Corpos errantes, imagens itinerantes
Wolfgang Tillmans, um dos artistas mais importantes no panorama global da arte contemporânea, e indicado este ano pela revista TIME como umas das cem pessoas mais influentes do mundo, apresenta nesta edição da Electra uma série de fotografias feitas nos últimos anos e que nunca foram publicadas. O ensaio, assinado por Afonso Dias Ramos, explora e situa estas imagens no contexto de um consagrado trabalho com mais de quatro décadas.
E nos tempos sombrios,
Também se cantará?
Sim, também se cantará.
Sobre os tempos sombrios.
Bertolt Brecht, «Motto», 1939
Wolfgang Tillmans é provavelmente o autor na fotografia contemporânea que maior impacto gerou entre as novas gerações de artistas visuais. Teve retrospectivas recentes no MoMA em Nova Iorque (2022), na Tate Modern em Londres (2017) e no Moderna Museet de Estocolmo (2012–13), e acaba de ser indicado pela revista TIME como uma das cem pessoas mais influentes do mundo. Neste portfólio que apresentou à Electra, Tillmans seleccionou e distribuiu pelas páginas uma série de fotografias inéditas feitas nos últimos anos. São constelações de imagens que se percorrem como o diário de um nómada, um conjunto fugitivo de apontamentos casuais, gestos soltos ou encontros acidentais, à medida que atravessava lugares como Acra, Porto, Lagos ou o Vaticano. Mas essa viagem nunca perfaz um mapa, e muito menos redunda numa história. Trata-se antes de lançar uma sonda pelos caminhos que percorre, dando conta de objectos, paisagens, pessoas e obras de uma forma aparentemente aleatória, embora cuidadosamente estudada, com base na interrogação mútua do mundo e da fotografia. Este acto de observar convoca a diluição entre os espaços do seu estúdio e a realidade exterior, medindo, testando, interpelando e manipulando aquilo com que se depara e aquilo que compõe. O resultado assemelha-se a um índice dos caminhos que o artista vai navegando no dia-a-dia, dando origem a uma rede de imagens que nunca tem, no entanto, uma taxonomia clara ou conjugação óbvia.
É revelador que Wolfgang Tillmans se tenha iniciado na prática visual através de fotografias de astros, experiências com fotocópias e recolhas de imagens. São essas cosmologias que, de certa forma, ainda informam e tornam imediatamente reconhecível a sua obra. Conciliando sempre a posição de fotógrafo, curador e crítico, a mediação do mundo através do olhar é-lhe tão relevante quanto a distribuição espacial das fotografias pela página (ou pela parede). Como numa mesa de montagem na qual tudo se relaciona, justapõe e recombina, as suas instalações são pensadas nos termos de uma melodia, cujo ritmo é determinado pelo contraste entre as várias dimensões e géneros de imagem, ou pelas tensões entre cor, luz e forma, aliando a intimidade pessoal a uma dimensão mais lúdica. O que prevalece aqui não é somente a ideia de uma imagem auto-suficiente, mas antes a dinâmica relacional entre estas. Sem uma sequência predeterminada nem uma narrativa linear, a montagem espacial intensifica a experiência visual e sensorial das imagens, apelando a uma espécie de «observador impróprio», que aborda a montagem de acordo com os seus interesses e os seus desejos, alheio à intencionalidade do artista.
Apesar da atenção cuidada à composição de cada imagem, saturadas como se de um pigmento puro e explorando novas tecnologias digitais com uma resolução tão elevada que se torna impossível esgotar os seus ínfimos detalhes, nenhuma tem a pretensão do ícone nem exige a reverência do monumento. A instalação privilegia a capacidade da fotografia para articular o mundo em termos relacionais, sem centro nem hierarquia, sem distinção óbvia entre o icónico e o banal, ou entre o encenado e o improvisado, assumindo-se antes como algo provisório, fluído e plural. As composições organizam-se a partir daquilo a que Tillmans chamou de «imagem errante»1: um modo deambulatório de intervir no mundo através de confrontações aparentemente fortuitas com pessoas, lugares e objectos. A ideia de sociabilidade e de sexualidade permeia estes agregados visuais, eco de uma carreira fotográfica que se notabilizou nos anos 90 com as suas imagens da vida nocturna em Londres e Berlim, numa ode à subcultura das raves, à cena da música electrónica ou ao activismo queer, como manifestações espirituais e solidárias.
