O mundo da gastronomia dinamarquesa, normalmente cordato e afável, foi recentemente abalado por uma acesa polémica. O chef Christian Puglisi publicou um vídeo no Instagram onde fazia duras críticas ao facto de Paul Cunningham, também ele um chef distinguido pelo Guia Michelin, ter criado um hambúrguer para a McDonald’s. Isto, a seu ver, equivalia a trair o património gastronómico e as responsabilidades de um chef. O ataque não era, por si só, uma novidade; é vulgar haver uma reacção de melindre sempre que um chef respeitado assina contrato com uma empresa de alimentos processados: aconteceu quando Marco Pierre White fez parceria com a Knorr, Tom Colicchio com a Coca-Cola Diet, Ferran Adrià com as batatas fritas Lay’s. Mas o verdadeiro alvo das críticas de Puglisi era novidade. Se criticava Cunningham, não era tanto por se ter vendido a uma empresa que faz comida má, era sobretudo por ter enjeitado as suas responsabilidades no que toca à saúde e ao ambiente. «É toda a gastronomia que perde credibilidade», advertia Puglisi, «numa altura em que alguns hipotecam a influência da sua estrela Michelin e os êxitos de toda uma carreira ao apadrinhar certas causas, que podem eventualmente, e indirectamente, vir a fomentar um sistema alimentar melhor para todos». Não vinha ao caso se alguém se lembrava de alguma vez terem rendido preito e homenagem a Greta Thunberg antes de receberem a sua primeira estrela Michelin. Vários colegas de profissão expressaram o seu apoio incondicional a Puglisi nos comentários ao vídeo, satisfeitos por verem assim defendido o código de honra do chef.
Já estamos longe do que George Orwell descreve nas páginas de Na Penúria em Paris e em Londres, ou até mesmo de Cozinha Confidencial de Anthony Bourdain. De um modo geral, pouco mudou nas cozinhas profissionais que, nos guias de antigamente, em princípios como em finais do século XX, surgiam como cenários dantescos: a cave escura onde os ajudantes, os chefs commis, descascam cebolas; a partida de carne, onde o menor deslize pode ter por consequência uma frigideira quente atirada à cabeça do infractor; o aboyeur afogueado que marca o ritmo de tudo e brada à cozinha os pedidos das mesas. Mas, na prática, ninguém reconhece a pessoa que está à frente desta brigade de cuisine — tal como ninguém reconhece, afinal, o seu trabalho. Os chefs já não se limitam a cozinhar ou a supervisionar os que cozinham. Um chef é um artista, um anfitrião, um inovador, um comentador político, um empreendedor, um defensor da justiça social e até mesmo um activista das alterações climáticas. Pelo caminho, deixou de ser um trabalhador manual, suando em bica numa cozinha abafada, e tornou-se um verdadeiro herói desta nossa cultura, guindando-se ao patamar de um Ronaldo ou de uma Angelina Jolie.
No curtíssimo espaço de uma geração as atribuições do chef alargaram-se a universos que ninguém ousaria imaginar. Inseridos numa profissão que, na história ainda recente, esteve repleta de cadastrados, de jovens que tinham abandonado o liceu e de quem não conseguiu arranjar trabalho noutro lado, os chefs são agora convidados da Casa Branca — não para cozinhar, mas para falar —, são figurantes em séries de televisão, são agraciados pelas suas rainhas com o título assunto de Sir. Têm honras de capa na Time, arranjam convites para o Fórum de Davos, são convidados a fazer o design de calçado confortável. Se há trinta anos os pais se horrorizaram talvez quando os filhos, nascidos na classe média-alta e com formação universitária, anunciaram que queriam ser cozinheiros, hoje apoiam essa decisão (na esperança de que a carreira da prole lhes permita a eles apressar as reservas num restaurante).
Em que momento se deu esta transformação? Durante quase toda a história da restauração foi sobretudo na cozinha que se realizou o trabalho do chef. (Por oposição a cook, a palavra chef designa, em inglês, o homem — e era quase sempre um homem — que está no topo da hierarquia de uma cozinha profissional.) Era ele que criava as receitas, encomendava os víveres, supervisionava os chefs commis, os cozinheiros e os sous chefs, e, se não fazia propriamente cada prato, pelo menos garantia que os seus subordinados adoptavam os mesmos padrões de exigência. Raramente os chefs eram conhecidos pelo nome; há umas décadas era impensável que um chef viesse à sala conversar com os seus clientes, e muito menos que os convidasse a visitar a cozinha. Só uma ínfima minoria granjeou fama para lá das portas de vaivém de uma cozinha; nomes como Auguste Escoffier e Paul Bocuse foram raríssimas excepções. A obrigação de um cozinheiro era cozinhar.
Partilhar artigo