocupação otomana. No século XIX era conhecido como «la petite Sicile», aí vivia uma animada comunidade judaica, italiana e maltesa. Claudia Cardinale nasceu aqui. Esta noite vou assistir a um concerto de Badiaa Bouhrizi, conhecida artisticamente como Neysatu, uma cantautora e compositora conhecida pela sua resistência política e por ser uma voz pela justiça social e a liberdade. Badiaa ganhou vários prémios e o seu primeiro álbum, KahruMusiqa, lançado em 2023, foi um sucesso da crítica. Nos dias seguintes, falámos de música, política, djinns e identidades africanas.
Prosseguindo a sua viagem por terras do Mediterrâneo, André Príncipe foi à Tunísia. Em La Goulette, no porto de Túnis, chamada no século XIX «la petite Sicile», assiste a um concerto de Badiaa Bouhrizi, conhecida pelo nome artístico de Neysatu. É com esta cantora, autora e compositora, militante das causas da liberdade e da justiça social, que o fotógrafo e editor conversa, para a Electra, sobre política, música, djinns e identidades africanas. As palavras juntam-se aqui às imagens numa entrevista que fala de alguns dos temas da nossa contemporaneidade global.
ANDRÉ PRÍNCIPE Quando e onde nasceste?
BADIAA BOUHRIZI Nasci em Túnis a 4 de Outubro de 1979, há muito tempo! Cresci em El-Kabaria, um subúrbio muito popular entre trabalhadores e funcionários públicos de ministérios, que construíram as suas casas ali. À volta só havia guetos. As pessoas viviam em casas feitas de argila e chapa de zinco. Cresci rodeada de gente. Senti-me privilegiada em relação aos outros. Só mais tarde me apercebi de que fui pobre. Sou a mais velha de cinco irmãos e era uma espécie de génio lá do bairro, por ser tão boa aluna. A minha família veio do Noroeste da Tunísia, uma zona muito rural e pobre, apesar de ser a principal área agrícola do país. Nós alimentamos a Tunísia, mas depois passamos fome! A música faz parte da minha família, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Todos tocam instrumentos beduínos, por exemplo, uma espécie de flauta chamada gasba. Eram todos músicos e cantores.
AP O que ouvias na altura?
BB Na escola cantávamos canções da Fairuz1. Por todo o mundo árabe, Fairuz é a cantora das manhãs. Todas as rádios da Tunísia passam músicas dela das sete às dez da manhã. As letras são apropriadas para crianças. Não são canções de amor cheias de desejo… Mais tarde, Led Zeppelin, Pink Floyd. Eram os anos 90. Tínhamos todos a mesma mentalidade. A música era um sintoma dos nossos interesses. Estávamos muito interessados em filosofia e numa visão política e poética da vida. Depois comecei a interessar-me pelo jazz, por África. Um grupo de amigos foi tocar num festival de jazz em Tabarka, no Noroeste da Tunísia, junto ao mar. Todas as noites havia uma jam session e tocávamos juntos; tínhamos uma ligação incrível. Quando voltámos a Túnis, decidimos criar uma banda de improvisação absoluta. Isto abriu a porta para nos sentirmos livres, para ganharmos confiança em palco, em nós próprios e na nossa ligação com os outros. O que sentimos é mais importante do que a estética do que vamos tocar. Não devemos tentar construir emoções que não temos. Acabei o liceu e entrei na Universidade de Túnis. Estudei literatura e cultura inglesas. Perto do final do segundo ano, aconteceu-me uma coisa! Fui assediada num eléctrico. Os outros passageiros ficaram do lado dele! Lembro-me de me sentir amarga por dentro. As pessoas agarraram-me,Príncipeenquanto ele ficou livre. Nesse dia, pensei: chega de Tunísia. Preciso de sair daqui. Fartei-me de ser agredida todos os dias.
AP Que idade tinhas?
BB Uns dezanove ou vinte anos.
AP Foi a tua experiência como mulher que te fez querer partir?
