Pode uma revolução começar com uma canção? Aconteceu na madrugada de 25 de Abril de 1974, quando a Rádio Renascença transmitiu Grândola, Vila Morena, de Zeca Afonso. Foi o sinal — já não havia volta a dar. Depois de quase cinquenta anos, uma ditadura, a mais longa do velho continente, caiu em poucas horas devido a um golpe de Estado dos militares rebeldes. As ruas foram invadidas por tanques que avançavam lentamente, atendendo que os semáforos nos cruzamentos ficassem verdes, confiantes, fortalecidos por aquela longa pausa que a História tinha feito. Parecia uma tomada de poder ordenada, até mesmo sem derramamento de sangue, à excepção do que foi inutilmente derramado pela PIDE, responsável pelas únicas quatro mortes. Dos altifalantes, uma voz firme e determinada recomendava que se mantivesse a calma: «As Forças Armadas Portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem às suas casas. Viva Portugal livre!» Mas ninguém ouviu. As ruas não conseguiam conter a multidão transbordante que trepava às arvores, aos muros, até às varandas dos primeiros andares. De repente, a cidade, despertada de um longo sono, foi investida por uma explosão de euforia, um abraço impetuoso, do qual os militares, quase intimidados, escapavam com dificuldade. Apertavam as mãos, agradeciam sorridentes, acendiam um cigarro e, hesitantes, davam algumas ordens. Entre aplausos e sinais de vitória, voavam cravos vermelhos: a multidão comovida oferecia-os aos soldados, que, por sua vez, os lançavam, extraindo-os das armas. Eram as balas de uma nova revolução do povo que, num dia só, acabou com o terror de meio século.
«Golpe de Estado em Portugal. Caetano substituído por uma Junta de Salvação Nacional.» Era esse o título que, no dia 26 de Abril, se destacava no jornal italiano Lotta continua. Li imediatamente o artigo com curiosidade, mas era um relato sucinto e neutral. Fiquei impressionada com uma coincidência singular de datas: no dia 25 de Abril, em Itália, celebra-se a libertação do nazifascismo. Também nesse ano, o desfile percorreu as ruas de Roma, até à Porta San Paolo, símbolo da resistência dos partisans. Contudo, a tensão era palpável. Eram os anos da chamada «estratégia da tensão». Vivíamos no pesadelo de um golpe iminente orquestrado pela direita subversiva apoiada pelos serviços secretos. A esquerda era muito forte e o PCI, o maior partido comunista do Ocidente, tinha alcançado a maioria, tornando-se o primeiro partido italiano. Disposto a qualquer coisa para governar, ultrapassando em plena Guerra Fria o obstáculo da NATO, estava aberto ao «compromisso histórico» com a Democracia Cristã, um partido profundamente ambíguo, conivente internamente com as forças mais reaccionárias e até mesmo com os neofascistas.
Como muitos outros da minha geração, identificava-me com a esquerda extraparlamentar, da qual preferia os trotskistas, talvez pela meticulosidade das suas análises dos acontecimentos internacionais.
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