Assunto
Nós e os (outros) animais
António Guerreiro

Nunca antes tinha havido, como no nosso tempo, tanto debate público sobre os animais, tanto cuidado e preocupação com o destino e o tratamento a que estão sujeitos; nunca antes os animais, e não apenas os animais de companhia, tinham sido integrados com uma tal dimensão no mundo humano e social. Há hoje uma «questão animal» muito viva e de grande alcance que mobiliza simultaneamente os campos da filosofia, da ética, da política (ou da biopolítica), do direito, da ecologia. De tal modo que se difundiu a ideia de que teve lugar, nesta época em que vivemos, um animal turn, à imagem de «viragens» anteriores que ganharam o direito a marca registada nas humanidades e nas ciências sociais, tais como o linguistic turn.

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Rosemarie Trockel, Sem título, 1984
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

O conjunto de artigos que apresentamos neste dossier temático do sétimo número da Electra reflecte e prolonga esta problemática inter e multidisciplinar com uma forte projecção tanto no espaço público, com efeitos bem visíveis no âmbito de uma biopolítica contemporânea, como no domínio da teoria e da análise crítica, convocando saberes diversos e pondo em perspectiva pressupostos culturais. Um novo campo de estudos emergiu assim há cerca de duas décadas e foi adquirindo uma importância crescente, sobretudo nas universidades americanas: são os chamados animal studies (AS). À imagem das elaborações das categorias de «mulher» e de «feminino», pelas teorias feministas dos anos 70, os as inseriram a categoria de «animal» nas ciências humanas e sociais. E atribuíram aos animais um estatuto social e cultural, dotados de uma subjectividade e interagindo com os humanos, irredutíveis a mero objecto de estudo da zoologia, da etologia, da biologia, da antropologia. Formulando novas representações, os as acompanham uma nova sensibilidade entendida como característica civilizacional, que considera inadmissível a visão muito antropocêntrica dos animais como escravos dos humanos e seus fornecedores de alimentos. Os as ocupam-se precisamente destas interacções e intersecções dos humanos com os animais não humanos, procedendo a uma análise e representação crítica das construções e significados sociais que os animais têm na nossa cultura. Desta análise, foi possível verificar que muitos desses significados sociais, tal como eles foram tradicionalmente transmitidos e ainda persistem, serviram para legitimar e perpetuar hierarquias baseadas no racismo, no sexismo e no classismo.

Os AS, como é fácil perceber, floresceram em paralelo com os movimentos de protecção dos animais e os debates filosóficos acerca das questões éticas que devem abranger os animais e em que medida eles devem ser incluídos na esfera da justiça e da política, de onde toda a tradição filosófica, de Aristóteles a Heidegger, os excluiu. Dois livros fundamentais são geralmente apontados como estando na origem dos as, num âmbito académico: Animal Liberation (1975), do filósofo australiano Peter Singer, e The Case for Animal Rights (1983), do americano Tom Regan. Estes dois livros também tiveram alguma influência na atenção que os animais hoje merecem por parte de uma opinião pública que, de um modo geral, passou a julgar com severidade os comportamentos cruéis para com os animais e tornou- se permeável à discussão sobre os deveres que os humanos têm para com eles e as interdições que devem regular essa relação de poder. Nos últimos anos passou a ser muito mais difícil justificar muitas das práticas que os homens mantinham com os animais, até ao ponto de o consumo da carne suscitar simultaneamente discussões de ordem moral e de ordem ecológica, de tal modo que esses dois planos se confundem.

A indústria de criação de animais destinados a servir de alimento é de facto um sector olhado com crescente hostilidade. E não é por acaso que os matadouros são os lugares mais secretos das cidades contemporâneas. Deles, há sempre poucas imagens e poucas reportagens. Ora, estas interdições, esta preocupação em manter todo o processo longe do nosso olhar, alimenta as razões de uma analogia que traz sempre uma polémica associada: trata-se de colocar em paralelo a industrialização do abate de animais e os campos nazis de extermínio (cf. neste dossier o texto de Alessandro Dal Lago). Um livro famoso de Charles Patterson, um historiador americano, Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals and the Holocaust (2001), consagrou essa visão do abate dos animais como um espelho do Holocausto. Deve dizer-se que essa referência ao campo de Treblinka é uma citação do escritor judeu-americano Isaac Bashevis Singer, premiado com o Nobel da Literatura em 1978, que escreveu uma vez: «Para essas criaturas, todos os humanos são nazis; para os animais, a vida é um eterno Treblinka.»

