Primeira Pessoa
Hal Foster: A história do presente
Afonso Dias Ramos

O crítico e historiador norte-americano Hal Foster, um dos autores mais influentes e prolíficos sobre arte moderna e contemporânea, design, arquitectura e pós-modernismo, conversa com a Electra sobre o estatuto e função da teoria crítica no contexto político actual, revisitando o percurso que o levou do radicalismo do meio intelectual de Nova Iorque nos anos 70, até ao livro que se encontra a preparar, em torno da ideia popular de uma «estética banal».

Hal Foster tem vindo a desafiar os limites da crítica cultural há mais de quarenta anos, seguindo a tradição modernista do intelectual público que passa em análise a cultura contemporânea através de um profundo compromisso com a escrita da História. A reputação de Foster como crítico penetrante e historiador visionário tem um alcance para lá das fronteiras disciplinares da arte contemporânea e moderna, estendendo-se também pela arquitectura, design, literatura e teoria. Formado intelectualmente enquanto crítico de arte em Nova Iorque no ambiente radical do final dos anos 70, seriamente investido nas leituras revisionistas de Marx, Freud, Nietzsche e Lacan, e tendo ganhado notoriedade durante as guerras culturais dos anos 80 perante o contexto de expansão do mercado de arte e das Indústrias Culturais, Hal Foster dedicou boa parte da vida a explorar os potenciais e as limitações da crítica. Este ano assinala-se o quadragésimo aniversário do primeiro volume que publicou, The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture, uma antologia pioneira que reuniu críticos destacados, como Rosalind E. Krauss, Jürgen Habermas, Fredric Jameson e Edward Said, para cartografar o terreno contestado da arte e pensamento pós-modernos. Como Foster declarou noutro livro que se tornou, entretanto, leitura obrigatória para quem estuda arte, The Return of the Real (1996): «Tenho alguma distância em relação à arte modernista, mas pouca em relação à teoria crítica [...], formei-me enquanto crítico [...] numa altura em que a produção teórica se tornou tão importante quanto a produção artística.» E, todavia, acrescenta: «Quanto à teoria crítica, tenho o interesse de um iniciado de segunda geração, não o fervor de um convertido da primeira geração.»

Hal Foster é professor de Arte e Arqueologia na Universidade de Princeton, onde ensina arte e teoria modernista e contemporânea. Foi editor da revista Art in America até 1987, ano em que se tornou director do departamento de Estudos Críticos e Curatoriais no Museu Whitney, em Nova Iorque, até 1991. Além dos seus livros de história da arte, que incluem Compulsive Beauty (1993), Design e Crime (2002), Prosthetic Gods (2004), The Art-Architecture Complex (2011), Maus Novos Tempos (2015), Foster foi um dos fundadores da revista e dos livros da Zone, e continua a publicar regularmente na Artforum, London Review of Books, New Left Review e October, da qual é editor desde 1991. Entre os seus livros mais recentes, destaca-se What Comes After Farce? Art and Criticism at a Time of Debacle (2020), que explora como vários artistas respondem ao momento político actual, além de Brutal Aesthetics: Dubuffet, Bataille, Jorn, Paolozzi (2020), uma nova abordagem histórica a artistas e a pensadores ocidentais no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, adaptado a partir das prestigiadas Conferências A. W. Mellon que proferiu na National Gallery of Art, em Washington, em 2018. Hal Foster conversa com a Electra sobre o que significa ser-se crítico na conjuntura actual.

AFONSO DIAS RAMOS  Quando se apercebeu de que queria escrever sobre arte? Qual foi a porta de entrada para esse mundo?

