Editorial
Paixão crítica
José Manuel dos Santos e António Soares

Dar tempo ao tempo é saber tirar de nós e do mundo, criando-as, as ideias, as palavras e as imagens que o fixam na sua resistente imutabilidade e o prolongam na sua insolente mobilidade. É por isso que Parménides, o mestre do ser, e Heráclito, o filósofo do devir, mantêm entre si um diálogo e uma disputa que Electra escuta com os seus ouvidos atentos. 

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António Sena, Sem título, 1980 
© Fotografia: João Neves

Electra — 5 anos, 20 edições. Ao escrevermos esta frase-síntese, estamos a falar de muitas páginas, com muitas palavras e muitas imagens. Estamos a falar do que dissemos e mostrámos, mas também do que ficou por dizer e por mostrar. Estamos a falar daquilo a que demos começo para depois darmos continuidade. Estamos a falar de um antes e do seu depois. Estamos a falar de tudo aquilo que fica de tudo aquilo que passa.

Nessas muitas páginas destas 20 edições, procurámos, dando forma ao nosso programa editorial, apresentado, como era certo que o fosse, no primeiro número da revista, olhar o tempo e o mundo a que chamamos nossos com um olhar simultaneamente empenhado e distanciado.

Empenhado, porque é um olhar atento e perscrutador, indagador e ligado ao que acontece e ao que aparece (e às vezes também ao que desaparece).

Distanciado, porque é um olhar que procura ter o recuo que permite ver o todo da parte, o oculto do visível, o avesso do direito, o subterrâneo do terreno, o fechado do aberto, o devir do ser, o retrocesso do progresso, a substância do acidente, o passado e o futuro do presente.

Com este olhar, tentamos captar as ideias, as tendências, as sensibilidades, as sabedorias, as utopias, as mitologias, as ilusões e as desilusões que fazem mover ou demover a nossa época. E também nomear, desvendar e esclarecer criticamente os lugares-comuns, os preconceitos, os erros, os enganos, as idolatrias, os fantasmas, as falsificações, as cegueiras, os esconderijos.

Numa entrevista dada a António Guerreiro e publicada nesta edição, o ensaísta e crítico literário italiano Alfonso Berardinelli lembra o que nunca deveria ter sido esquecido:

A sátira, o sentido de humor, são bastante desintoxicantes, têm uma espécie de função purificadora, difundem um pouco o sentido do ridículo… E hoje a cultura precisa disso, visto que sofre de uma superprodução intoxicante. O problema da cultura actual é que ela não tolera a existência da crítica. A sátira política tem uma grande difusão. A sátira cultural não existe.

Quem deu esta entrevista é autor de uma vastíssima e muito interessante obra de crítica cultural e ensaísmo detectivesco. Chamamos «detectivesco» a um ensaísmo que, como nos romances policiais e nos thrillers de espionagem, descobre e revela o que se esconde, persegue as informações, desvela os segredos, enfatiza os perigos, interpreta os sinais, identifica as fugas e as mudanças. Dispondo de um poderoso «serviço de inteligência» crítica, consegue desenredar enigmas e desfazer mistérios, mesmo quando a seguir cria outros não menos densos e intrigantes. Um dos seus últimos livros trata de um tema tão pertinente (e também tão impertinente) como o jornalismo cultural e o que com ele se tem passado nas últimas décadas.

Nesta entrevista que a Electra publica, as ideias decorrem umas das outras e correm umas para as outras, propondo hipóteses de compreensão, modos de interpelação e formas de inquirição (satírica e auto-satírica). É a isto que se chama «pensamento crítico», convocando, para o acto em que esse pensamento se pode ensaiar, séculos e séculos que foram sedimentando aquilo a que chamamos cultura.

Amigo e cúmplice de Hans Magnus Enzensberger — o grande escritor alemão que morreu recentemente e sobre quem escreveu para a Electra 18 —, Berardinelli, mais do que um mestre de leitura, como George Steiner se gostava de chamar, é sobretudo, assim dizia Fernando Pessoa, «um indisciplinador de almas».

Se, neste Editorial, citamos uma passagem de uma entrevista que se pode ler mais à frente, é porque ela afirma e confirma uma grande carência crítica do tempo em que vivemos e dá sentido à necessidade, que o nosso programa editorial identifica e consciencializa, de a tentar atenuar.

De facto, ao longo das edições da Electra e tendo como propósito os temas que fomos tratando, procurámos dar ao espírito crítico as oportunidades em que ele se vai exercendo, cumprindo e desenvolvendo, numa abertura intencional e constante às formas verbais e visuais em que esse espírito se pode declarar e aprofundar incansavelmente.