Esta comparação, diz Derrida, é preciso não abusar dela, mas também não a pôr imediatamente de lado. Derrida também dedicou um seminário (publicado em L’Animal que donc je suis, de 2006) às dimensões éticas e políticas da «questão animal» e, muito especialmente, ao esquecimento a que o pensamento filosófico votou o animal (o tão celebrado livro de Élisabeth de Fontenay, Le silence des bêtes: la philosophie à l’épreuve de l’animalité, de 1998, desenvolve esta questão), uma falta que nenhuma zoopoética, por mais rica que seja — como é, por exemplo, a zoopoética de Kafka — conseguiu alguma vez compensar. É fácil perceber este esquecimento do animal por parte da filosofia: a linguagem, o pensamento, a consciência da morte, a cultura, isto é, tudo aquilo que configura o domínio da razão (no sentido do logos grego), funcionaram como garantia de um «nós» inexpugnável, que está na base de um humanismo metafísico, separado de um «eles», os animais, por uma linha intransponível: é a chamada diferença zoo-antropológica, ao serviço da qual está a mais poderosa máquina que a cultura humana construiu, por mais que Darwin tenha mostrado que a diferença era de grau.

Essa linha vermelha, intransponível, entre os humanos e os animais sofreu uma brecha quando foi reconhecido que «eles» sofrem como «nós». Perante este reconhecimento, ou entramos nos mecanismos da denegação ou tornamo-nos permeáveis, em maior ou menor grau, ao sofrimento deles. No léxico crítico dos AS, a palavra «empatia» ocorre obrigatoriamente. Tal como ocorre a palavra «especismo», esse conceito forjado a partir do início dos anos 70 do século passado por analogia com as noções de racismo e de sexismo. Para uma genealogia da nossa sensibilidade que nos faz reconhecer o sofrimento dos animais, temos de remontar a um momento obrigatório marcado pelo nome de Jeremy Bentham. Foi em 1789, ano da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que este filósofo inglês, na sua Introduction to the Principles of Morals and Legislation, consagrou uma passagem a argumentar contra as crueldades a que os homens submetem as outras espécies animais. É bem conhecida a fórmula conclusiva de Bentham, que fornece o princípio de uma lei moral que encontrou recentemente uma forte actualização: «A questão não é: “Eles podem raciocinar?”, nem é: “Eles podem falar?”, mas antes “Eles podem sofrer?”». Colocando assim a questão, preferindo o critério da sensibilidade ao da racionalidade, Bentham foi o primeiro moralista a insistir no direito dos animais (em 1829 foi convidado por uma das primeiras sociedades para a prevenção da crueldade contra os animais). E foi o primeiro a comparar o possível — e, na sua perspectiva, desejável — alargamento dos direitos humanos aos animais ao modo como o conceito de pessoa também foi alargado às mulheres e aos escravos. Se foi possível reconhecer que estes últimos tinham sido vítimas de um erro criminoso, de uma categorização completamente equivocada, quem pode garantir que não acontece com os animais — que têm, como nós, a faculdade de sofrer — um erro semelhante? Bentham está na origem daquilo a que hoje se chama «utilitarismo», que tem em Peter Singer o seu mais famoso representante. O utilitarismo consiste em defender que para os seres dotados de sensibilidade, o bem reside na optimização do prazer e na minimização da dor.

Em traços largos, este é o ambiente contemporâneo e a tradição entre os quais emerge a «questão animal», com a qual estamos confrontados. Ela confere uma especial actualidade e pertinência a este dossier da Electra que repercute a insistência e os modos desta problemática. Devemos perceber que ela é bem vasta e se prolonga num horizonte teórico e de reflexões críticas, onde ganharam destaque noções como as de humanidade vs. animalidade, pós-humano, política animal, que marcam o pensamento deste tempo em que vivemos.

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