Há vidas que parecem contingentes e prescindíveis, mas que as obras tornam necessárias e indispensáveis. Essas vidas e essas obras parecem coincidir, aos nossos olhos admirados, no mesmo perigo e no mesmo prodígio. Mas o perigo e o prodígio em que coincidem é aquilo que as distingue. Neste caso, o fim antecipado da vida foi a condição para o início interminável da obra. Assim, ler os livros de Franz Kafka é estar sempre num começo a que se regressa no fim. Há, na nossa leitura dessas páginas mozartianamente feitas de gravidade e graça, dramma giocoso, um movimento que nos entrega a um vaivém de tempos e de espaços, de formas e de figuras, de classes e de espécies, de naturezas e de mundos. É por isso que esta leitura se torna diferente das outras leituras e nos torna diferentes por essa diferença que se faz nossa.
Com o seu dedo invisível, Maurice Blanchot apontou o combate obscuro e multiplicado que Kafka travava consigo e com o mundo, imaginando este diálogo que estava sempre a acontecer dentro dele, ecoando como no interior de um templo vazio. Uma voz pergunta: «De toda a maneira, tudo está perdido. Devo por isso cessar?» Outra voz responde: «Não, se cessares, és tu que estás perdido.» E assim Sísifo encontrou uma nova espécie de trabalhos e de dias para alcançar, falhando, o seu mito incansável.
Toda a gente escreveu sobre ele e é como se ele, no que escreveu, tivesse escrito sobre toda a gente. Morreu há um século e já se disse que o século em que morreu foi o seu: o Século de Kafka. Esse século foi o dele, porque na sua obra há aquela sombra alastrada e côncava cuja circulação o século XX não foi capaz de evitar ou de impedir, de negar ou de desmentir. Pelo contrário, tudo fez para lhe dar a densidade viscosa que se propaga e se pega à vida e à morte, contagiando-se uma à outra.
Mas será que, para o século XXI, de que vivemos os anos do primeiro quarto, esta obra continua a constituir uma parábola (ou será um insólito e minucioso relatório antecipador?) que nos fala de coisas presentes e de coisas futuras? Será que Kafka prossegue, passando por nós, a sua rota para aquela eternidade que lhe é concedida porque nos é negada? Será que a sua obra continua a ter a voz que nos identifica, nos nomeia e nos escolhe num abraço de urso, num salto de gato ou num roer de rato? (O bestiário de Kafka é infinito).
Nasceu em 3 de Julho de 1883 e, ao morrer, em 3 de Junho de 1924, contava apenas quarenta anos de idade. Se não tivesse morrido de tuberculose naquele tempo tão antes do tempo, talvez a sua morte chegasse selvaticamente alguns anos depois: sete membros da sua família mais próxima — três irmãs, um cunhado e três sobrinhos — foram mortos em campos nazis de extermínio. Kafka não soube disso, mas é como se tivesse sabido.
As fotografias em que vemos Franz, com o seu rosto atravessado de timidez e de astúcia, dão-nos a certeza de que ele estava sempre à espera de qualquer coisa, assim o ar espera o vento que o agita. Nelas, adivinha-se o seu humor angustiado e o seu segredo vazio.
Nos últimos anos de vida, o vulto deste homem, exilado que fez de si mesmo o seu exílio, foi-se apagando como uma caligrafia escrita a lápis num papel fino e manuseado pelo acaso, ou pelo destino, e prometido ao fogo. (Faut-il brûler Kafka? É preciso queimar Kafka?)
Dele e da sua morte se poderia dizer o que o seu contemporâneo Fernando Pessoa disse, oito anos antes, no tributo que prestou à memória de Mário de Sá-Carneiro, o poeta morto muito jovem, a quem dedicava uma amizade tão rara como o sol num dia fechado de chuva cinzenta:
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