Primeira Pessoa
Eduardo Souto de Moura: «É preciso imaginar Sísifo feliz, senão o que fazemos?»
Pedro Levi Bismarck

Esta entrevista a Eduardo Souto de Moura é um percurso pela obra deste arquitecto, pelos seus tempos e lugares decisivos, e é também uma reflexão sobre o estado da profissão e as condições e contingências para fazer arquitectura, sobre a responsabilidade social do arquitecto e sobre alguns malefícios éticos e estéticos, com marcas bem visíveis em todo o país, que nascem nos ateliers dos arquitectos.

Souto de Moura faz parte daquela constelação de arquitectos, com centro de gravidade em Álvaro Siza, geralmente designada como «Escola do Porto». A sua inscrição no modernismo e a presença de Mies van der Rohe como grande referência são marcas fundamentais na vasta obra deste arquitecto que tem um discurso ao mesmo tempo desencantado e cheio de vitalismo sobre a arquitectura como arte e profissão. Nele, o pragmatismo segue a par de uma visão que tem sempre no seu horizonte o ideal da arquitectura moderna, a conjugação feliz da forma e da função. Mas Souto de Moura é também um arquitecto bem consciente de que a arquitectura é, no mais alto grau, um «gesto» social, e de que o arquitecto está investido de uma responsabilidade da qual não tem o dever de se alienar. Estas e outras questões atravessam com grande lucidez esta entrevista.

PEDRO LEVI BISMARCK  Lançando um olhar retrospectivo sobre o seu percurso, nota-se uma coincidência com o percurso histórico da democracia em Portugal: em São Vítor, com Álvaro Siza — o PREC e essa vontade de «desenhar um país novo»; na casa do Gerês e no mercado de Braga — as primeiras experiências; na Foz e em Nevogilde — as casas para uma burguesia progressista; depois, o salto para os edifícios públicos — a construção dos equipamentos do Estado social; e, por fim, toda uma reorientação que acompanhou a crise económica de 2008–2014 — por um lado, a internacionalização e, por outro, os projectos de reconversão de unidades hoteleiras no quadro da redefinição estratégica de Portugal como país de destino turístico. Entre promessa, consolidação e crise, como é que vê o seu percurso ao longo deste processo histórico?

EDUARDO SOUTO DE MOURA  A arquitectura tem de acompanhar a evolução dos tempos, precisa do poder e, fundamentalmente, de dinheiro: está sempre dependente da circunstância. A primeira oportunidade de intervir em arquitectura foi com o Siza no âmbito do SAAL, onde participei bastante naquelas três casas em São Vítor. Nós vivíamos praticamente lá. Era um entusiasmo para um jovem estudante: quer da arquitectura, quer dessa transformação de um país novo. E isso explica em parte a minha adesão ao Movimento Moderno. Havia uma certa sede de ser moderno — fazer um piloti era quase um manifesto e os Cinco Pontos do Corbusier eram uma espécie de cartilha de esquerda. Havia, portanto, esse sonho de construir um país novo numa micro-geografia que era o SAAL. Mas depois houve uma grande desilusão, politicamente, não com o SAAL propriamente dito. Quando vejo que as casas vão parar à direcção da associação, tenho o meu grande choque político de esquerda. Mais tarde, já no início dos anos 80, aparece, como refere, toda uma burguesia jovem emergente e arejada à procura de casas. Comecei a fazer esse tipo de construção e precisava de uma linguagem de suporte.

PLB  Precisamente: um exemplo que me parece interessante é a reflexão que o próprio Souto de Moura faz sobre a utilização do muro «miesiano» em granito não como um mero elemento formal, mas como um dispositivo que permitia conciliar a «promessa» do projecto moderno e as condições reais da produção da arquitectura em Portugal, nos anos 80.

ESDM  Eu acreditava no programa do Movimento Moderno. Era preciso construir cinquenta hospitais, meio milhão de casas. Mas, ao mesmo tempo, havia aquela euforia toda do pós-moderno na Europa e em Lisboa. Para mim, a ferra- menta necessária para construir esse meio milhão de casas era o Movimento Moderno, não eram os frontões e as colunas. Nem havia dinheiro para isso. Dentro do Movimento Moderno era o Mies quem me interessava, por ser o mais tecnicista: ele inventou um sistema construtivo. E esse trabalho tinha de ser feito em Portugal. Mas não se podia utilizar nem betão, nem ferro, porque ou não tínhamos ou era caríssimo. A minha adesão à pedra não resulta de nenhuma vocação vernacular, surge porque no mercado de Braga o empreiteiro dizia-me: «Ó meu amigo, não há dinheiro para betão, se quiser fazemos em pedra, estamos cheios de pedra.» Comecei a fazê-lo, portanto, por uma razão pragmática: era mais barato. Mas, ao mesmo tempo, parecia-me lógico tirar partido da arquitectura pictórica da simulação, que, na altura, estava muito na moda. E, então, comecei a fazer essa simulação, usando a representação dos materiais e dos muros. E essa arquitectura abstracta feita só com muros — no fundo, um suporte neoplástico — deu-me um certo método para poder fazer arquitectura. Depois apareceram as condicionantes técnicas e era um massacre de pormenores caríssimos e completamente falsos. Bem, a arquitectura é toda falsa. Não era isso que me repugnava do ponto de vista ético, mas começava a ser qualquer coisa contra-natura, sem aquele pragmatismo inicial.