Expondo a intensidade do amor e da perda sem tumulto, numa exultação afirmativa, Tillmans privilegiou essa proximidade do contacto físico e da vida privada, mas não como mero documento libidinoso dessas décadas de mudança social e política. Como afirmou, trata-se de entender a imagem em si como análoga ao corpo humano2 — simultaneamente um objecto e um acto físico, que participam do e se abrem ao mundo. Esta afirmação de um novo modo de subjectividade na prática fotográfica poderia assim descrever-se como uma forma de intensidade, o oposto de uma sequência, portanto, focando instantes de exuberância vital e excesso corporal que não se podem articular verbalmente. Pierre Klossowski definiu essa ideia da «intensidade» como a experiência existencial que derruba a ordem do discurso filosófico. Mas aqui, isso traduz-se num tributo ao espanto do olhar contra a rigidez da palavra, na abertura à contingência e intraduzibilidade das coisas do mundo, com tal simplicidade que frustra a descrição.
Com o panorama contemporâneo consumido e saturado pela ideia de distopia, exibindo um apego obsessivo pela ironia e pela profecia, e num momento pós-político que profanou as visões utópicas de há três décadas atrás, votando-nos a um certo tipo de «hedonismo depressivo», como o descreveu Mark Fisher, Wolfgang Tillmans assumiu recentemente posições públicas através do seu activismo a favor da democracia liberal e da União Europeia, contra a nova onda de etno-nacionalismo e o Brexit. Mas ao mesmo tempo, a sua obra manteve uma insistência radical no resgate desses instantes decisivos de solidariedade ou empatia, celebrando a diversidade e intensidade de uma existência corpórea no mundo — não só o corpo humano exposto em toda a sua vulnerabilidade e êxtase, mas também a imagem como um corpo em si, como matéria sensível e sensual, numa atitude que o aproxima das novas concepções filosóficas da política enquanto, nas palavras de Lauren Berlant, «aquilo que magnetiza um desejo de intimidade, socialidade, solidariedade afectiva e felicidade».3
O portfólio assinala a tendência de Tillmans na última década para deslocar o foco das subculturas alternativas para a elegante banalidade do quotidiano, para a sublimação do prosaico. Mas esta justaposição e acumulação visual evoca algo próximo da lógica contemporânea das imagens e das redes de distribuição instantânea, cuja velocidade de disseminação e consumo nem o espectáculo debordiano ou a dispersão deleuziana conseguem abarcar. Aquilo que Tillmans extrai meticulosamente ao ruído do mundo pertence a um novo tipo de olhar que, parafraseando Claire Bishop, jaz algures entre a curiosidade subjectiva e o algorítmico, uma forma de visualização aleatória, numa certa instabilidade de conteúdo que se actualiza e regenera, sem diferença categórica entre o significativo e o banal.4 Esta modalidade de olhar, que é associativa, rápida e aleatória, é manifestamente diferente da histórica compilação de imagens como o Atlas de Warburg, em busca de parentescos transhistóricos ou de sintomas profundos. As disposições de imagens de Tillmans remetem para novas estruturas de relacionalidade que organizam a experiência vivida do presente, com todo esse fluxo ininterrupto e versátil de imagens que invadiram a vida social, mas também aludem à transformação das possibilidades de identidade e inteligibilidade dos seus públicos nestas últimas décadas. Ao procurar emancipar a imagem, multiplicando-a e desmultiplicando-a para abri-la a novas cadeias de relação, Tillmans mostra assim que a circulação desenfreada de fotografias é algo intimamente ligado à ideia de mobilidade, diversidade e mutabilidade das identidades no mundo em que vivemos.
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