A crítica da política, da cultura e da sociedade, para ser autêntica, profunda e consequente, exige uma coragem de lucidez e transgressão, de risco e de audácia intelectual, que hoje quase ninguém parece interessado ou capaz de manifestar. Exige novas maneiras — diferentes, imaginativas, heterodoxas — de pensar.

Com uma perversidade certeira, o sistema de poder do nosso tempo conseguiu tirar potência e autoridade a todas as formas que o desafiam, contestam ou lhe criam alternativas reais, fidedignas, produtivas e por isso ameaçadoras da sua hegemonia. Absorveu-as, acomodou-as, domesticou-as, falsificou-as, apropriou-se delas, mercantilizou-as, tornando-as instrumentos que prolongam e corroboram o poder que parecem contestar.

Assim, e salvo poucas excepções, a crítica política (chamada «comentário» ou «opinião») tem-se tornado espectáculo mediático fútil, a crítica literária e artística (com as inevitáveis estrelas de classificação) é marketing editorial e mediocridade carreirista, a crítica social (com a sua academização cínica e arrogante) estimula a desigualdade e o conformismo, a crítica económica (com a sua dependência comprometedora) promove a continuação do pensamento único, a crítica desportiva (com a sua fraudulenta montagem) encena um reality show futebolístico permanente, que patrocina interesses inconfessáveis e conveniências inaceitáveis. Aliás, em todas as ocasiões em que acabámos agora de usar a palavra «crítica», poderíamos e deveríamos antecedê-la do prefixo pseudo.

Deste modo, é como se a actual «ordem das coisas», com o dispositivo controlador que a assegura e com a ideologia asfixiante e totalizadora que dela emana, não tivesse exterior ou, em nome de um artificial ou falseado ou imposto realismo, não consentisse a existência de nenhuma alternativa que ameace a sua «eternidade».

Querer ter um autêntico pensamento crítico num mundo-cenário como o nosso é quase como querer falar com voz própria no meio de uma algazarra vociferante, massificadora e que não aceita dissonâncias ou desacordos. É como querer ter uma roupa diferente de todos os que estão fardados de igual. E, no entanto, é desse propósito ético e cultural que não se deve desistir.

Com a consciência de tal imperativo, são as vozes autorais, originais e com um tom próprio que a Electra tenta escutar, atrair, captar, registar, comunicar. São essas as vozes que ainda conseguem ser atravessadas pelos sons e os sinais de um pensamento que não aceita a sua anulação, adestramento ou cerco.

Para serem vozes (ou imagens) de pensamento crítico, a primeira condição que a si mesmos impõem é a de observar a fisionomia instável e inquieta do mundo em que vivemos, com as suas mudanças, metamorfoses, transformações, rupturas e derivas radicais. É não desconhecer os novos modos de invenção, de criação, de reprodutibilidade e de proliferação. É não ignorar os métodos de sedução, aliciamento, simulacro, falsificação e manipulação. É não menosprezar os meios de controlo, homogeneização, vigilância, bloqueio, assédio, confronto e usurpação. É isso que também nos diz Alfonso Berardinelli nesta entrevista, ao mesmo tempo desobrigada e vigilante, pessoal e despersonalizada, local e universal, melancólica e militante.

Octavio Paz, também referido por Berardinelli, tinha advertido um dia:

O espírito crítico é a grande conquista da idade moderna. A nossa civilização fundou-se precisamente sobre a noção de crítica: nada há de sagrado ou intocável para o pensamento, excepto a liberdade de pensar. Um pensamento que renuncia à crítica, especialmente à crítica de si-mesmo, não é pensamento. Sem crítica, quer dizer, sem rigor e sem experimentação, não há ciência; sem ela, tão pouco há arte, nem literatura. Inclusive, diria que sem ela não há sociedade sã. No nosso tempo, criação e crítica são uma e a mesma coisa. A história da literatura moderna, de Cervantes a Joyce, é a história da crítica convertida em criação. Crítica da sociedade e crítica da linguagem, crítica dos valores e dos deuses, crítica do poder e das ideias. O escritor não é o servidor da Igreja, do Estado, do Partido, da pátria, do povo ou da moral social: é o servidor da linguagem. Mas só a serve realmente quando a põe em suspeita: a literatura moderna é antes de tudo e sobretudo crítica da linguagem. […] E nisto consiste o aparente paradoxo da arte contemporânea: é comunicação e é crítica da comunicação; reflecte a sociedade e, ao reflecti-la, nega-a; destrói a linguagem para criar outra linguagem. […] A crítica da linguagem e a crítica da realidade são aspectos da mesma busca.

