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No centenário do seu nascimento, evocamos a grande escritora brasileira, de origem ucraniana, Clarice Lispector, olhando o tempo que viveu e vendo como esse tempo se reflectiu na sua obra intemporal. O autor deste ensaio é Ricardo Domeneck, poeta, artista visual e crítico brasileiro que vive em Berlim. Nele, fala-nos surpreendentemente da Clarice «política», se dermos à palavra «política» o inabitual sentido do que está antes e é «prévio à cidade dos homens». A obra de Clarice Lispector está aberta sobre outros mundos e nela as palavras são criadas de novo, assim parece acabada de criar a beleza que nos é mostrada nas suas fotografias de uma elegância melancólica.
Aos cem anos de seu nascimento em uma minúscula vila da Ucrânia, antes do cruzamento do Oceano Atlântico, feito muitos outros — voluntária ou involuntariamente —, para aportar em terras brasileiras, o que pode nos dizer hoje a escrita de Clarice Lispector, em meio ao furacão de instabilidade política do Brasil, e quando um apocalipse global parece-se ainda mais vizinho hoje da espécie humana, e de outras espécies, do que nos dias das primeiras aparições de seus livros?
A escrita de Clarice Lispector não foi estranha ou imune aos torvelinhos políticos do Brasil nas últimas décadas, nem passou incólume por eles. Seu primeiro livro, Perto do coração selvagem (1943), surge em meio a uma ditadura, nos últimos anos do Estado Novo de Getúlio Vargas, e o último livro publicado em vida, A hora da estrela, poucos meses antes da morte da escritora em 1977, ocorre no meio de outra ditadura, a civil-militar, quando dormia no Palácio da Alvorada o marechal Ernesto Geisel. O Estado Novo perseguira e prendera autores como Graciliano Ramos, Dyonélio Machado e Jorge Amado, mas CL era jovem, o regime estava no seu fim e a abertura intelectual vivenciada nas duas décadas seguintes foi positiva para a recepção de seus livros, ainda que só o primeiro tenha recebido verdadeira atenção.
"A escrita de Clarice Lispector não foi estranha ou imune aos torvelinhos políticos do Brasil nas últimas décadas, nem passou incólume por eles. Seu primeiro livro surge em meio a uma ditadura e o último livro publicado em vida ocorre no meio de outra ditadura."
Após o fim do Estado Novo, Clarice Lispector esteve fora do Brasil, e não viveu as gangorras de estabilidade e instabilidade no país: o governo de Eurico Dutra; o turbulento retorno de Getúlio Vargas ao poder e seu suicídio; os anos ditos dourados de Juscelino Kubitschek: da construção de Brasília, do surgimento de Bossa Nova e da maturidade do Modernismo brasileiro. Participou dessa maturidade fora do país, onde produziu romances como O lustre (1946), A cidade sitiada (1949) e A maçã no escuro, escrito na década de 1950, mas só publicado em 1961. A maçã no escuro parece-me um livro-chave na trajetória de Lispector, ainda que muitas vezes seja eclipsado pelas obras-primas da década de 1960, especialmente pelos contos de Laços de família (1960) e pelo romance A paixão segundo G.H. (1964).
Em A maçã no escuro começa a se delinear o que eu chamaria de sua contribuição política, no sentido mais estrito de polis, da organização de corpos humanos vivos num mesmo espaço geográfico, e sua crítica violenta a nossas noções de civilização e justiça. O que torna ainda mais complexa essa noção de política como organização comunitária de corpos vivos é que Clarice Lispector, como outros escritores de sua geração — penso aqui especialmente em João Guimarães Rosa e Hilda Hilst —, traria também os corpos não-humanos para essa coabitação. E mesmo agora, cem anos após seu nascimento, a descrição da escrita de Clarice Lispector como política espantaria alguns leitores.
Lembro-me de uma conversa com um poeta brasileiro que expôs seu desgosto com A hora da estrela (1977), por ver na obra uma espécie de «submissão» de Clarice Lispector às críticas que recebera ao longo dos anos 60 e 70, de uma esquerda que não via seu trabalho como «político» suficiente em meio à catástrofe que se desenrolava no país naqueles «anos de chumbo» da Ditadura Militar. Mas o que a escritora parece nos insinuar em seu livro, como em outros, é a visão lúcida de uma catástrofe muito mais antiga, que não cabia nas noções ideológicas estreitas e dualistas do período. Pois o engajamento de Clarice Lispector em A hora da estrela difere essencialmente do que vimos nos romances da década de 1930, os de Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou Rachel de Queiroz, e também, entre os contemporâneos da autora nas décadas de 1960–1970, os de Antônio Callado ou Ignácio de Loyola Brandão.
"Mesmo agora, cem anos após seu nascimento, a descrição da escrita de Clarice Lispector como política espantaria alguns leitores."
A mudez de Macabéa não é a mudez do Fabiano de Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos; nem a tartamudez dos fazendeiros-coronéis de Terras do Sem Fim (1943), de Jorge Amado; assim como a aparente inocência e disfuncionalidade da personagem é mais atópica do que aquela outra, utópica, quixotesca, como a de um Capitão Vitorin no romance Fogo morto (1943), de José Lins do Rego. Em seu ensaio «“A vida oblíqua”: o hetairismo ontológico segundo G.H.», Alexandre Nodari descreve a politicidade em Clarice Lispector como «uma espécie de politicidade atrás da política, antes da política, prévia à cidade dos homens e do sujeito (de direito)».
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