Editorial
Kafka e Pinóquio
José Manuel dos Santos e António Soares

Há vidas tão furtivas e fugidias que não cessam de se confundir com o susto do seu fim. Há obras tão secretas e inesgotáveis que caminham sempre para a surpresa do seu início.

Há vidas que parecem contingentes e prescindíveis, mas que as obras tornam necessárias e indispensáveis. Essas vidas e essas obras parecem coincidir, aos nossos olhos admirados, no mesmo perigo e no mesmo prodígio. Mas o perigo e o prodígio em que coincidem é aquilo que as distingue. Neste caso, o fim antecipado da vida foi a condição para o início interminável da obra. Assim, ler os livros de Franz Kafka é estar sempre num começo a que se regressa no fim. Há, na nossa leitura dessas páginas mozartianamente feitas de gravidade e graça, dramma giocoso, um movimento que nos entrega a um vaivém de tempos e de espaços, de formas e de figuras, de classes e de espécies, de naturezas e de mundos. É por isso que esta leitura se torna diferente das outras leituras e nos torna diferentes por essa diferença que se faz nossa.

Com o seu dedo invisível, Maurice Blanchot apontou o combate obscuro e multiplicado que Kafka travava consigo e com o mundo, imaginando este diálogo que estava sempre a acontecer dentro dele, ecoando como no interior de um templo vazio. Uma voz pergunta: «De toda a maneira, tudo está perdido. Devo por isso cessar?» Outra voz responde: «Não, se cessares, és tu que estás perdido.» E assim Sísifo encontrou uma nova espécie de trabalhos e de dias para alcançar, falhando, o seu mito incansável.

Toda a gente escreveu sobre ele e é como se ele, no que escreveu, tivesse escrito sobre toda a gente. Morreu há um século e já se disse que o século em que morreu foi o seu: o Século de Kafka. Esse século foi o dele, porque na sua obra há aquela sombra alastrada e côncava cuja circulação o século XX não foi capaz de evitar ou de impedir, de negar ou de desmentir. Pelo contrário, tudo fez para lhe dar a densidade viscosa que se propaga e se pega à vida e à morte, contagiando-se uma à outra.

Mas será que, para o século XXI, de que vivemos os anos do primeiro quarto, esta obra continua a constituir uma parábola (ou será um insólito e minucioso relatório antecipador?) que nos fala de coisas presentes e de coisas futuras? Será que Kafka prossegue, passando por nós, a sua rota para aquela eternidade que lhe é concedida porque nos é negada? Será que a sua obra continua a ter a voz que nos identifica, nos nomeia e nos escolhe num abraço de urso, num salto de gato ou num roer de rato? (O bestiário de Kafka é infinito).

Nasceu em 3 de Julho de 1883 e, ao morrer, em 3 de Junho de 1924, contava apenas quarenta anos de idade. Se não tivesse morrido de tuberculose naquele tempo tão antes do tempo, talvez a sua morte chegasse selvaticamente alguns anos depois: sete membros da sua família mais próxima — três irmãs, um cunhado e três sobrinhos — foram mortos em campos nazis de extermínio. Kafka não soube disso, mas é como se tivesse sabido.

As fotografias em que vemos Franz, com o seu rosto atravessado de timidez e de astúcia, dão-nos a certeza de que ele estava sempre à espera de qualquer coisa, assim o ar espera o vento que o agita. Nelas, adivinha-se o seu humor angustiado e o seu segredo vazio.

Nos últimos anos de vida, o vulto deste homem, exilado que fez de si mesmo o seu exílio, foi-se apagando como uma caligrafia escrita a lápis num papel fino e manuseado pelo acaso, ou pelo destino, e prometido ao fogo. (Faut-il brûler Kafka? É preciso queimar Kafka?)