(Discurso de Ingresso no Colégio Nacional, 1 de Agosto de 1967)

Já no século XVIII, o grande historiador inglês Edward Gibbon, autor da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano (é sempre bom nunca perdermos de vista os especialistas mais lúcidos das quedas, das decadências e dos fins), havia dito, embora com algum excesso hiperbólico:

Tudo o que os homens foram, tudo o que o seu génio criou, tudo o que a sua razão ponderou, todas essas obras que se acumulam nas nossas cidades — tudo isso foi feito pela crítica.

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Marlene Dumas, Genetiese Heimwee [Desejo genético], 1984 
© Fotografia: Peter Cox / Cortesia Marlene Dumas Studio

A «paixão crítica» de que Gibbon, Paz e Berardinelli falam não precisa de usar a máscara da violência guerreira, da agressividade selvagem, da insolência soez e até da intolerância feroz, que outros tempos aconselharam, reclamaram e até exigiram. Fazê-lo agora seria trocar o fundo pela forma e contribuir para a sociedade do espectáculo, com o seu exibicionismo narcísico, a ostentação clownesca e a fatuidade frívola que faz mover a grande e implacável máquina global que, com o seu funcionamento tentacular, tudo abarca e açambarca, monopoliza e submete, traga e totaliza num dogmático, colossal e irrefreável consumismo espiritual, simbólico, intelectual, moral, físico. E também político, económico, social, cultural, artístico e ambiental.

Verdadeira mise en abyme, em cada um dos fragmentos está inscrita a representação da sua totalidade e da sua omnipresença. Em cada silogismo, impera a lógica falsa de todos os sofismas e falácias. Já Pier Paolo Pasolini — a quem a Electra dedicou um «Registo» feito de vozes e pontos de vista plurais — tinha profetizado, no seu cinema e na sua escrita, esta radical mudança cultural e até antropológica. No rosto duro e incandescente de Pasolini estiveram sempre marcados os traços dessa «paixão crítica», dessa iconoclastia criadora e desse erotismo acusatório com os quais fez o mais duradouro e o mais profético da sua obra herética.

Do que vimos afirmando conclui-se que a autêntica «paixão crítica», de que reconhecemos a necessidade e a validade, a utilidade e a urgência, é a única atitude independente, livre e libertadora, aquela que, como diz Octavio Paz, é inseparável da paixão criadora.

A Electra tem feito dessas duas paixões, a crítica e a criadora, o centro da sua justificação e do seu programa. Esse é um programa que a si mesmo impede outras fidelidades ou outras tentações. Não somos apóstolos de nenhuma religião, nem servidores de qualquer ortodoxia, nem oficiantes de alguma idolatria, nem sequer somos discípulos de qualquer doutrina, porque somos examinadores livres e plurais de todas elas. Firmes nesta orientação e conscientes do seu valor cultural e ético, podemos, contudo, acrescentar que nada é menos próximo de nós do que o culto de uma neutralidade asséptica, de um ecletismo confuso, de uma condescendência ambígua ou de uma abstinência estéril e timorata.

Ao aliar, nas várias secções que a constituem, a reflexão filosófica, a criação artística e a vocação crítica, a Electra, atenta aos sinais e aos sintomas que vêm do mundo ou se reflectem no mundo, procura desenhar o rosto do nosso tempo, sinalizando também o que ele tem de precário e de provisório, de instável e de insatisfatório.

Ao dar a conhecer, desde o primeiro número, o seu desinteresse activo por aquela difusa nebulosa poluente a que, com uma insistência nervosa e venenosa, se chama «opinião», a Electra afirma o seu interesse sem falhas por um conhecimento que seja saber e talvez até sabedoria. Esse conhecimento é criado num laboratório que se propõe usar os instrumentos da coragem intelectual, do inconformismo cultural, do progresso cognitivo e da aventura poética como seus aliados mais valiosos, produtivos e consequentes. Esse é o conhecimento que, não raro, avança ousadamente contra a doxa e o senso comum, vencendo os obstáculos epistemológicos que eles põem no caminho, como defendeu o filósofo Gaston Bachelard.

É desse conhecimento-saber-sabedoria, que vê e prevê a evolução da técnica, mas não se deixa esgotar, confinar nela ou cercar por ela, que a nossa «grande época», como disse, com acerado sarcasmo, o escritor e jornalista austríaco Karl Kraus, precisa para fazer frente aos impasses, desafios e perigos que tem acumulado com o seu triunfalismo de Prometeu-autómato.

Pensar hoje o presente é pensar o presente de outro modo e de modo novo. Mas é também ser herdeiro de todos aqueles que, no passado, pensaram o presente deles com um golpe de vista que continua a ser útil e a ter um valor de exemplo para nós. São esses os clássicos, pois, como disse o escritor italiano Italo Calvino: «Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.» E acrescentou o autor de As Cidades Invisíveis, cujo centenário do nascimento estamos a celebrar este ano: «Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).»

