Assunto
A arte de transformar a própria vida numa obra de arte
Sinziana Ravini

A escritora, psicanalista e curadora Sinziana Ravini descreve e analisa neste artigo uma atitude artística que teve no dandismo da segunda metade do século XIX e depois nas vanguardas históricas do início do século XX a sua manifestação perfeita. Consistia essa atitude em estetizar a vida, fazer dela uma obra de arte, tal como Baudelaire e Oscar Wilde o fizeram no mais alto grau.

«É preciso ser uma obra de arte, ou ser portador de uma obra de arte.»
Oscar Wilde

mike kelley

Mike Kelley, The Banana Man, 1983 © Fotografia: Jim McHugh / Mike Kelley Foundation, Los Angeles

 

Fazer da sua vida uma obra de arte, tal como o fizeram os artistas da vanguarda moderna, tornou-se, na idade do «capitalismo artístico»1 desejoso de uma permanente estetização da vida, moeda corrente. E, no entanto, parece que há um mundo a separar-nos desses dandies de outrora que sabiam, melhor do que ninguém, seguir em sentido contrário ao da sua época. Que representa a estetização da vida e de onde vem a admiração da nossa época pelo apagamento da fronteira que separa a vida privada da vida pública entre aqueles que nos governam no plano político ou artístico? A exibição da vida é um vestígio das vanguardas ou antes o resultado de uma economia de prazer mais arcaica?

Sempre me senti fascinada pelas pessoas que tentaram transformar as suas vidas numa obra de arte, resistindo ao triunfo da burguesia do século XIX, nas cidades esmagadas pelo lucro e pela exploração dos seres e dos recursos naturais. «Apenas existem três seres respeitáveis: o padre, o guerreiro e o poeta. Saber, matar e criar»2, constata Baudelaire em O Meu Coração a Nu. Brummell já anunciara que, depois de Napoleão, não seria possível ser-se soldado3. Mas o dandy continua, como os poetas da vanguarda, um guerreiro, a fazer guerra ao real.

"Pessoa real ou personagem de romance, o dandy é sempre aquele que se inventa a si próprio."

A vanguarda nasce, já em 1830, de um desejo de desconstruir a falsa autonomia de a arte pela arte, que se encontra, por exemplo, em Théophile Gautier no seu prefácio a Mademoiselle Maupin. Este, que num primeiro momento pretende separar a arte da vida, com o intuito de se aproximar delas com maior eficácia, torna-se o primeiro poeta a iniciar um programa tão estético quanto cómico sobre a arte não comprometida. Os seus antagonistas? Os «dragões da virtude», esses jornalistas transformados em sacerdotes. Sem os nossos vícios, ficariam reduzidos à mendicidade. Para Gautier, o único objectivo da vida é a diversão. Foi Deus que assim o quis, assegura-nos, pois foi Ele que fez os perfumes, as belas flores, os bons vinhos, as galgas e os gatos angorás, é Ele que nos permite beber sem ter sede e fazer amor em todas as estações, acções que nos distinguem dos animais mais do que a leitura de jornais ou a produção de constituições. Essa alegria de viver é muitas vezes acompanhada por um dolce far niente. «Um dandy não faz nada»4, afirma Baudelaire, e, no entanto, Baudelaire e os seus semelhantes nunca teriam entrado na posteridade se não tivessem sido corroídos pelo demónio do trabalho.

anna karina

Anna Karina em Vivre sa vie, Jean-Luc Godard, 1962

 

A invenção de si

Pessoa real ou personagem de romance, o dandy é sempre aquele que se inventa a si próprio. Se o herói romântico se via ainda como um ser atormentado pelo Diabo, o herói moderno, tal como o «Belzebu dandy» de Albertus, de Gautier, «O jogador generoso», de Baudelaire, ou o inquietante «O conviva das últimas festas», de Villiers de l’Isle-Adam, parece fundir-se com a sua parte maldita.

Em O Meu Coração a Nu, Baudelaire escreve: «Há em qualquer homem, a qualquer hora, duas postulações simultâneas, uma na direcção de Deus, a outra na direcção de Satã. A invocação de Deus, ou a espiritualidade, é um desejo de subir de grau; a de Satã, ou a animalidade, é uma alegria de descer»5, como se tivesse acabado de ler as teorias de Freud sobre a pulsão de vida e a pulsão de morte.

Sempre à procura de uma elegância aristocrática, o dandy prefere a malícia dos pequenos gestos, um rosto marcado de invulnerabilidade, uma ironia mordaz nos lábios, um sorriso que fere, um gracejo bem colocado. Brinca, mas não se abre, é um «diletante que cerra os dentes»6. O que esmaga o dandy é o tédio. Numa das suas cartas, Flaubert evoca uma tristeza profunda que não vem de lado nenhum em específico, mas que está ligada à própria substância da existência: «Tive, quando era jovem, um pressentimento completo da vida. Era como um odor de cozinha nauseabundo que escapa por um respiradouro. Não é preciso provar para saber que provoca vómitos.» Era contra essa existência que provoca vómitos que os poetas malditos se rebelavam, tentando manipular o real como se este se tratasse de uma plasticina: «Deste-me a tua lama e eu fiz com ela ouro», declarava Baudelaire em As Flores do Mal.

Quando Baudelaire esgrime contra a existência, a espada remete-o para a lama do inferno, mas o inferno encontra-se igualmente do lado da espada, como se não houvesse saída possível desse círculo infernal. «O inferno são os outros», constata Sartre, que tanto gostava de Baudelaire. Para Baudelaire, o inferno é também uma mulher: «A mulher é o contrário do dandy. Portanto, deve causar horror. A mulher tem fome e quer comer, tem sede e quer beber. Está com cio e quer ser fornicada. O grande mérito! A mulher é natural, isto é, abominável.»7 Não é por acaso que a mulher surge nessa época como a própria encarnação do mal no mito de «a mulher fatal». Os dandies viam-se igualmente desconfortáveis com a natureza. «Detesto o campo: só árvores, terra, ervas! Que me interessa isso? É muito pitoresco, está bem, mas é um tédio de morte», constata Gautier no prefácio de Les Jeunes France. A crítica da sociedade estende-se, então, a toda a existência, e poder-se-ia até dizer que fazer da sua vida uma obra de arte implica, indirectamente, suprimi-la.

1. Gilles Lipovetsky, Jean Serroy, O Capitalismo Estético na Era da Globalização, Trad. Luís Filipe Sarmento, Lisboa: Edições 70, 2014.
2. Charles Baudelaire, O Meu Coração a Nu, precedido de Fogachos, Trad. João Costa, Lisboa: Guimarães Editores, 1988, p. 199.
3. Alexandre Kojève, em entrevista com Gilles Lapouge, Quinzaine littéraire n.º 500, 15.01.1968.
4. Charles Baudelaire, op. cit.
5. Ibid.
6. Marcel Boulenger, Cours de vie parisienne à l’usage des étrangers, Paris: Librairie Ollendorff, 1913.
7. Charles Baudelaire, op. cit.

[...]