"O arquitecto é um oportunista: tem de apanhar as oportunidades, classificá-las, julgá-las, analisá-las. O arquitecto tem de perceber a realidade. A realidade mudou e eu fui mudando."

torre burgo

Torre Burgo, Porto, 2007 © Fotografias: Luís Ferreira Alves

 

barrocal

São Lourenço do Barrocal, Monsaraz, 2016 © Fotografia: Filipe Jorge

 

PLB  Ao mesmo tempo aparecem obras com outra escala.

ESDM  Exactamente. Com a Torre do Burgo [1991] passei de um para vinte e três pisos. Nunca tinha feito um elevador. E era necessário encontrar outro tema. Nessa altura conheci o [Jacques] Herzog. Dávamos aulas em Harvard. Ele já tinha passado por essas fases todas e estava no centro das decisões culturais. Eu tinha de fazer uma torre, mas não podia ser uma torre neoclássica. E pensava assim: «Estamos na época do mecanicismo tecnicista e, portanto, tem sentido fazer à imagem das coisas do Herzog e das conversas que tínhamos tido, aquilo que ele chamava a acumulação mecanicista.» E assim realizei aquele conjunto sobreposto de peças que davam forma ao Burgo. Portanto, procurei sempre que a arquitectura fosse a resposta concreta a um problema em determinadas circunstâncias. Não há outra maneira senão a de acompanhar as condições de produção da arquitectura. Neste sentido, o arquitecto é um oportunista: tem de apanhar as oportunidades, classificá-las, julgá-las, analisá-las. O arquitecto tem de perceber a realidade. A realidade mudou e eu fui mudando.

PLB  Ao percorrer as suas primeiras obras, parece haver uma dialéctica interior que se exprime no recurso frequente à ironia, à ruína ou ao fragmento. Mas em obras recentes, como na Herdade de São Lourenço do Barrocal [2010–2018], alguns destes princípios parecem ter perdido força. Na Pousada de Santa Maria do Bouro [1989–1997], por exemplo, a ruína não tem nada de romântico, assume a presença do gesto arquitectónico. Pelo contrário, no Barrocal há uma aposta em refazer tudo. Poderíamos dizer: no Bouro, a História revela-se na descontinuidade enquanto crise; no Barrocal, revela-se na continuidade enquanto simulacro — um pouco como, e citando-o, «andorinhas em Alfama». Não há ironia, não há conflito. A minha pergunta é: isto corresponde a um esgotamento dessa dialéctica — na medida em que esta pertencia a um certo momento histórico — ou a uma superação? Resulta de uma mudança na estratégia de projecto ou de uma adequação às condições da encomenda?

ESDM  Há uma adequação, claro. Mas há, sobretudo, uma certa reflexão sobre as consequências do Bouro. O Bouro é um manifesto porque é uma oposição à metodologia do [Fernando] Távora. A recuperação vai sempre buscar um século específico. O Távora escolhia o século XIX. Mas eu perguntava-me: «Porque é que hei-de escolher o século XIX? Eu estou no século XX, vou fazer à século XX!» E, portanto, não tenho nada que recuperar um século. Tenho de fazer um edifício com as pedras de que disponho. «O Bouro é um edifício novo feito com pedras antigas», é assim que começa a memória descritiva do projecto. Mas houve uma consequência nefasta que foi ter-se transformado em moda. E comecei a ver a decapitação de uma quantidade de edifícios — a fingir que eram modernos — em que os telhados eram retirados. Eu não queria ser moderno, queria manter a ruína. E tive um desgosto com aquilo que tinha promovido. Fui percebendo, então, que o património não é um objecto, é uma geografia, um ambiente, uma atmosfera. Foi precisamente disso que gostei quando cheguei ao Barrocal: um ambiente. Fui estudar o Barrocal e li a tese do José Cutileiro [Ricos e Pobres no Alentejo], que é exactamente a história do Barrocal. Na altura pensei: «Não posso reconstruir isto porque não há padarias, serralheiros, nem miséria; mas há uma integração deste conjunto na paisagem que não vai mudar.» Mas como se constrói um ambiente? É como no teatro, faz-se um cenário. Fiz paredes de betão, porque estava tudo caído. E não ia fazer outra vez em tijolo adobe de terra porque volta a cair. Mas o que eu queria era perceber a textura e o sabor do adobe e, então, fiz a tal simulação de betão forrado a adobe, uma maquilhagem. O que acho que não ficou mal. Gosto, e a mão do arquitecto nota-se pouco. Há nisto tudo uma consequência — provavelmente por ter setenta anos — que é ter assistido ao estado em que o país está. E não me venham dizer que não são os arquitectos…

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