Assunto
A forma como me alimento é imoral?
Alexandra Prado Coelho

Neste artigo, Alexandra Prado Coelho, jornalista especializada nas áreas da alimentação e da gastronomia, coloca a questão do critério moral na alimentação, dos valores axiológicos que projectamos naquilo que comemos, por exemplo, o pão branco e o pão escuro. E mostra como esses valores se transformam e até se invertem ao longo do tempo e se articulam com códigos culturais e sociais.

Os alimentos não têm em si mesmos nada de intrinsecamente moral ou imoral. Essa é uma carga que nós, humanos — à semelhança do que fazemos com outras coisas —, lhes atribuímos.

Veja-se a eterna «guerra» entre o pão branco e o pão escuro.

Hoje, as modernas padarias que nascem a bom ritmo nas cidades europeias e americanas orgulham-se de apresentar um pão escuro, com farinhas integrais que, em alguns casos (é o que sucede, por exemplo, com o trigo barbela em Portugal), recuperam cereais que praticamente tinham já sido abandonados.

Mas se, aos olhos de uma elite preocupada com questões de nutrição, o pão escuro se apresenta actualmente como a opção mais saudável, enquanto o pão branco é visto como vazio de nutrientes e, por isso, de razão de ser, nem sempre foi assim — muito pelo contrário.

No livro White Bread: A Social History of the Store-Bought Loaf, Aaron Bobrow--Strain conta como, no início do século XX, o pão branco, produzido industrialmente, surgiu como símbolo de modernidade, em contraponto ao pão escuro das «padarias quentes, poeirentas e “sujas” dos imigrantes» vindos do Leste e do Sul da Europa, muitos dos quais judeus.

O pão branco industrial, enriquecido com vitaminas (era preciso enriquecê-lo, depois de o processo de obtenção de uma farinha branca lhe retirar quase tudo), fez acompanhar a sua entrada em cena por um discurso que, entre outras coisas, o apresentava como «patriótico» — quem se alimentasse da forma «correcta» estava a contribuir para uma nação física e moralmente mais sólida. E o pão, ao fornecer cerca de um terço das calorias à população americana do século XIX e início do XX, era central para este desígnio.

Tal como hoje a pandemia do novo coronavírus molda muitos comportamentos, nos Estados Unidos da América do século XIX, o medo provocado pelos surtos de cólera levava à idealização do pão branco, saído de fábricas que tinham dispensado as mãos humanas e que, por isso, eram vistas como uma garantia de higiene e segurança.

O livro de Aaron Bobrow-Strain, lê-se numa breve apresentação, «ensina-nos que quando os americanos debatem sobre o que devemos comer, estão também a lidar com questões mais alargadas de raça, classe, imigração e género» e mostra como «os esforços para promover a “boa comida” reflectem os sonhos de uma sociedade melhor».

"Se os defensores do pão branco afirmavam que era por causa dele que os americanos eram mais altos e mais inteligentes que os judeus europeus, os defensores do pão escuro argumentavam que o consumo de pão branco estava a destruir a raça, e havia mesmo quem garantisse que desfigurava aqueles que o consumiam em excesso."

O branco era associado à pureza — nomeadamente à pureza moral. E não surpreende que, como explica Bobrow-Strain, estas preocupações coincidissem, no início do século XX, com um momento de popularidade da eugenia nos eua. Cunhada em 1883 por Francis Galton, a eugenia define-se como «o estudo dos agentes sob o controlo social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física, seja mentalmente».

A guerra era aberta e todos os argumentos considerados válidos. Se os defensores do pão branco afirmavam que era por causa dele que os americanos eram mais altos e mais inteligentes que os judeus europeus, os defensores do pão escuro argumentavam que o consumo de pão branco estava a destruir a raça, e havia mesmo quem garantisse que desfigurava aqueles que o consumiam em excesso. Para reforçar a ideia, nasceu até um slogan: The whiter your bread, the quicker you’re dead [Quanto mais branco for o seu pão, mais rapidamente morrerá].

Em Portugal, nessas primeiras décadas do século XX, surgia um movimento vegetariano, em alguns casos defensor do regime frugívoro (dieta à base de fruta), cujo discurso era também marcado por uma visão moral da alimentação. Desse movimento quase esquecido (embora recentemente recuperado através do projecto Alimentopia da Universidade do Porto) chegou até nós a revista O Vegetariano — Mensário Naturista Ilustrado, órgão da Sociedade Vegetariana de Portugal, que se publicou durante 26 anos, atingindo os 3800 assinantes e chegando ao Brasil e às colónias ultramarinas.

Há neste movimento uma preocupação central com a saúde, mas a questão moral está igualmente presente. Num dos números da revista, cita-se um estudo sobre o vegetarianismo da autoria do médico Francisco Maria Namorado, segundo o qual «[por] averiguações pacientes e conscienciosas reconhece-se que nos povos em que predomina o regime vegetariano existe menos crueldade nos seus instintos, mais beleza física e maior lucidez intelectual».

"A primeira Sociedade Vegetariana, fundada no Reino Unido em 1847, era predominantemente masculina e tinha uma retórica com marcas religiosas, nomeadamente a ênfase numa vida pura que implicava abdicar de estimulantes como a carne."

No Reino Unido, o movimento vegetariano estava também em expansão e com uma característica curiosa: uma ligação entre as sufragistas e o vegetarianismo, que é descrita por Louise Quick num texto publicado na revista Eaten. A primeira Sociedade Vegetariana, fundada no Reino Unido em 1847, era «predominantemente masculina» e tinha uma retórica com marcas religiosas, nomeadamente a ênfase numa vida «pura» que implicava abdicar de estimulantes como a carne.

Com as sufragistas, a opção de não comer carne ganhou outros contornos e, segundo Quick, a activista e «vegetariana convicta» Lady Constance Lytton chegou a estabelecer paralelos entre «a repressão dos animais e a repressão das mulheres — igualmente vítimas às mãos do patriarcado».

A ligação não surge por acaso. Existe desde sempre uma relação entre a carne, e o cozinhar da carne, sobretudo através do fogo, e o universo masculino. No livro Cooked, Michael Pollan cita a tese que Freud desenvolve no livro O Mal-Estar na Civilização sobre a origem do controlo do fogo pelo homem. Diz Freud que os homens só dominaram o fogo a partir do momento em que conseguiram dominar o seu próprio impulso para urinar sobre ele, extinguindo-o, numa «competição homossexual».

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