BB Foi mais a percepção de que me tinha fartado. Tinha estado em Paris de férias e aí senti-me segura. Dois anos antes tinha sido aceite na Sorbonne para estudar literatura inglesa. Na altura não fui, porque estava apaixonada. Quando cheguei a França, tentei inscrever-me numa escola de música. Foi numa universidade de esquerda, a Paris 8 Saint-Denis. Mas no terceiro ano percebi que não queria estudar musicologia ou ensino. Queria praticar. Também tocava, sobretudo durante o período da universidade. Isso fazia parte dos meus estudos. Em vez de treinarmos em casa os ritmos, íamos à batucada. Tínhamos de aprender rapidamente, a 70 bpm e depois a 100, 120, 140. Foi um período fixe. Participávamos em todas as jams de jazz de Paris. No final de 2007, apaixonei-me de novo, por isso mudámo-nos para Inglaterra e decidimos só fazer música. Passei a viver em Brixton, um bairro jamaicano. Em Dezembro, já tinha uma banda de afrobeat jazz chamada Awalé. O nome vem de um jogo matemático africano, que se joga movendo as peças de um buraco para outro. Tocámos em muitos festivais de Inglaterra. Cantava em inglês, francês e árabe. É possível fazer isso em Londres. Tocávamos ao vivo durante a noite, até às cinco da manhã.
AP Quanto tempo ficaste em Londres?
BB Até ao início de 2012. Em 2010, a minha música começou a circular pela Tunísia em pen drives. Algumas canções eram bastante políticas, por isso usava um pseudónimo. Eu falava da hipocrisia do Governo. Da sua manipulação religiosa e da opressão da religião. Da venda do país ao turismo. Quando era estudante em França e vinha à Tunísia, via como a Polícia tratava as pessoas. Batia em miúdos pobres de dez anos só por cantarem no eléctrico. Em 2008, toquei num pequeno festival que organizámos. Foi na praia de Kélibia. Os músicos actuaram de graça, promovendo o evento com um burro que andava pela aldeia. A Polícia veio com um papel para todos escrevermos o nosso nome completo, número de identificação e assinarmos, dizendo que não nos íamos embebedar ou usar drogas. A verdadeira razão era muito clara. Queriam ficar com as identidades de toda a gente. Dei-lhes um nome falso! Dois todo-o-terreno dos Serviços Secretos permaneceram junto ao palco enquanto tocávamos. Por essa altura aconteceu a primeira revolta nas zonas mineiras, em Gafsa Redeyef. Houve protestos, insurreições. Pela primeira vez desde 1983, a Polícia abriu fogo. Um miúdo foi morto. Chamava-se Hafnewy Maghzawy. Esse miúdo veio de uma aldeia muito pequena que é o epicentro da prospecção mineira de fosfato. Nessa altura, éramos o quarto produtor de fosfato do mundo, havia muita poluição. As pessoas que aí vivem desenvolvem cancros. É um lugar rochoso e arenoso, um dos mais miseráveis que já vi. O miúdo tinha dezassete anos. Ele nem era a favor da revolução, mas quando não há soluções, passas fome. A canção não documenta o seu assassínio, tenta antes imaginar o que lhe passava pela cabeça. Ele ergueu a cabeça, falou, estava a ser oprimido. Um verso interpela os polícias. Eu sou filha de um polícia. Sei como vivem. Sei que éramos pobres. O facto de empunhares uma arma e tirares a vida de alguém é uma aberração. Não é a realidade que encontramos em Cartago. Lembro-me de começar a cantar, mas a minha voz fugia. No festival pediram-me: «Por favor, nada político.» Se não for político, não posso cantar nada! Disse aos organizadores, que eram meus amigos, que não cantaria nada político, mas cantei.
AP Os polícias saíram dos carros?
BB Não aconteceu nada.
AP Não estavam a ouvir. Ou fingiram não estar.
BB Nessa noite, tive uma revelação. Porque é que eu, como artista, devo ser a voz? A Polícia não veio porque havia muitos olhos sobre mim, que me protegiam. E eu protejo o público porque eles não precisam de dizer nada. Permanecem anónimos. Limitam-se a bater palmas e a concordar.
AP Tu protege-los e eles protegem-te a ti.
BB Exacto. O público não está a dizer as palavras. Gostei dessa troca de poder. Senti-me poderosa e, no final, toquei o concerto em frente da Polícia. Conseguia vê-los da varanda. A partir desse dia não podia tocar em Túnis. Só lá pude voltar a tocar em 2011, depois da revolução.
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