Para o que íamos dizendo, a palavra «livro» usada por Calvino tanto pode ser lida num sentido físico-literal, como num sentido figurado-simbólico. Há formas de sabedoria que não encarnaram num objecto material chamado livro, mas que constituem livros imateriais que continuamos a ler e a reler.

Olhar o presente é, como já se disse com insinuante ironia, prever o passado e fazer a história do futuro. Com uma lucidez poética intransigente que por vezes, quando foi, por exemplo, aplicada à política, gerou muitos mal-entendidos e incompreensões, avisou também Octavio Paz:

Os homens em geral não vêem o futuro. Por isso, talvez, a nossa ocupação preferida é prevê-lo. Para nos vingarmos da nossa cegueira histórica, fazemos projectos. Esses projectos transformam-se em obras que, por sua vez, se transformam em ruínas. […] A história […] é um cemitério de projectos. Mas sem esses projectos os povos não são povos nem a história é história. (Em «Pasión crítica», Suma y sigue)

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Gerhard Richter, 17.4.08, 2008 
© Gerhard Richter 2019 (0289)

Não se pense, contudo, que o rigor e o vigor intelectual que o nosso programa editorial exige impedem que a Electra seja uma revista em que esse rigor e esse vigor se mostrem inseparáveis e aliados daquele prazer e daquela felicidade que provêm do contentamento pelo fazer da obra e pela obra que se faz e que se fez. Foi Albert Camus quem falou de um Sísifo feliz.

Esse prazer feliz e inquieto tem um movimento que o entrega também aos leitores, num diálogo que, como a pesada escalada de Sísifo, é feito de recomeço e de reiteração.

Após 5 anos e 20 edições, o balanço que podemos realizar da vida editorial da Electra é, como deve ser o juízo esclarecido e proveitoso de todos os empreendimentos humanos, constituído por contentamentos e insatisfações.

Esse balanço regista conquistas e insuficiências. É um balanço em que a alegria pelo que foi feito vai ao encontro da responsabilidade pelo muito mais que pode e deve ser acrescentado no futuro.

Conquistámos um lugar próprio no vasto universo nacional e global das revistas. Entre tantos outros lugares do mundo onde a nossa revista está presente, é hoje possível encontrar a Electra à venda num aeroporto de Edimburgo, numa banca de jornais de São Paulo, numa estação de comboios de Berlim, num quiosque de Roma ou numa livraria de Nova Iorque.

Uma revista faz-se continuadamente de restituição e de renovação. Em cada número restituímos aos leitores a confiança que eles nos concedem, dando-lhes razões para a terem, e restituímos-lhes a pergunta que nos fazem, «Quem sois?», com uma outra pergunta simétrica: «O que esperam que sejamos?»

Em cada edição, renovamos o que propomos e destinamos aos que nos lêem, com novas ideias, novos temas, novos autores, novos pontos de vista, novas obras. Em cada número, renovamos a continuidade que nos dá identidade e renovamos a surpresa que também faz parte dessa identidade. Que nos serve de apresentação e de confirmação.

Este número que assinala o primeiro lustro de vida da Electra é dessa restituição e dessa renovação um exemplo. No dossier dedicado ao tema do Gosto, interrogamos aquilo que, no gosto, mudou no nosso tempo, conscientes de que, como disse Ludwig Wittgenstein, «ética e estética são uma só e mesma coisa».

Para Hermann Broch, o Kitsch, essa forma estonteante de mau gosto, «é o mal no sistema de valores da arte», dando-lhe assim uma avaliação ética.

No nosso tempo, a massificação comunicacional e a mercantilização cultural criaram um novo e contagioso tipo de Kitsch que se manifesta num incessante canibalismo estético que representa o mal que se reflecte e é reflexo do código ético que nos configura. Neste dossier, as perguntas e as respostas sobre o gosto e o desgosto, o belo e o feio, o sublime e o vulgar, a moda e o que passou de moda, desenham traços fundamentais do retrato em que o nosso tempo se apresenta e representa.

Além deste dossier sobre o Gosto, há, nesta Electra 20, uma diversidade de temas e uma variedade de autores que esperamos que façam coincidir o que entregamos aos nossos leitores com o que os nossos leitores esperam de nós.

É na renovação permanente desta expectativa e na confirmação sucessiva do seu cumprimento que está o fio que une a revista aos leitores a que se destina. O que fomos ontem tem a sua continuação e o seu acréscimo no que seremos amanhã.

Sabermos isto é a melhor maneira de celebrarmos juntos, na renovada alegria do encontro e na certeza da sua confirmação, os 5 anos e as 20 edições da Electra.