Dele e da sua morte se poderia dizer o que o seu contemporâneo Fernando Pessoa disse, oito anos antes, no tributo que prestou à memória de Mário de Sá-Carneiro, o poeta morto muito jovem, a quem dedicava uma amizade tão rara como o sol num dia fechado de chuva cinzenta:

GOYA

Francisco de Goya, El pelele [O boneco de palha], 1791 © Fotografia: Scala, Florença / Museo Nacional del Prado, Madrid

 

Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino; estagna só deus fingido, doente da sua ficção.

No que Franz Kafka viveu, pensou, sentiu, imaginou, fez, sofreu, escreveu e morreu passa o rasto destes deuses que o amaram com um amor que parecia activado pelo mesmo combustível com que o ódio se acende. Na sua vida (exterior e interior) e na sua obra (realizada e irrealizada), alarga-se lentamente, como uma extensa nódoa, uma tragédia, funesta e fria, que ele tratava com a paciência minuciosa e a concentração ligeiramente lúdica de quem tenta resolver, com exactidão, um irresolúvel problema de matemática.

Conta-se que Kafka lia aos amigos os seus escritos dolorosos e sombrios, tornando-os, pelas gargalhadas que dava, em inquietantes e cómicas perseguições infantis ao interior de cada um deles.

Na sua voz clara e labiríntica, é como se o mundo fosse um esconderijo de outro mundo e nós estivéssemos mal-escondidos nesse esconderijo falso, frágil e fatal. A sua voz dá-nos, sem descanso, a notícia de que a vida é sempre uma armadilha de que apenas podemos fugir se quisermos ser apanhados. E diz-nos também que a verdade é uma escavação íngreme na mentira.

De Um Artista da Fome a O Desaparecido, de A Metamorfose a «Um médico de aldeia», de O Processo a O Castelo, da Meditação a «Preparativos de um casamento no campo», das Cartas aos Diários, em toda a obra deste judeu nascido em Praga, que fez do conflito com o pai uma metafísica e que viveu com a sua irmã preferida numa pequena casa da Rua dos Alquimistas (ou do Ouro), há uma aliança entre a punição e o êxtase — aquela mesma que torna as religiões da Lei os lugares onde o corpo se faz uma impossibilidade da alma e a alma uma insuficiência do corpo.

Numa carta, ele faz esta confissão: «Talvez haja outra maneira de escrever, mas só conheço esta: à noite, quando o medo não me deixa dormir. Conheço apenas esta. E a maldade que existe em tudo torna-se muito clara para mim.»

E, no final da assombrosa (e assombrada) «Carta ao Pai», escreve:

«Chegámos, ao que me parece, a um ponto tão próximo da verdade que nos permite a ambos ficar um pouco mais tranquilos e tornar mais fáceis a vida e a morte.»

Noutra hora, ouvimo-lo confessar:

«Só me sinto eu quando estou insuportavelmente infeliz.»

O destino de Kafka consistia em transformar os acontecimentos e as agonias em fábulas. Ele narrava sórdidos pesadelos num estilo límpido. E não é surpreendente que tenha sido leitor das Escrituras e fervoroso admirador de Flaubert, de Goethe e de Swift.

Isto está escrito no catálogo da exposição O Século de Kafka, que o Centro Pompidou apresentou há quatro décadas. Quem o escreveu foi Jorge Luis Borges, num estilo que procura encontrar os paradoxos e as aporias que não desmentem a indiscreta verdade que nos lembra ser o mais notório atributo do Universo — a complexidade. Borges não acrescentou a Flaubert, Goethe e Swift os nomes de Gogol e de Dostoievski, mas Kafka tinha-os entre aqueles de quem nunca se esquecia nos seus movimentos de memória. Com esta inquietante obra, escrita entre a vida e a morte, entre a realidade da ficção e a ficção da realidade, entre o que é móvel e o que é imóvel («Os espectadores param quando o comboio passa», Diário), Kafka tornou-se, poucos anos após a sua morte, aquele de quem o grande poeta e ensaísta anglo-americano W. H. Auden afirmou:

Se tivéssemos de nomear o autor cuja proximidade em relação a nós se assemelha mais à relação que tiveram com os seus contemporâneos Dante, Shakespeare e Goethe, seria sem dúvida Kafka o primeiro em que pensaríamos.

