Primeira Pessoa
Adam Phillips: Toda a literatura é mudança
Afonso Dias Ramos

Nesta entrevista sobre a sua obra e a sua vida, Adam Phillips fala-nos de psicanálise e de literatura — e da relação entre elas, quer na sua actividade pessoal, quer naquilo que as constitui como disciplinas de compreensão humana e intervenção. Autor de uma obra vasta e diversa, é colaborador regular da London Review of Books, do Observer e do The New York Times. Phillips é psicanalista, crítico literário e ensaísta traduzido em muitas línguas. É, actualmente, o organizador das novas obras completas de Freud para a editora Penguin. Nesta conversa ágil, conduzida por Afonso Dias Ramos, o intelectual britânico fala do mundo contemporâneo, das mudanças que aconteceram e daquelas que poderão acontecer. E diz-nos que devíamos ter mais conversas abertas e móveis — e menos conversões fechadas e fixas.

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© Fotografia: Eamonn McCabe

 

Adam Phillips é actualmente um dos mais reconhecidos psicanalistas, críticos literários e intelectuais públicos no Reino Unido. Já escreveu vinte e cinco livros sobre psicanálise, literatura e cultura, sobre temas que vão de Freud e Winnicott a Sebald e Houdini. É o organizador das novas obras completas de Sigmund Freud na colecção Modern Classics da Penguin e professor convidado de literatura inglesa na Universidade de York. O seu novo livro, On Wanting to Change, discute de que maneiras e porque é que mudamos, e a urgência de termos mais conversas e menos conversões.

Adam Phillips dirigiu o serviço de Psicoterapia Infantil do Hospital de Charing Cross em Londres, e hoje trabalha como psicanalista e Professor Convidado de Literatura Inglesa na Universidade de York. Considerado um dos mais destacados psicanalistas e críticos literários no Reino Unido, é autor de uma extensa lista de livros, entre os quais Attention Seeking (2019), In Writing (2017), Unforbidden Pleasures (2015), Becoming Freud (2014), Missing Out (2012), Intimacies (com Leo Bersani, 2010), Darwin’s Worms (2000), On Kissing, Tickling, and Being Bored (1993) e Winnicott (1988). Membro da Royal Society of Literature, colabora regularmente com o London Review of Books, The Observer, The Raritan e The New York Times. Foi o editor das obras de, entre outros, Edmund Burke, Charles Lamb, Walter Pater, John Clare e Richard Howard, e conta, entre os seus ilustres admiradores, com escritores como Will Self, Zadie Smith ou Jonathan Safran Foer. Um dos maiores peritos na história da psicanálise e em Sigmund Freud, Adam Phillips foi também convidado pela Penguin Press para ser organizador da nova edição em inglês das obras completas de Freud em dezassete volumes, relançando-o ao público, menos como autor de textos científicos do que como uma figura literária maior.

Adam Phillips foi considerado por John Banville «um dos mais elegantes estilistas de prosa na língua inglesa, um Emerson da nossa era», e elogiado por Judith Butler como um dos poucos autores que «pensaram e repensaram a psicanálise em termos decisivos para a cultura contemporânea». Mais do que qualquer outro crítico, os seus ensaios têm teorizado a relação da psicanálise com a escrita, da terapia com a leitura, apresentando a primeira delas como um parente mais próximo da literatura do que da ciência. Embora sonantes, os títulos dos seus livros são enganadoramente simples, escondendo ensaios perspicazes e eruditos que cobrem um vasto espectro de temas, de Nietzsche a Pessoa, de Shakespeare a Lacan, de Karl Kraus a Marianne Moore, ou de J.-B. Pontalis a Frederick Seidel. Abarcam tudo, desde teorias sobre alta-costura e desarrumação doméstica até histórias da insinuação e das primeiras impressões. O estilo caracteristicamente aforístico dá forma a um ímpeto provocador de refutar certos clichés modernos, manifestando-se tanto contra as ideias de autocrítica e conhecimento, diagnóstico e cura, como a favor da solidão, do aborrecimento ou das chamadas de atenção. A entrevista para a Electra foi realizada pelo telefone dias depois do lançamento do novo livro de Adam Phillips, On Wanting to Change [Sobre querer mudar], no qual o mais eminente dos «psicanalistas literários» desmonta o constante apelo contemporâneo para mudarmos as nossas vidas, como parte do mito liberal de progresso que condena a ideia de conversão que remonta a São Paulo ou Santo Agostinho. Nesta conversa, Adam Phillips fala sobre algum do seu trabalho como ensaísta literário e também do futuro da psicanálise.

AFONSO DIAS RAMOS  O que o levou a enveredar pela psicanálise?

ADAM PHILLIPS Não sei completamente. Mas quando tinha dezassete anos, li a autobiografia de Carl Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões, e teve um efeito muito forte em mim. Achei que era uma vida verdadeiramente interessante e aventureira. Depois li O Brincar & A Realidade de D. W. Winnicott quando saiu em 1971 e tive a sensação muito forte de que o compreendia. Havia uma afinidade. Assim que o li, soube que queria ser psicanalista infantil. Mas inicialmente foram apenas experiências de leitura. Nunca tinha conhecido um psicanalista e nem sabia muito sobre o assunto. Na altura, aquilo que me interessava realmente era literatura inglesa. Mas quando li O Brincar & A Realidade senti quase como se o livro me tivesse vindo buscar.

