Os alimentos não têm em si mesmos nada de intrinsecamente moral ou imoral. Essa é uma carga que nós, humanos — à semelhança do que fazemos com outras coisas —, lhes atribuímos.
Veja-se a eterna «guerra» entre o pão branco e o pão escuro.
Hoje, as modernas padarias que nascem a bom ritmo nas cidades europeias e americanas orgulham-se de apresentar um pão escuro, com farinhas integrais que, em alguns casos (é o que sucede, por exemplo, com o trigo barbela em Portugal), recuperam cereais que praticamente tinham já sido abandonados.
Mas se, aos olhos de uma elite preocupada com questões de nutrição, o pão escuro se apresenta actualmente como a opção mais saudável, enquanto o pão branco é visto como vazio de nutrientes e, por isso, de razão de ser, nem sempre foi assim — muito pelo contrário.
No livro White Bread: A Social History of the Store-Bought Loaf, Aaron Bobrow--Strain conta como, no início do século XX, o pão branco, produzido industrialmente, surgiu como símbolo de modernidade, em contraponto ao pão escuro das «padarias quentes, poeirentas e “sujas” dos imigrantes» vindos do Leste e do Sul da Europa, muitos dos quais judeus.
O pão branco industrial, enriquecido com vitaminas (era preciso enriquecê-lo, depois de o processo de obtenção de uma farinha branca lhe retirar quase tudo), fez acompanhar a sua entrada em cena por um discurso que, entre outras coisas, o apresentava como «patriótico» — quem se alimentasse da forma «correcta» estava a contribuir para uma nação física e moralmente mais sólida. E o pão, ao fornecer cerca de um terço das calorias à população americana do século XIX e início do XX, era central para este desígnio.
Tal como hoje a pandemia do novo coronavírus molda muitos comportamentos, nos Estados Unidos da América do século XIX, o medo provocado pelos surtos de cólera levava à idealização do pão branco, saído de fábricas que tinham dispensado as mãos humanas e que, por isso, eram vistas como uma garantia de higiene e segurança.
O livro de Aaron Bobrow-Strain, lê-se numa breve apresentação, «ensina-nos que quando os americanos debatem sobre o que devemos comer, estão também a lidar com questões mais alargadas de raça, classe, imigração e género» e mostra como «os esforços para promover a “boa comida” reflectem os sonhos de uma sociedade melhor».
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