E o católico Paul Claudel disse, com uma certeza imperial que não admitia segurar na mão o ceptro oscilante da dúvida: «Além de Racine, que é para mim o maior dos escritores, existe um outro — Franz Kafka.»

Quando, no seu Diário, Kafka afirma «Sou apenas literatura e não posso nem quero ser outras coisas», não está a afastar-se do mundo, evadindo-se em fuga para um mundo distante, alheio e alternativo de irrealidade e de sonho. Pelo contrário! Por saber que a irrealidade e o sonho, muitas vezes sob a forma de pesado pesadelo ou de insânia mítica, não se separam nunca da realidade e da vigília, numa mistura confusa e até caótica, ele diz-nos que é a literatura que nos permite conhecer o mundo (e o imundo) e enfrentar todas as suas hipóteses e possibilidades, ameaças e riscos, negações e desvios.

Assim, nesta obra, ao mesmo tempo perfeita e fragmentária, total e inacabada, constituída e informe, estranha e fascinante, o rigor descritivo alia-se à alucinação narrativa num fulgor escuro, implacável e cortante. Os fantasmas de Kafka não descem do céu — sobem da terra. E a arquitectura do seu mundo é o eco transtornado ou o reflexo transfigurado da arquitectura do mundo.

No ensaio que escreveu pelos dez anos da morte de Kafka e que se tornou um texto exemplar, Walter Benjamin deixou um sábio aviso: «Para falhar fundamentalmente os escritos de Kafka, pode-se seguir duas vias. Uma é a interpretação natural, a outra a interpretação sobrenatural; de igual modo as duas — quer a psicanalítica quer a teológica — passam ao lado do essencial.»

E observa ainda:

Kafka gostava de ser visto como um homem comum. Constantemente se lhe impunham os limites do entendimento. E ele gostava de os impor aos outros. Kafka tinha uma rara capacidade de criar parábolas. Apesar disso, nunca se esgota naquilo que é interpretável, antes pelo contrário, conseguiu encontrar toda a espécie de dispositivos que dificultam a interpretação dos seus textos. Temos sempre de nos movimentar dentro deles, tacteando com cuidado, com precaução, com desconfiança. O mundo de Kafka é um teatro do mundo. Para ele, a condição natural do homem é estar num palco.

E o autor de O Anjo da História continua a sua exegese:

«Era como se a vergonha lhe devesse sobreviver», são as palavras finais de O Processo. A vergonha, que corresponde em Kafka à «mais elementar pureza dos sentimentos», é o seu mais forte gesto. Mas tem uma dupla face: a vergonha, que é uma reacção íntima do indivíduo, reclama-se ao mesmo tempo de um significado social. A vergonha não é apenas aquela que sentimos diante dos outros, mas também aquela que sentimos por eles. Deste modo, a vergonha de Kafka não é mais pessoal do que a vida e o pensamento que a rege.

Por esta e por outras razões, o historiador judeu checo Saul Friedländer, um dos maiores especialistas mundiais da Shoah e do nazismo, deu ao seu livro o mote que está no título: Franz Kafka: The Poet of Shame and Guilt [Franz Kafka: O poeta da vergonha e da culpa].

Este ensaio biográfico recupera fontes documentais que haviam sido censuradas ou escondidas pelo amigo íntimo e seu testamenteiro Max Brod, para não perturbar, ou pôr em causa, o mito da santidade de Kafka e da pureza moral por ele criado. Friedländer nota que todas as obrigações, dependências, contratos, laços e arranjos (familiares, religiosos, amorosos, sexuais, profissionais, clínicos) que o escritor se obrigava a cumprir, ou fingia cumprir, lhe provocavam vergonha, culpa, horror. E conclui: «E enquanto ele representava plenamente o seu papel no mundo, procurava proteger-se, sabotando-o implacavelmente nos seus textos.»

