Assunto
Arquitecturas da desatenção
Mark Wigley

Neste ensaio, Mark Wigley pensa o lugar da arquitectura na nova economia da atenção. Com um olhar no passado histórico e outro no futuro tecnológico, analisa os discursos sobre e produzidos pela arquitectura, procurando as continuidades e as descontinuidades no tempo. Interroga-se também sobre o que é prestar atenção à arquitectura. Professor em várias universidades como as de Princeton e de Columbia, nos EUA, Wigley é arquitecto, historiador, teórico, crítico e foi curador de várias exposições de referência, entre outras, no MoMA de Nova Iorque.

Que significa hoje prestar atenção à arquitectura? O que é a arquitectura nesta economia da atenção que engole o mundo, na qual cada neurónio que dispara é registado em tempo real e monetizado num vasto sistema de micro-extracção? O que é a arquitectura quando os humanos não são mais do que contínuas fontes e recipientes de dados, observados em permanência por uma Inteligência Artificial que identifica padrões na complexidade aparentemente acidental e produz novos padrões de toda a vez que isso possa garantir vantagem financeira, ou seja, sempre? Que é a arquitectura quando o cérebro se tornou a nova área de produção, mesmo durante o sono, e quando o trabalho se tornou uma espécie de sonambulismo? Terá alguma coisa mudado em relação a outros tempos? Será que a própria ideia de que vivemos num novo mundo de atenção hipermercantilizada faz parte de um grilhão que desde tempos antigos, imemoriais, sujeita a nossa espécie? Para prestarmos atenção à maneira como hoje prestamos atenção à arquitectura, não precisamos de pensar como o fazíamos, «nós», anteriormente? Que tal uma história um pouco mais longa, agora que vivemos uma história dia-a-dia, até mesmo segundo-a-segundo, de cliques, pesquisas, publicações, compras e gostos? Uma história, então, que não procure as realidades autênticas de que nos distraímos. Pelo contrário, uma história do presente, uma história da desatenção programada.

No seu sentido mais óbvio, prestar atenção à arquitectura é olhar para um edifício. Não de relance, mas sim entregando-lhe inteiramente a nossa atenção, mesmo que só por um instante. Olhar para um edifício nunca é simples, normal ou inocente. É preciso interromper os ritmos inconscientes da vida quotidiana, abrandar, hesitar, parar de pensar em tudo o resto e sintonizar os sentidos para um objecto enorme e aparentemente estático — e atentar em algumas das suas principais qualidades: qualidades visuais como forma, textura, cor, luz, sombra, reflexos, padrões, sequências, ritmos, espaçamentos, escalas; qualidades hápticas como toque, suavidade, temperatura, humidade, odor, movimento, circulação de ar, vibração; qualidades acústicas como reverberação, rangidos, vento, abafamento, silêncio; sentidos da vida orgânica, decomposição, organização, inscrições; e por aí em diante. Não há limites para aquilo em que se pode atentar num edifício, nem para as maneiras de atentar. Tudo o que é perceptível pode ser abordado, sejam poucas ou muitas coisas, em qualquer combinação ou sequência, por alguns segundos ou algumas horas, de maneira intermitente ou contínua. Tal como um edifício é composto por inúmeros elementos ocultos, o seu efeito palpável é composto por inúmeras sensações. A reunião dos materiais produz edifícios que reúnem sensações. Os arquitectos constroem a possibilidade de nos sintonizarmos conscientemente com essas sensações. Contudo, prestar atenção à arquitectura não é apenas experienciar sensações, é atentar nelas, é vermo-nos a ver, sentirmo-nos a sentir e ouvirmo-nos a ouvir. Prestar atenção é uma acção, uma forma de trabalho auto-reflexivo.

"Os arquitectos têm de oferecer uma espécie de hospitalidade ao olho antes de a oferecerem ao resto do corpo."

mantegna

Andrea Mantegna, Camera degli Sposi [Sala dos esposos], 1474 (detalhe: óculo central) © Fotografia: Scala, Florença / Cortesia do Ministero dei Beni e della Attività Culturali e del Turismo / Palácio Ducal, Mântua

 

O discurso sobre a arquitectura — pois não há arquitectura sem discurso, seja ele produzido por arquitectos, ocupantes, visitantes, comunidades, músicos,poetas, romancistas, bloggers, políticos, historiadores, teóricos ou críticos — está repleto de descrições das qualidades sensoriais dos edifícios. Há uma linguagem da sensação somática mesmo quando — o que é comum — o discurso é sobre fotografias de edifícios, filmes, realidade virtual, maquetes ou desenhos. Ainda que a maneira mais óbvia de prestar atenção à arquitectura seja simplesmente olhar para edifícios, nenhum discurso arquitectónico é puramente visual, e o visual é de alguma maneira pensado como suspenso entre os outros sentidos e moldado por eles.

