Registo
Retrato de Henry James
Colm Tóibín

Henry James é um grande escritor dos anos em que o século XIX passa para o século XX. Profundo conhecedor da psicologia humana e refinado estilista, foi o criador de uma vasta obra, poderosa e prenunciadora, na qual aparece, insistente, o tema do encontro-confronto da Europa com os Estados Unidos. Nela, a subtileza dos mistérios alia-se à dureza dos conflitos. Nascido há 180 anos, as feições enigmáticas da sua personalidade e os surpreendentes acontecimentos da sua vida continuam a gerar enorme curiosidade e fascínio. Romancista, contista, ensaísta, crítico literário e jornalista, o consagrado escritor irlandês Colm Tóibín é um devotado conhecedor de James, sobre quem escreveu O Mestre, um romance biográfico traduzido em muitas línguas. Nesta edição da Electra, Tóibín revisita o autor de Retrato de Uma Senhora, mostrando a importância das casas na sua vida e obra. A partir delas, dá-nos uma imagem cheia de verdade e vigor deste génio atormentado.

lamb house

Lamb House, Rye, East Sussex

 

Casas. As casas sempre foram marcantes na vida e na obra de Henry James. Em 1906, reflectindo sobre o romance The Portrait of a Lady [Retrato de Uma Senhora], James comparava o livro a «uma casa quadrada e espaçosa». A casa era também a imagem do romance em si mesmo: um edifício que tem «não uma janela, mas um milhão de janelas — todas as janelas possíveis, aliás, um número incontável de janelas», que se abrem para «vastos campos, panoramas da humanidade». Pela mesma altura, numa carta ao seu agente a propósito da escolha de uma fotografia para o frontispício da edição revista do romance, sugeria «a vista de uma mansão rural inglesa» (a Hardwick House, na margem do Tamisa, perto de Pangbourne) «em que pensei vagamente talvez para abrir o Retrato».

No livro Portrait of a Novel: Henry James and the Making of an American Masterpiece, Michael Gorra nota que esta casa se situa «numa elevação de terreno pouco acima da linha de água, à beira de uma colina íngreme que se ergue nas traseiras; a vista do rio e dos campos cercados de sebes, que se pode observar da outra margem, pouco terá mudado desde o tempo de Henry James […]. Aqui o Tamisa é sereno e, nos primeiros capítulos do romance, James conta que Ralph [Touchett] e Isabel [Archer] passavam horas num barco a remos; um artigo da Country Life publicado em 1906 afiança, de resto, que “não há trecho do Tamisa mais belo do que este, coroado pelo declive de Hardwick”».

Os cadernos de Henry James estão repletos de nomes para mansões imaginárias. Em 17 de Abril de 1900, por exemplo, anotou esta lista: «Waterworth, Waterway, Pendrel, Pendrin, Cherrick, Varney, Castledene, Coyne, Minuet, Fallows, Belshaw, Quarrington, Dammers, Beldom, Deldham, Tangley».

Até aos cinquenta e quatro anos, porém, Henry James não teve casa própria; viveu sempre em casas alugadas. E se ter uma casa sua foi um passo decisivo na sua vida, o facto é que viria a ter repercussões muito interessantes também na sua obra.

Num sábado à tarde, há vinte anos — estava eu a acabar uma primeira versão do meu romance O Mestre, que é sobre Henry James —, fui a Rye (no East Sussex, em Inglaterra) conhecer a Lamb House, a mansão que James arrendou em 1897 e onde viveu até quase à sua morte, em 1916.

Era a casa dos seus sonhos. James, que tinha veraneado na região, passara muitas vezes por esta casa, observara os tijolos já sem cor, adivinhara um passado rico em história, reparara na sua imponência sem espalhafato. Palmilhara as ruas da cidade de Rye perguntando aos residentes mais afáveis se havia alguma casa para alugar. O ferreiro tomara nota do endereço de James em Londres e prometera contactá-lo se soubesse de alguma propriedade que se lhe quadrasse. Escreveu-lhe depois a informar que a Lamb House estava disponível e James apressou-se a ir a Rye e a arrendar a casa.

"As cartas que James escreveu a Andersen, bonito homem e muito mais novo, são arrebatadas no elogio dessa amizade, desenganadas quando Hendrik não assume um afecto recíproco, cáusticas quando censura a descomedida ambição do jovem escultor."

henry james

John Singer Sargent, Henry James, 1913 © Fotografia: Scala, Florença / National Portrait Gallery, Londres

 

O pavilhão do jardim, onde James escrevia em dias de calor, foi destruído por um bombardeamento durante a Segunda Guerra. Mas o jardim murado ainda lá está em todo o seu esplendor. E a casa conserva uma ambiência jamesiana. As salas modestas do andar térreo, que James decorou com tanto desvelo, foram mobiladas com o auxílio de Lady Wolseley, sua amiga, que se considerava ter sido a inspiradora da viúva do romance The Spoils of Poynton, uma apaixonada por móveis antigos.

Na sala de jantar ainda está, sobre a lareira, o pequeno busto de um conde italiano, obra de Hendrik Andersen — que James conheceu em Roma em 1899 —, no exacto lugar onde James o colocou no dia em que o recebeu de Roma num caixote. As cartas que James escreveu a Andersen, bonito homem e muito mais novo, são arrebatadas no elogio dessa amizade, desenganadas quando Hendrik não assume um afecto recíproco, cáusticas quando censura a descomedida ambição do jovem escultor.

Henry James tinha também grandes ambições como romancista, mas compreendia a necessidade de um trabalho atento, demorado e meticuloso, razão pela qual, aos cinquenta e poucos anos, trocou Londres pela solidão de uma cidade sem jantares elegantes nem almoços literários.

Sobre a lareira da sala de visitas, no rés-do-chão, deparei-me com uma peça que me deixou boquiaberto. Era um bordado feito por Constance Fenimore Woolson, a romancista americana que privou com James na década de 1880. Após o seu suicídio (Veneza, 1894), James vasculhou os papéis de Constance, queimando o que ele próprio não queria que outros vissem, como foi o caso das suas cartas. Mas deve ter guardado esta peça como recordação, à qual deu o mesmo lugar de destaque da escultura de Andersen.

Em minha opinião — e falo do ponto de vista de quem escreveu um romance biográfico sobre Henry James —, os cinco anos que mediaram entre o fiasco do seu teatro em 1895 e a escrita das três obras-primas dos últimos anos (The Wings of the Dove, The Ambassadors, The Golden Bowl) foram talvez o período mais pujante da sua vida. Foi nesta altura que James soube o que era o fracasso e o enfrentou com coragem, impávido e sereno; mas foi também um tempo de angústia, o tempo do luto pelos pais e pela irmã, Alice. O que lhe valeu na altura foi ter-se mudado para a Lamb House, que foi o seu porto de abrigo, e que foi para mim uma inspiração quando escrevia e o imaginava ali.

Henry James nasceu em 1843, um ano e meio depois de William, o primogénito. O pai, que tinha herdado uma fortuna, interessava-se por religião e pelo livre-pensamento. Conhecia pessoalmente muitos dos escritores que marcaram a sua época, tanto em Inglaterra como na América, e era grande orador. Era homem também para, num repente, pegar nos filhos — cinco ao todo — e os levar para o outro lado do mar, com a desculpa de que na Europa teriam a melhor «educação dos sentidos». Os filhos acabaram por não ser nem americanos nem europeus e diziam por graça que, depois de uma infância tão singular e buliçosa, eram «oriundos da família James».

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