Tal como Harold Bloom, que considera Kafka o maior, o mais indestrutível e mais paciente representante da nossa época, Friedländer escolhe uma passagem fundamental de uma carta do autor de «O fogueiro»:

Não trouxe comigo nada do que a vida exige, tanto quanto sei, mas tão-só a fraqueza humana universal. Com isto — neste aspecto é uma força gigantesca — absorvi vigorosamente o elemento negativo da época em que vivo, uma época que, é claro, me é muito chegada, e contra a qual eu não tenho o direito de lutar, mas antes, digamos assim, o direito de representar. A pouca quantidade do que é positivo, e também de extremo negativo, que se vira no positivo, constitui algo que não herdei. Não fui guiado pela mão do cristianismo — hoje em dia notoriamente frouxo e débil —, ao contrário de Kierkegaard, e não me agarrei à bainha do xaile judaico das orações — hoje em dia afastando-se velozmente de nós —, ao contrário dos sionistas. Eu sou um fim ou um início.

George Steiner, outro judeu poliglota e sem religião, de uma erudição prometeica e irrequieta, escreve («Uma nota sobre O Processo de Kafka», em Paixão Intacta):

A temática da culpa, omnipresente na vida e na obra de Franz Kafka, tem sido objecto de conjecturas intermináveis. Ele mesmo era pródigo em sugestões e veredictos. Tanto no que respeita aos ideais judaicos como às expectativas brutalmente verbalizadas do pai, Kafka declarou-se um falhado abjecto, um desertor. Kafka insere-se numa relação singular de clarividência em relação ao desumano, ao que há de absurdamente assassino na nossa condição. A tristitia, «a tristeza até à morte», presente nos escritos, nas cartas, nos diários e em observações registadas de Kafka, parece infinita. Mas também há nele um sátiro da sociedade, um artífice do grotesco, um humorista com veia para a farsa e para a comédia inferior.

Sobre a vaga de Kafka na cultura contemporânea, analisa Steiner («K.», em Linguagem e Silêncio):

Kafka projecta uma sombra tão vasta e é objecto de uma actividade crítica assim tão densa porque, e só porque, o labirinto do sentido que transmite comunica, através de trajectos secretos e difíceis, com as grandes linhas de força da moderna sensibilidade perante o que há de mais urgente e fundamental na nossa condição. Seria absurdo negar a qualidade profundamente pessoal do labirinto de Kafka, mas é precisamente esse labirinto, no assombroso núcleo da obra, que reclama e impõe a multiplicidade das abordagens e tentativas que visam penetrá-lo. O que ouvimos em Kafka é um eco que molda o nosso discurso segundo um código carregado de silêncio e de paradoxos desesperados.

(No seu Diário, Kafka escreve: «Hoje não me atrevo sequer a dirigir-me censuras. Criariam um eco repugnante neste dia vazio.»)

Grande admirador de Franz Kafka, o seu compatriota Milan Kundera diz-nos em A Arte do Romance: «A força está nua, tão nua como nos romances de Kafka», perguntando: «Quais são ainda as possibilidades do homem num mundo em que as determinações exteriores se tornaram tão esmagadoras que os móbiles interiores já não pesam?!» E lembra-nos: «A imaginação adormecida do século XIX foi subitamente despertada por Franz Kafka, que conseguiu aquilo que os surrealistas postularam depois dele sem nunca verdadeiramente o realizarem: a fusão do sonho e do real.»

E acrescenta, reforçando o que afirmara: «Os seus romances são a fusão sem falha do sonho e do real. Simultaneamente, o olhar mais lúcido sobre o mundo moderno e a imaginação mais desenfreada. Kafka é, antes de mais, uma imensa revolução estética. Um milagre artístico.»