HAL FOSTER  Nasci em Seattle, que fica muito longe das grandes instituições culturais dos Estados Unidos. E nesse sentido, a cultura encontrava-se noutro lugar. Por isso, era mais um anseio do que qualquer outra coisa. Sabia que queria escrever, mas sobre o quê? Inicialmente, queria escrever ficção. Mas depois, através de figuras como Susan Sontag e Joan Didion, percebi que a crítica seria mais adequada para mim e talvez fosse mais pertinente e, de certa forma, mais presente para a cultura. Por isso, o meu desejo de escrever foi redireccionado para a crítica. Tenho uma história sobre como a arte se tornou o meu principal tema. Em Seattle, a família de um grande amigo meu coleccionava arte. Por volta dos doze anos, dei por mim sozinho na sua sala de estar, e vi uns quadros na parede e alguns objectos no chão. Tive a sensação de que poderiam ser arte, mas na verdade nem sabia o que era pintura ou escultura nessa altura. Depois observei uma pintura em particular. Tinha uns rectângulos sublimes de cor luminosa, quente e fria, fogo e gelo, completamente abstracta. E então pensei, num assomo, num arroubo: isto é a coisa mais bela que alguma vez vi. Foi a minha primeira experiência estética. E, muito rapidamente, questionei: porque será que eles têm isto, mas nós não? Por isso, a minha experiência estética foi temperada por uma reacção crítica. Uma sensação de ressentimento turvou a minha sensação de prazer. Claro que isto é uma história, mas julgo que me tornei um crítico nesse mesmo dia. Essa foi apenas uma cena inicial, a cena primordial, por assim dizer. Em meados dos anos 70, fui para a universidade na Costa Leste, para a Universidade de Princeton, onde hoje dou aulas. Princeton fica apenas a 80 quilómetros de Nova Iorque, por isso podia vir até à cidade e deambular pelos museus e pelas galerias. Foi uma educação extraordinária; julgo ter sido uma das razões principais para ter vindo estudar para a Costa Leste, poder passar os dias dessa forma. Foi isso que, acabada a universidade, me levou a mudar-me para Nova Iorque. Era uma época em que a cidade estava falida, era barata, e o mundo da arte era também muito diferente, pequeno, mais parecido com o dos anos 50 do que com o de agora. Podíamos conhecer artistas, críticos, arquitectos, músicos… Costumava frequentar um lugar chamado The Institute for Architecture and Urban Study, onde conheci arquitectos como Peter Eisenman e críticos como Kenneth Frampton. Era um lugar muito discursivo; na verdade, foi aí que a revista October foi fundada. Ao mesmo tempo, comecei a escrever crítica para a Artforum. Depois, aos vinte e seis anos, tornei-me editor do Art in America. Também escrevia para a revista, o que privilegiou o contacto com artistas e críticos. Nessa altura, no início dos anos 80, entrosei-me com um grupo, actualmente conhecido como a geração Pictures, artistas como Cindy Sherman, Barbara Kruger e Louise Lawler, e críticos como Craig Owens, Douglas Crimp e Benjamin Buchloh. Era um meio muito fervilhante e aprendi imenso. Foi por isso que me mantive nele. Tinha a sensação, mesmo na altura, de que fazia parte de um momento. Tinha uma causa, uma razão para escrever, para ser crítico.

"Desde o início, quis pensar a crítica segundo termos históricos e pensar a História segundo termos críticos, e utilizar a teoria em ambos os projectos sempre que fosse apropriado."

barbara kruger

Barbara Kruger, Untitled (Think Twice), 1992 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

 

ADR  Desde muito cedo, o seu trabalho girou em torno da interpenetração da arte, crítica, história e teoria.

HF  Acrescentaria também a política. Foi o momento em que o neoliberalismo surgiu — Thatcher foi eleita em 78, Reagan em 80 — e, por isso, era um momento politicamente carregado. Quanto à interpenetração da crítica, história e teoria, tive modelos portentosos. Fui para a Universidade de Columbia em 1978 para trabalhar com Edward Said, que tinha acabado de publicar o seu livro de referência, Orientalismo, e era já muito activo na política palestiniana. Encontrei, em Said, uma figura carismática na qual crítica, história, teoria e política se associavam. Em Columbia, também conheci as pessoas com quem fundei a revista e os livros da Zone, como Jonathan Crary, e um mentor que era mais um amigo, Sylvère Lotringer, que editava a Semiotext(e) e trouxe a Nova Iorque os teóricos franceses que nós tínhamos lido, como Foucault, Deleuze e Guattari. Rosalind Krauss, que conheci desde cedo, foi também muito importante para mim. Krauss estava imersa na arte contemporânea; o seu compromisso com os minimalistas, em particular, permitiu-lhe reescrever a história da escultura moderna em Passages of Modern Sculpture (1977). Mas também me interessava muito por outras figuras mais políticas, como T. J. Clark, cujo compromisso com o presente passava essencialmente pela sua associação ao situacionismo, o que o levou a repensar a história da pintura moderna francesa desde Manet. Clark era outro exemplo de como um profundo envolvimento com o presente pode abrir uma nova visão do passado. O mesmo com Benjamin Buchloh, meu amigo até hoje, que estava próximo de artistas contemporâneos como Gerhard Richter. Esta ligação abriu-lhe novas leituras de formas tão fundamentais como a abstracção e o ready-made.

A interpenetração da arte, crítica, história, teoria e política também foi um projecto fundador da revista October, com a qual me envolvi no início dos anos 80. Queríamos teorizar arte pós-moderna em relação à teoria pós-estruturalista e à Escola de Frankfurt (de certo modo, acedemos às teorias francesa e alemã em conjunto, que é como quem diz, tarde, a maior parte em traduções). Outro projecto da October, nos seus primeiros tempos, era o de repensar o modernismo através das novas ferramentas teóricas de que dispúnhamos. A grande injunção foucaultiana — escrever a pré-história do presente — também tinha bastante ressonância para nós. Desde o início, quis pensar a crítica segundo termos históricos e pensar a História segundo termos críticos, e utilizar a teoria em ambos os projectos sempre que fosse apropriado.

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