ADR  Foram os livros que tiveram esse papel formativo.

AP  Sim, mas não antes disso. Com dezasseis anos, fiquei muito interessado em literatura e esta começou a ter um efeito em mim. Antes disso, enquanto miúdo, interessava-me muito pela natureza, a música, os amigos, o desporto e todas essas coisas. Não era um leitor ávido.

ADR  Começou a trabalhar como analista de crianças. Como foi a experiência e qual a diferença para os adultos que trata hoje?

AP  Foi fantástica. Achei infinitamente comovente, fascinante, curiosa e simplesmente muito, muito cativante. Adorei o trabalho. De certa forma, tratar crianças é semelhante a tratar adultos. Ser terapeuta infantil é uma boa preparação para ser terapeuta de adultos. A diferença é que, como é óbvio, os adultos defendem-se muito mais. Num certo sentido, eu era mais livre com as crianças porque, muito frequentemente, quando não lhes interessa aquilo que se diz, simplesmente não se interessam. Mas se há algo que desperta a atenção das crianças, então ficam mesmo interessadas, enquanto os adultos são muito mais sofisticados nas suas defesas. Além disso, claro, brincar é muito diferente de falar. Mas de modo geral, existem muitos cruzamentos, até porque, no fundo, o objectivo é tentar criar condições para um máximo de simbolização que dê a liberdade de falar, para dizer o que vai na cabeça.

ADR  O desencontro entre a infância e a idade adulta era algo fundamental para Freud.

AP  Sim, é uma combinação entre o desencontro e a continuidade absoluta, sendo ambas as coisas verdadeiras. Obviamente, a pré-condição da idade adulta é a infância. Mas se a infância informa tudo, não prognostica nada, nem determina coisa nenhuma. Ou seja, é evidente que uma pessoa não é exactamente a criança que foi em tempos, mas também é a criança que foi em tempos.

"Para mim, a literatura é a principal categoria, da qual a psicanálise é apenas uma das partes."

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Salvador Dalí, The Enigma of William Tell, 1933

 

ADR  E como se tornou crítico literário?

AP  Quando estava na universidade, andava sempre interessado por crítica literária. Na verdade, alguns dos meus heróis eram críticos literários. Por isso, de certa maneira, tudo isto ocorreu de maneira natural. Nunca pensei em mim próprio como escritor. Sempre me vi como leitor. Mas assim que comecei a escrever — embora tenha começado a escrever sobre temas psicanalíticos —, pareceu-me natural que havia de escrever sobre literatura. Porque, para mim, a literatura é a principal categoria, da qual a psicanálise é apenas uma das partes.

ADR  Em Promises, Promises perguntou: «Para quê fazer análise quando se pode ler?» Mas qual é o lugar da escrita? Graham Greene dizia na sua autobiografia: «Interrogo-me como as pessoas que não escrevem, compõem ou pintam conseguem escapar à loucura, melancolia, ao pânico e medo que é inerente à situação humana.» Também sente isso?

AP  É uma passagem muito poderosa de Greene, e ressoa no meu trabalho. Quando comecei a escrever, simplesmente não conseguia parar de o fazer. Tornou-se uma parte central da minha vida, acima de tudo por ser um prazer tão profundo. Adorava escrever. Achava-o entusiasmante e estimulante. Era como um modo de pensar, mas tinha vida própria. Adorava esse aspecto. Praticar psicanálise é mais importante para mim do que escrever, mas gosto de poder fazer as duas coisas.

ADR  Vê alguma afinidade entre o encontro psicanalítico e o género ensaístico?

AP  Vejo. É muito diferente conversar com alguém ou ler, embora se inter-relacionem. Idealmente, e claro que cada um terá uma visão diferente, quem o desejasse, podia fazer psicanálise e ler também. E isto, claro, porque aquilo a que se chama grande literatura é exactamente sobre aquilo que é a psicanálise: como viver, como ser, que tipo de dificuldades se encontra na vida, etc.

ADR  Costuma citar mais romancistas ou poetas do que analistas. Crê que a psicanálise é uma especialização enganadora?

AP  Sim, acho mesmo que sim. Será preciso fazer alguma especialização para se poder conhecer a psicanálise. Mas acho que a psicanálise não deveria ser uma especialização. Pelo contrário, devia ser parte duma conversa cultural mais ampla que incluiria religião, teologia, literatura, filosofia e política. Considero que a psicanálise é algo que as pessoas deviam superar. Isto é, deviam evoluir através dela para depois irem mais além dela, no sentido em que deviam utilizar a psicanálise para fazerem algo de novo com ela, em vez de se tornarem discípulos.

(...)

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Máscara Noh, Japão, século XIX