Numa máxima que se tornou célebre, o autor de A Insustentável Leveza do Ser afirma: «O conhecimento é a única moral do romance.» E poderia ter acrescentado que, nos romances de Kafka, a única moral é a do desconhecimento. Os outros conhecem de nós aquilo que, de nós, nós não conhecemos — e este nosso desconhecimento de nós é aquilo que nos faz ser o que somos, sem sabermos o que somos. Por estas e por outras, Kafka deixou registado no Diário esta pungente confissão: «Quem sou eu, afinal?, gritei a mim mesmo.» Ao seu grito, nunca deu resposta, por isso o encontramos intacto quando o lemos.

Já o grande escritor polaco Witold Gombrowicz, de quem se disse ser, com Joyce e Kafka, uma das vozes mais originais da literatura do século XX (além de originais, poderíamos dizer provocadoras), escreveu no seu Diário, e as suas palavras falam de Kafka, mas também poderiam estar a falar da sua própria obra:

 Gabriele Münter

Gabriele Münter, Zuhören (Bildnis Jawlensky) [Ouvir (Retrato de Jawlensky)], 1909 © Fotografia: João Neves / Städtische Galerie im Lenbachhaus und Kunstbau, Gabriele Münter Stiftung, Munique

 

O Diário de Kafka. Levou-me a revisitar O Processo e a compará-lo com a versão cénica de Gide. Mas também desta vez não consegui ler o livro até ao fim — fico deslumbrado com a luz da metáfora genial que atravessa as nuvens do Talmude, mas lê-lo página após página está além das minhas forças.

Um dia saberemos por que razão, no nosso século, tantos grandes artistas escreveram tantas obras ilegíveis. E como foi possível que esses livros ilegíveis e não lidos tivessem influenciado o nosso século e se tivessem tornado famosos? Com verdadeira admiração e sincero apreço, tive de interromper muitas leituras que me entediavam demasiado. Um dia esclarecer-se-á que tipo de casamento equivocado entre o criador e receptor gera obras desprovidas de sex appeal.

Como se respondesse a Gombrowicz, o crítico literário e historiador de ideias suíço Jean Starobinski, a quem a Electra 7 dedicou um «Registo», escreve assim sobre a obra de Kafka (em Regard sur l’image):

Não há nada lá que nos constranja a desesperar do sentido e da compreensão, porque, no domínio da literatura, o sentido só é vivo na condição de se confessar provisório e ultrapassável.

Este efeito de intimidação exercido pela obra não é em nenhuma parte tão marcado como em Franz Kafka. A grande imagem da obra, como a de Rimbaud, deve ser lida «literalmente e em todos os sentidos». Indefinidamente interpretável, pois transporta nela no seu conjunto toda a estrutura da parábola, e a vontade de não ser senão alusão ao que não se pode dizer — em último recurso, ela é ininterpretável.

Com este entendimento extremado e cortando o fio de uma persistente tradição teológico-mística criada por Max Brod para «interpretar» e «sacralizar» Kafka e a sua obra, Gilles Deleuze e Félix Guattari, no conhecido ensaio Kafka: Para uma literatura menor, vêem, nesta obra de entradas múltiplas e desvãos diversos, a inauguração de uma nova literatura que se leva a si mesma e à sua linguagem até ao devir-animal. Defendem os autores franceses que, ao contrário do que se julga, os livros do jovem homem de Praga, infalivelmente solitário, mesmo se acompanhado, não nos pedem uma hermenêutica dos seus sentidos alegóricos, metafóricos ou simbólicos.

Segundo Deleuze e Guattari, a obra de Kafka, mais ilimitada do que incompleta, não nos pede a decifração talmúdica de uma alegoria latente, de uma metáfora contínua (com a passagem permanente de um sentido literal a um sentido figurado), ou de uma simbologia iniciática e clandestina.

A obra de Kafka representa a laboriosa, estratégica e minuciosa montagem de uma máquina literária de estranhas metonímias por onde o real passa através da escrita, invadindo-a, inundando-a, asfixiando-a, para nos fazer pensar, sentir, imaginar, rir e desejar de outra maneira — um modo de pensar, sentir, imaginar, rir e desejar não antropológico. E é isso que cria uma nova linguagem, levada ao encontro dos seus limites mais longínquos e extraterritoriais.