Por exemplo, o tratado de Vitrúvio que pela primeira vez formalizou o discurso arquitectónico ocidental, escrito por volta de 25 a.C., quando era imperador César Augusto, centrava a experiência arquitectónica no reconhecimento visual da proporção. Isto significava: tudo perceptível no ângulo certo, na dimensão certa, no lugar adequado, e um todo formado pela harmonia entre as partes. Mas este texto canónico que organizou a disciplina da arquitectura durante séculos também discutia odor, paladar, temperatura, humidade, dureza, lisura e liquidez. Defendia, de facto, que a própria vista é somática, é mesmo uma forma de trabalho, e que é afectada pelo esforço que lhe exige aquilo que ela vê: «o olho é compelido a fazer uma viagem mais longa onde encontra estímulos mais numerosos e mais frequentes»1. Os arquitectos têm de oferecer uma espécie de hospitalidade ao olho antes de a oferecerem ao resto do corpo. É possível refrescar e aguçar o olho logo que o corpo absorva o ar fresco produzido pelas plantas que os arquitectos devem posicionar entre pórticos, ao longo dos corredores e nos pátios: «o ar leve e subtil que vem das plantas insinua-se no corpo que se exercita e limpa a visão, removendo a humidade densa dos olhos e deixando a vista afinada e a imagem nítida»2. A arquitectura nunca é simplesmente algo para que olhamos, ou a partir da qual olhamos o exterior — como naquele olhar enquadrado por dispositivos clássicos como o vão da porta, a janela, o átrio ou a colunata. A arquitectura é uma maneira de ver, uma tecnologia da atenção.

A própria visão não é de confiança, já que «a mente é com frequência iludida por julgamentos visuais»3. O simples esforço de olhar para o que está lá no alto fatiga o olho, que imaginará o topo do edifício como mais distante do que aquilo que é.4 A visão não difere apenas em função de se estar acima ou abaixo, próximo ou distante, dentro ou fora do que é observado, ela pode mesmo criar falsas impressões que os edifícios têm de corrigir. São necessárias superfícies curvas para produzir a impressão tão importante de que as linhas verticais e horizontais são rectas. Nos seus centros, as colunas têm de ser mais largas e os pisos têm de se elevar, porque ambos parecem côncavos se forem rectos. As colunas também têm de se inclinar para dentro para que os seus ângulos pareçam rectos, e as que estão nos cantos têm de ser mais espessas, porque, tendo mais ar em torno delas, parecem mais estreitas. As fachadas têm de estar inclinadas para parecerem verticais. Os desvios são necessários para criar o efeito de normalidade. Aliás, a própria palavra «normal» deriva de norma, o nome dado ao esquadro usado pelos construtores na Roma Antiga. Mas o construtor tem de fazer uma estrutura com ângulos não rectos para produzir o efeito do recto. Os arquitectos reúnem distorções em nome da verdade.5 Não é o objecto que é belo, mas sim o seu efeito na mente. A experiência da harmonia visual requer uma colaboração íntima entre edifício e olho que satisfaça a mente.

Cada viragem no discurso arquitectónico — o que inclui os intermináveis debates e interpretações de Vitrúvio — propõe uma atenção diferente prestada aos edifícios, um foco em diferentes qualidades. A série de qualidades privilegiadas, por si só, já define posições em diálogos que atravessam gerações e territórios. O mesmo edifício é visto de maneira diferente por diferentes grupos, e cada grupo pode vê-lo de maneiras diferentes ao longo do tempo, à medida que o seu pensamento se transforma. É possível fazer uma história surpreendentemente completa da arquitectura documentando as sensações privilegiadas a cada momento e em cada lugar. Os membros de um grupo revelam-se enquanto tal quando partilham essas sensações. Contudo, os habitantes de um mesmo edifício, de uma rua ou de um bairro não formam um grupo, posto não verem necessariamente as mesmas coisas no ambiente que partilham. Cada um é afectado pelo que os outros vêem em torno deles, mas aquilo que vêem está provavelmente mais relacionado com o lugar de onde vêm ou para onde imaginam que vão, com o que consomem nas redes sociais ou com os livros que leram. Em certo sentido, duas pessoas numa sala ocupam habitualmente salas diferentes, e cada uma delas poderá ocupar mais do que uma sala de cada vez, variando entre sentidos consoante o estado de espírito, uma chamada recente, uma boa chávena de café ou uma mudança na música, e por aí em diante. Não é exagero dizer que nada há de claro e evidente nas sensações arquitectónicas.

[...]

1. Vitrúvio, Ten Books on Architecture, Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 59.
2. Ibid., p. 71.
3. Ibid., p. 78.
4. «Pois quando o olhar é dirigido mais e mais alto, penetra a densidade do ar com maior dificuldade; tende então a cair, esgotado pelo grau e a força da altitude, e devolve aos sentidos uma avaliação incerta da dimensão. Razão pela qual deve sempre ser feito um incremento aos elementos do sistema proporcional.» Ibid., p. 52.
5. «Assim, seja pelo impacto das imagens na nossa visão ou pela acção dos raios lançados pelos nossos olhos, como o julgaram os físicos, por qualquer razão parece ser o caso que os nossos olhos fazem falsos julgamentos. Portanto, se parecem falsas coisas que são verdadeiras, e muitas coisas são tomadas pelos nossos olhos como diferentes daquilo que são, penso que não deve haver dúvida de que será adequado fazer adições e subtracções de acordo com as naturezas e os requisitos dos locais.» Ibid., p. 78.