Registo
A Revolução de Abril vista de Itália
Donatella Di Cesare

A filósofa italiana Donatella Di Cesare, autora, entre outros, de um livro, já editado entre nós, O Tempo da Revolta, veio a Portugal em 1975 para assistir à revolução em curso que tinha tido uma grande repercussão em Itália. Quase meio século depois, presta o seu testemunho dessas «férias revolucionárias».

Ana Hatherly

Ana Hatherly, As ruas de Lisboa, 1977 © Fotografia: José Manuel Costa Alves / Scala, Florença / SPA, Lisboa / Fundação Calouste Gulbenkian, CAM − Centro de Arte Moderna, Lisboa

 

Pode uma revolução começar com uma canção? Aconteceu na madrugada de 25 de Abril de 1974, quando a Rádio Renascença transmitiu Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso. Foi o sinal — já não havia volta a dar. Depois de quase cinquenta anos, uma ditadura, a mais longa do velho continente, caiu em poucas horas devido a um golpe de Estado dos militares rebeldes. As ruas foram invadidas por tanques que avançavam lentamente, atendendo que os semáforos nos cruzamentos ficassem verdes, confiantes, fortalecidos por aquela longa pausa que a História tinha feito. Parecia uma tomada de poder ordenada, até mesmo sem derramamento de sangue, à excepção do que foi inutilmente derramado pela PIDE, responsável pelas únicas quatro mortes. Dos altifalantes, uma voz firme e determinada recomendava que se mantivesse a calma: «As Forças Armadas Portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem às suas casas. Viva Portugal livre!» Mas ninguém ouviu. As ruas não conseguiam conter a multidão transbordante que trepava às arvores, aos muros, até às varandas dos primeiros andares. De repente, a cidade, despertada de um longo sono, foi investida por uma explosão de euforia, um abraço impetuoso, do qual os militares, quase intimidados, escapavam com dificuldade. Apertavam as mãos, agradeciam sorridentes, acendiam um cigarro e, hesitantes, davam algumas ordens. Entre aplausos e sinais de vitória, voavam cravos vermelhos: a multidão comovida oferecia-os aos soldados, que, por sua vez, os lançavam, extraindo-os das armas. Eram as balas de uma nova revolução do povo que, num dia só, acabou com o terror de meio século.

«Golpe de Estado em Portugal. Caetano substituído por uma Junta de Salvação Nacional.» Era esse o título que, no dia 26 de Abril, se destacava no jornal italiano Lotta continua. Li imediatamente o artigo com curiosidade, mas era um relato sucinto e neutral. Fiquei impressionada com uma coincidência singular de datas: no dia 25 de Abril, em Itália, celebra-se a libertação do nazifascismo. Também nesse ano, o desfile percorreu as ruas de Roma, até à Porta San Paolo, símbolo da resistência dos partisans. Contudo, a tensão era palpável. Eram os anos da chamada «estratégia da tensão». Vivíamos no pesadelo de um golpe iminente orquestrado pela direita subversiva apoiada pelos serviços secretos. A esquerda era muito forte e o PCI, o maior partido comunista do Ocidente, tinha alcançado a maioria, tornando-se o primeiro partido italiano. Disposto a qualquer coisa para governar, ultrapassando em plena Guerra Fria o obstáculo da NATO, estava aberto ao «compromisso histórico» com a Democracia Cristã, um partido profundamente ambíguo, conivente internamente com as forças mais reaccionárias e até mesmo com os neofascistas.

Como muitos outros da minha geração, identificava-me com a esquerda extraparlamentar, da qual preferia os trotskistas, talvez pela meticulosidade das suas análises dos acontecimentos internacionais.

"Para nós não foi uma revelação, mas sim uma confirmação. Não se tratava apenas do fim de uma ditadura, mas do amanhecer de uma nova era."

O que sabíamos nessa altura sobre Portugal? Não muito — mas o suficiente para detestar Caetano e a ditadura salazarista. Nutríamos aversão pela guerra colonial, que, em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, não hesitava em usar qualquer tipo de violência. Talvez também porque nos confrontava com o colonialismo dos nossos pais. Costumava ouvir obsessivamente a canção de Luís Cília «A bola», que começava assim: «Rola sangrenta uma bola no chão de Angola». Cativava-me a melodia melancólica e repetia as palavras aprendidas automaticamente, desconhecendo o significado, que estava longe de ser metafórico. Só mais tarde é que descobri que a bola, usada pelos soldados para jogar futebol, era a cabeça de um negro. Nunca mais a consegui cantar.

No início de Maio, chegaram de Lisboa notícias mais exaustivas. Os jornais de esquerda descreviam com tons entusiastas o grande desfile que tinha percorrido a cidade durante o Dia do Trabalhador, um desfile composto por operários, mulheres, soldados, estudantes, cidadãos comuns que, depois dos tempos sombrios da ditadura, testemunhavam desta forma o próprio desejo de participação. A 3 de Maio, a manchete do Lotta continua era: «700 mil cravos vermelhos em Lisboa». Qual golpe de Estado! Parecia mais uma acção dos militares, que, como contraponto ao passado, e para resgatar a História, permitiam que se realizasse uma surpreendente revolução em massa.

Este tema assumiu logo uma relevância considerável no debate, acabando por dividir irreparavelmente a esquerda italiana. Desde o início, os órgãos de imprensa do PCI, começando pelo L’Unità, mostraram-se constrangidos e, embora destacassem a participação popular e o clima de alegria, nunca mencionaram a «revolução». Nos meses seguintes, não faltaram ataques aos movimentos de extrema-esquerda, definidos como «aventureiros». Nessa altura, o PCI não só tinha escolhido o compromisso histórico, como também se tinha orientado para o denominado «eurocomunismo», que previa uma conversão social-democrata na política interna e o apoio ao Pacto Atlântico na política externa. Enquanto o apoio à luta anti-colonial se fragilizava, o PCI lançou um apelo aos partidos comunistas sob ditadura de direita para se juntarem numa luta comum contra o fascismo — mas sem mencionar uma luta pelo socialismo. Nessa circunstância, foi inaugurado o uso do fraco adjectivo «progressista». Até mesmo a figura de Álvaro Cunhal, que beneficiava de grande prestígio junto dos militantes de base, se tornou rapidamente motivo de crescente perplexidade e reserva.

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