Enquanto se monta a si mesma, esta máquina desmonta as grandes máquinas sociais contemporâneas ou ainda em formação, sabendo detectar, com satânica eficácia, e antecipar, com instinto luciferino, as «potências diabólicas» do presente e do futuro.

Para os dois autores, o filósofo e o psicanalista, esta obra não nos concede os prazeres privilegiados da interpretação repetitiva e rotineira de códigos e de signos, pois faz deles uma arma de guerra e induz uma experiência a que a política tem de saber dar corpo e alma, mesmo nas «vampíricas» cartas de amor, e que nos torna outros no confronto com ela e com o mundo.

Vindo de outro lugar do mapa filosófico e literário, o biógrafo, ensaísta, crítico e romancista italiano Pietro Citati, apóstolo notório de uma «literatura maior», no livro Kafka: Viagem às profundezas de uma alma, segue uma via contrária à de Benjamin e à de Deleuze e Guattari, fazendo do mal e da sua teologia negativa a moeda com a qual podemos adquirir o que nesta obra é, foi e será, para Citati, fundador e fundamental.

No capítulo do livro dedicado a O Processo, nota o biógrafo italiano:

Assim, não ficamos maravilhados se, como os deuses gregos, ou os do Lebrjabre, os deuses de O Processo, revelam uma fortíssima inclinação para tudo quanto é mentira, falsidade engano, teatro. Mentem os guardas do Tribunal quando garantem a Joseph K. que «saberá tudo a seu tempo»; mente o Tribunal quando invoca um pretexto para atrair K. à catedral; o sacerdote mente quando interpreta a legenda; os retratos dos funcionários são falsos; e de que vulgar espectáculo revisteiro saíram os carrascos do Tribunal, esses autómatos teatrais de cartola?

O que é mentir e quais são as consequências e os efeitos que tem em todos os domínios, campos e planos (filosófico, ético, estético, intelectual, literário, artístico, científico, político, social, económico, financeiro, ecológico, deontológico) em que a mentira opera ou se institui?

Dedicamos, nesta edição da Electra, um conjunto de três ensaios a Kafka para evocar o centenário da sua morte e celebrar a contemporaneidade renovada, constante e incandescente da sua obra.

Se tivermos presente o que nestas páginas é dito e citado sobre o autor de «Durante a construção da Muralha da China», vemos que a voz escrita de Kafka pode ser também um bom guia para o dossier que, neste número, dedicamos ao tema, tão actual, «A mentira» (o título do nosso «Assunto» poderia ser o título de um conto de Kafka). Num dos seus livros, exclama-se: «É a mentira erigida em lei do Universo.»

Os deuses de O Processo de Kafka mentem e, ao mentirem, transformam-se em diabos — e por isso o escritor os criou assim. Na tradição religiosa ocidental, Deus é a verdade, e o diabo é a mentira.

O Evangelho de São João narra: «Eu nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar da verdade. Todos os que pertencem à verdade ouvem a minha voz.

Então Pilatos questionou a Jesus: Que é a verdade?»

Noutra passagem, Jesus afirma: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida.»

No mesmo Evangelho, diz Jesus: «Vós pertenceis ao vosso pai, o Diabo, e quereis realizar os desejos dele. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira.»

É em nome destas proclamações que a Igreja se apresenta como a única e fiel depositária da verdade. Em coerência com isso, condena o relativismo, afirmando assim o absolutismo dogmático que lhe protege o estatuto ontológico.

Alguns vêem nesta identificação tautológica do Deus dos monoteísmos e dos seus ministros e sacerdotes com a verdade, expulsando para o inferno da mentira, onde o diabo reina, as discordâncias, divergências e dissidências, a matriz de todas as formas agressivas e inquisitoriais de tirania religiosa, de intolerância filosófica, de despotismo político e de perseguição do pensamento livre, praticadas ao longo de séculos e ainda vigentes em tantas partes do mundo. Toda a filosofia das Luzes, que inspirou as revoluções americana e francesa, combate esta pulsão absolutista e a concepção religiosa e dogmática do par verdade-mentira.

