Quem deu esta entrevista é autor de uma vastíssima e muito interessante obra de crítica cultural e ensaísmo detectivesco. Chamamos «detectivesco» a um ensaísmo que, como nos romances policiais e nos thrillers de espionagem, descobre e revela o que se esconde, persegue as informações, desvela os segredos, enfatiza os perigos, interpreta os sinais, identifica as fugas e as mudanças. Dispondo de um poderoso «serviço de inteligência» crítica, consegue desenredar enigmas e desfazer mistérios, mesmo quando a seguir cria outros não menos densos e intrigantes. Um dos seus últimos livros trata de um tema tão pertinente (e também tão impertinente) como o jornalismo cultural e o que com ele se tem passado nas últimas décadas.
Nesta entrevista que a Electra publica, as ideias decorrem umas das outras e correm umas para as outras, propondo hipóteses de compreensão, modos de interpelação e formas de inquirição (satírica e auto-satírica). É a isto que se chama «pensamento crítico», convocando, para o acto em que esse pensamento se pode ensaiar, séculos e séculos que foram sedimentando aquilo a que chamamos cultura.
Amigo e cúmplice de Hans Magnus Enzensberger — o grande escritor alemão que morreu recentemente e sobre quem escreveu para a Electra 18 —, Berardinelli, mais do que um mestre de leitura, como George Steiner se gostava de chamar, é sobretudo, assim dizia Fernando Pessoa, «um indisciplinador de almas».
Se, neste Editorial, citamos uma passagem de uma entrevista que se pode ler mais à frente, é porque ela afirma e confirma uma grande carência crítica do tempo em que vivemos e dá sentido à necessidade, que o nosso programa editorial identifica e consciencializa, de a tentar atenuar.
De facto, ao longo das edições da Electra e tendo como propósito os temas que fomos tratando, procurámos dar ao espírito crítico as oportunidades em que ele se vai exercendo, cumprindo e desenvolvendo, numa abertura intencional e constante às formas verbais e visuais em que esse espírito se pode declarar e aprofundar incansavelmente.
A crítica da política, da cultura e da sociedade, para ser autêntica, profunda e consequente, exige uma coragem de lucidez e transgressão, de risco e de audácia intelectual, que hoje quase ninguém parece interessado ou capaz de manifestar. Exige novas maneiras — diferentes, imaginativas, heterodoxas — de pensar.
Com uma perversidade certeira, o sistema de poder do nosso tempo conseguiu tirar potência e autoridade a todas as formas que o desafiam, contestam ou lhe criam alternativas reais, fidedignas, produtivas e por isso ameaçadoras da sua hegemonia. Absorveu-as, acomodou-as, domesticou-as, falsificou-as, apropriou-se delas, mercantilizou-as, tornando-as instrumentos que prolongam e corroboram o poder que parecem contestar.
Assim, e salvo poucas excepções, a crítica política (chamada «comentário» ou «opinião») tem-se tornado espectáculo mediático fútil, a crítica literária e artística (com as inevitáveis estrelas de classificação) é marketing editorial e mediocridade carreirista, a crítica social (com a sua academização cínica e arrogante) estimula a desigualdade e o conformismo, a crítica económica (com a sua dependência comprometedora) promove a continuação do pensamento único, a crítica desportiva (com a sua fraudulenta montagem) encena um reality show futebolístico permanente, que patrocina interesses inconfessáveis e conveniências inaceitáveis. Aliás, em todas as ocasiões em que acabámos agora de usar a palavra «crítica», poderíamos e deveríamos antecedê-la do prefixo pseudo.
Deste modo, é como se a actual «ordem das coisas», com o dispositivo controlador que a assegura e com a ideologia asfixiante e totalizadora que dela emana, não tivesse exterior ou, em nome de um artificial ou falseado ou imposto realismo, não consentisse a existência de nenhuma alternativa que ameace a sua «eternidade».
Querer ter um autêntico pensamento crítico num mundo-cenário como o nosso é quase como querer falar com voz própria no meio de uma algazarra vociferante, massificadora e que não aceita dissonâncias ou desacordos. É como querer ter uma roupa diferente de todos os que estão fardados de igual. E, no entanto, é desse propósito ético e cultural que não se deve desistir.
Com a consciência de tal imperativo, são as vozes autorais, originais e com um tom próprio que a Electra tenta escutar, atrair, captar, registar, comunicar. São essas as vozes que ainda conseguem ser atravessadas pelos sons e os sinais de um pensamento que não aceita a sua anulação, adestramento ou cerco.
Para serem vozes (ou imagens) de pensamento crítico, a primeira condição que a si mesmos impõem é a de observar a fisionomia instável e inquieta do mundo em que vivemos, com as suas mudanças, metamorfoses, transformações, rupturas e derivas radicais. É não desconhecer os novos modos de invenção, de criação, de reprodutibilidade e de proliferação. É não ignorar os métodos de sedução, aliciamento, simulacro, falsificação e manipulação. É não menosprezar os meios de controlo, homogeneização, vigilância, bloqueio, assédio, confronto e usurpação. É isso que também nos diz Alfonso Berardinelli nesta entrevista, ao mesmo tempo desobrigada e vigilante, pessoal e despersonalizada, local e universal, melancólica e militante.
Octavio Paz, também referido por Berardinelli, tinha advertido um dia:
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