Assunto
Moral do autor, moral da obra
Gisèle Sapiro

Partindo de casos que provocaram algum escândalo, a socióloga Gisèle Sapiro prossegue neste artigo a questão que dá o título ao seu livro, Peut-on dissocier l’oeuvre de l’auteur?, e avança nas respostas possíveis, que variam conforme os casos, a uma outra complexa questão: o que fazer à obra quando a conduta pessoal do seu autor é censurável?

Martin Heidegger

Martin Heidegger na sua cabana em Todtnauberg, na Floresta Negra, Alemanha, 1968 © Fotografia: Digne Meller Marcovicz / Scala, Florença / bpk, Bildagentur für Kunst, Kultur und Geschichte, Berlim

 

As polémicas e os escândalos em torno de autores que assumiram posições condenáveis, como Céline ou Heidegger, ou que tiveram atitudes condenáveis, como Polanski ou Gabriel Matzneff, levantaram a questão da relação entre o autor e a sua obra. Pode e deve-se dissociá-los? Existe uma relação entre a moral da obra e a moralidade do autor? Se sim, que consequências se devem tirar daí? Deve-se «suprimi-los», isto é, retirá-los de circulação?

No meu livro Peut-on dissocier l’oeuvre de l’auteur?1, proponho que o autor e a obra são construções sociais, as quais não foram desde sempre identificadas. Da inspiração divina que atinge o poeta à cultura da imitação dos antigos, que prevalecia no Renascimento, outras formas de pensar o acto criativo precederam a concepção romântica da originalidade da criação, a qual não deixa de estar relacionada com o surgimento da propriedade intelectual.

No seu célebre artigo intitulado «O que é um autor?», Michel Foucault define a função-autor como a unificação de uma série de discursos sob um nome próprio. Sublinha que a imputação penal das obras a um autor (que em França remonta ao édito de Châteaubriant, que, em 1551, impõe a cada autor e impressor o dever de colocar o seu nome num livro publicado) precedeu historicamente a propriedade intelectual e artística, a qual só foi reconhecida a partir do século XVIII (primeiro em Inglaterra, depois em França). Antes de ser um bem, a obra foi um discurso susceptível de ser punido.

O nome pessoal assinala a relação entre a obra e a identidade do autor, logo, entre a obra e a sua vida. Encerra, por outro lado, o capital simbólico associado ao autor, devido à sua obra. É isso que significam as expressões «fazer nome na literatura» e «ser um grande nome da literatura». O nome do autor é, no entanto, um caso particular, remetendo menos para uma pessoa do que para um corpus de obras que lhe são atribuídas.

"A noção de obra supõe uma unidade, frequentemente associada a um estilo, que o nome do autor acaba por designar, como o realismo mágico de García Márquez."

Os autores são os primeiros a jogar com o seu nome para questionar a relação entre a pessoa e a obra. Vários autores ou criadores optam por um «nome de autor» distinto do seu nome civil. O autor dissimula-se, por vezes, atrás do nome de uma das suas personagens fictícias, à imagem de Fernando Pessoa, que criou para si setenta e dois heterónimos, nomes de autores com uma biografia ficcional. Esta estratégia ilustra a concepção do autor como «filho das suas obras».

Ao contrário do pseudónimo, que dissimula a verdadeira identidade da pessoa, o nome do autor funciona, geralmente, como um nome de utilizador, quer seja oficial (registado administrativamente) ou não. Distingue «o autor», produto das suas obras, do indivíduo socializado, assinalando a sua emancipação relativamente a uma trajectória e a uma identidade, ou seja, a sua indeterminação social. A escritora Chloé Delaume reinventa-se, assim, numa persona, cujo primeiro nome é tomado de empréstimo à heroína de A Espuma dos Dias, de Boris Vian. Declara, no incipit de S’écrire, mode d’emploi:

O meu nome é Chloé Delaume. Sou uma personagem de ficção. Decidi tornar-me uma personagem de ficção quando percebi que já o era. […] Personagem secundária de uma ficção familiar e figurante passiva da ficção colectiva. Escolhi a escrita para me reapropriar do meu corpo, dos meus feitos e gestos, da minha identidade.2

Passando pelo nome próprio, a identificação entre o autor e a sua obra enuncia-se em três dimensões: a relação metonímica, a semelhança, a causalidade.

On Kawara

On Kawara, MAR. 11, 1967 © On Kawara Studio e David Zwirner, Nova Iorque e Londres

 

Perímetro e unidade da «obra»

A relação metonímica refere o nome do autor como designando um corpus de obras. Flaubert é o autor de Madame Bovary, bem como de A Educação Sentimental e de todos os seus outros romances e das suas traduções. A utilização do nome de autor como etiqueta designando o conjunto da sua obra permite supor que esta constitui um todo dotado de uma coerência, inscrita num projecto criativo. É por isso que a publicação de obras completas constitui uma fase crucial no processo de canonização de um autor.

A coerência da obra, no entanto, nunca está completa. Em primeiro lugar, coloca-se a questão do seu perímetro. Depois, a da sua unidade.

A instabilidade do perímetro da obra revela-se nos casos seguintes. Em primeiro lugar, a falsificação no caso de La Chasse spirituelle, de Rimbaud. Segundo caso, a recusa de autoria de escritos anónimos ou sob pseudónimo, mas também o direito ao arrependimento ou à retractação. Céline, por exemplo, exerceu o seu direito à retractação ao proibir a republicação, depois da guerra, dos seus panfletos anti-semitas, mesmo tendo sido escritos no prolongamento da «obra» romanesca. A recente reedição, por um editor do Quebeque, dos panfletos, caídos em domínio público, alega a continuidade com a obra literária. Em França (onde ainda não estão em domínio público), a Gallimard obtivera a concordância da viúva de Céline, mas viu-se forçada a desistir perante a contestação da crítica.

Quanto às obras revistas, coloca-se a questão de se saber qual é o original. Aragon, por exemplo, reescreveu as suas obras, reunindo-as, com Elsa Triolet, nas OEuvres croisées. Além disso, o manuscrito publicado costuma resultar de um trabalho colectivo que implica vários revisores em diferentes etapas.

1. Peut-on dissocier l’oeuvre de l’auteur?, Paris: Seuil, 2020, ou, É possível dissociar a obra do autor?, Belo Horizonte: Editora Moinhos, 2022.
2. Chloé Delaume, S’écrire, mode d’emploi, publie.net, 2008.

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