O homem é um animal que mente, já foi dito, e sabemos por experiência própria e alheia que isso é verdade. Afirma Marcel Proust:

A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra. Mentimos ao longo de toda a nossa vida, até, e sobretudo, e talvez apenas, àqueles que nos amam.

franz marc

Franz Marc, Schöpfungsgeschichte II (Lankheit 843) [História da criação II (Lankheit 843)], 1914 © Fotografia: Verlag der Dichtung, Potsdam

 

A história da humanidade é inseparável da história da mentira, registando as suas formas e metamorfoses ao longo dos séculos e segundo os paradigmas e as epistemes de cada tempo e as suas práticas sociais, económicas, culturais e religiosas.

A mentira como conceito, como palavra e como acto atravessa a história da filosofia em todos os seus domínios puros ou aplicados: ontológico, ético, epistemológico, lógico, jurídico, artístico, político.

A lista (não exaustiva) dos filósofos, teólogos, pensadores, ensaístas que trataram a mentira (e a verdade) é imensa e merece ser notada, pois fala por si no que diz: Platão (A República, O Sofista, Crátilo), Aristóteles (Metafísica, Ética a Nicómaco), Estoicos, Cícero (Por Lucius Valerius Flaccus, De Oratore), Antigo Testamento, São Paulo (Epístola aos Coríntios), Santo Agostinho (Da Dialectica, De Mendacio), São Tomás de Aquino (Suma Teológica), Maquiavel (O Príncipe), Thomas More (A Utopia), Tommaso Campanella (A Cidade do Sol), Lutero (Dos Judeus e das Suas Mentiras), Montaigne (Ensaios), Thomas Hobbes (Leviatã), Descartes (Cartas), Espinosa (Ética), Montesquieu (O Elogio da Sinceridade), Kant (Fundamentação da Metafísica dos Costumes), John Stuart Mill (Utilitarismo), Arthur Schopenhauer (O Fundamento da Moral), Nietzsche (Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral), Oscar Wilde (O Declínio da Mentira), Husserl (Meditações Cartesianas), Freud (A Interpretação dos Sonhos, Duas Mentiras de Criança), Heidegger (O Ser e o Tempo), Wittgenstein (Tratado Lógico-Filosófico, Investigações Filosóficas), Karl Popper (A Lógica da Pesquisa Científica, Conjecturas e Refutações), Hannah Arendt (Da Mentira em Política), Sartre (O Ser e o Nada), Alexandre Koyré (Reflexões Sobre a Mentira), Michel Foucault (Subjectivité et vérité), René Girard (Mentira Romântica e Verdade Romanesca), Derrida (Histoire du mensonge: Prolégomènes), Richard Rorty (Objectivismo, Relativismo e Verdade), Fernando Gil (Mimesis e Negação).

Na literatura, entre tantos outros, Homero, Dante, Boccaccio, Shakespeare, Cervantes, Corneille, Jonathan Swift, La Fontaine, Molière, Goldoni, Casanova, Stendhal, Lewis Carroll, Balzac, Flaubert, Dostoievski, Tolstoi, Mark Twain, Émile Zola (caso Dreyfus), Henry James, Georges Feydeau, Proust, Cocteau («O poeta é uma mentira que diz a verdade»), Orwell, Anaïs Nin, Graham Greene, Simenon, Borges, Yourcenar, Júlio Cortázar, Czesław Miłosz, Kundera, Patricia Highsmith, Philip Roth («Vivemos num mundo onde a mentira reina»), Margaret Atwood, Elena Ferrante, Ian McEwan, Javier Marías, Emmanuel Carrère fizeram da mentira tema de criação ou motivo de reflexão. E Gil Vicente («Todo o mundo é mentiroso e ninguém diz a verdade»), Fernão Mendes Pinto, Padre António Vieira, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Raúl Brandão, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, José Saramago, Mário de Carvalho.

Também a história das artes visuais é percorrida pelas figuras da mentira e do mentiroso. O filme F for Fake de Orson Welles é disso um caso fulgurante.

Entre todas as personagens de mentirosos concebidas pela imaginação, a do Pinóquio, criada por Carlo Collodi, com o seu nariz variável, permanece como grande símbolo do mentiroso eterno.

A Inteligência Artificial no que tem de promessa e de ameaça também tem posto à nossa inquieta ponderação as questões da verdade e da mentira com uma acuidade crescente. Ao tema da IA dedicamos também um ensaio muito esclarecedor e oportuno.

Das mentiras que o nosso tempo tem inventado para com elas se tornar no que é e que invadem o nosso quotidiano, abalando a nossa ingénua confiança nos outros e no mundo, toda a gente fala no conúbio da política com o jornalismo e as redes sociais que gera as fake news. Esta aliança do populismo político com o espectáculo mediático acredita que faz da mentira o motor do êxito imediato, desconhecendo, por interesse, ignorância ou má-fé, os seus efeitos funestos sobre a vida colectiva e individual.

A tentação da mentira intencional, e da falsificação sensacionalista, existe desde que há jornalismo e política, mas, nos dias do nosso presente, encontrou meios, instrumentos e recursos de massificação e manipulação nunca conhecidos e experimentados.

Atingimos uma excitação, uma histeria e uma hiperbolização mediática que, em nome de uma falsa transparência, serve os desígnios mais opacos e está a destruir a política e a arruinar a democracia, constituindo um feroz ataque à cultura como educação para a consciência do mundo. Nesse vozear ininterrupto parece que estamos beckettianamente perante bocas que vomitam caudalosamente, enfaticamente, as palavras inúteis, insignificantes e vazias com que dizem o nada.

Já em 1943, ano da sua morte, a filósofa francesa Simone Weil protestava, com indignação acusatória (O Enraizamento):

[É] vergonhoso tolerar a existência de jornais de que toda a gente sabe que nenhum colaborador poderia manter o seu cargo se não consentisse, por vezes, em alterar conscientemente a verdade.

O público desconfia dos jornais, mas essa desconfiança não o protege. Como sabe de antemão que um jornal contém verdades e mentiras, reparte as notícias entre estas duas rubricas, mas ao acaso, de acordo com as suas preferências. E assim está sujeito a errar.

Toda a gente sabe que, quando o jornalismo se confunde com a organização da mentira, constitui um crime. Mas considera-se que é um delito não punível.

Que cada um leia estas palavras veementes e encontre nelas o impulso intelectual e moral para olhar o que se passa à nossa volta sem concessões nem complacências.

Ao terminarmos este «Editorial», voltamos ao seu início com Franz Kafka e Fernando Pessoa. Num dos seus terríveis Aforismos, diz o escritor checo-judeu, que escrevia em alemão: «Os leopardos entraram no templo e derramaram os líquidos dos vasos das oferendas. Este acontecimento foi-se repetindo e acabou por se tornar previsível. Passou então a fazer parte do ritual da cerimónia.»

Não há melhor retrato da nossa «grande época» do que o que este aforismo nos pode dar, pois nela parece que tudo «primeiro se estranha e depois se entranha» (Pessoa).

Podemos falar do nosso presente falando da mentira e do que a mentira é, representa, realiza e repercute. Deste tempo, Kafka também foi um arauto. Ele soube, na sua obra, captar as forças arcaicas que continuaram o seu caminho até nós e mostram a sua máscara sem rosto e a sua veste sem corpo.

Cercado pelos leopardos abusadores de Kafka, fazendo da mentira a verdade útil, conveniente ou lucrativa, o nosso tempo faz do mundo o templo em que o ritual da vida não cessa de aceitar o inaceitável, tornando-o seu, e dando com isso razão, oportunidade e triunfo aos que nada têm a perder, porque a inteligência com que vencem e dominam é feita da estupidez dos outros.