Obras escolhidas
Dora Maar e Berthe Morrisot: Em nome próprio
Helena de Freitas

Berthe Morisot (1841–1895) e Dora Maar (1901– –1997), duas mulheres e duas artistas. Nos tempos em que viveram, a sua condição de mulheres causou grave prejuízo à sua condição de artistas. Por isso, é hoje impossível olhar as obras delas sem olhar o que as condicionou, determinou e limitou. As exposições retrospectivas, apresentadas em Paris, no Museu d’Orsay e no Centro Pompidou, mostram essas obras que não se separaram dessas vidas e que tiveram de conquistar, nelas, a sua possibilidade e o seu risco. É disso que nos fala, com inteligência crítica e compreensiva, a historiadora, investigadora e curadora Helena de Freitas. As suas palavras são atravessadas pela altiva e corajosa melancolia com que estas artistas se afirmaram perante um mundo que as negava.

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Dora Maar, c. 1930
© Dora Maar Estate / Artists Rights Society (ars), Nova Iorque / adagp, Paris
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

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Berthe Morisot, La Cage [A gaiola], 1885

Algumas datas, escandalosamente recentes, servem para situar a presença das mulheres nas narrativas da História e da História de Arte: 1792, ano em que foi recusada em França, pela Convenção, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã1 e 1897, data em que o ensino artístico oficial na École des Beaux-Arts lhes foi finalmente acessível. Se é impensável a recuperação de muitos séculos de silenciamento, torna-se imperativo sinalizar essa consciência.

É por isso irreflectido comentar como fenómeno de moda a regularidade (e insistência) com que vários museus preenchem a sua programação com acções no feminino, sobretudo quando ela faz eco de uma investigação séria e coerente e é apresentada como reparação do conhecimento. São os casos, entre outros, da recente programação do Centro Pompidou e do Museu d’Orsay, em Paris2. Ambos os museus se recentraram numa política dinâmica de exposições, de pesquisa e de edição (e também de aquisição) à volta destas femmes artistes3. De destacar o investimento de investigação temático e disciplinar em Orsay, cuja acção global reflecte um plano e uma pesquisa continuada. No novo percurso da colecção são sinalizadas as mulheres artistas, mas também as mulheres mecenas e ainda as críticas de arte, desenhando um mapa muito completo da presença nas artes dessas protagonistas no final do século XIX, para também melhor se compreender o enquadramento da obra de Berthe Morisot, a artista em foco no museu.

Os percursos artísticos de Dora Maar (1907–1997) e de Berthe Morisot (1841–1895), desenvolvidos em tempos e contextos diferenciados, têm pontos comuns. Até hoje mais conhecidas e mediatizadas pelo olhar de outros — Dora fixada em femme fatale pela câmara de Man Ray e Berthe imortalizada nas pinturas sensuais de Édouard Manet —, enquanto modelos e artistas jogaram as suas vidas pessoais e artísticas no território conflituoso dessa dupla condição, na conquista pela profissionalização.

Na estratégia de comunicação das duas exposições torna-se evidente a mudança de paradigma: repensar o astro masculino na área de influência das criadoras, desfazer o conjunto de clichés sobre as suas obras e impor a singularidade dos seus nomes de autoras no título das exposições, dispensando adjectivações valorativas. A visita comparada às duas exposições permite-nos traçar o percurso das artistas e compreender o contexto histórico em que o fizeram.

O Pompidou reivindica justamente a exposição de Dora Maar como a maior das suas retrospectivas. O propósito curatorial trata de repor o corpo pleno do seu trabalho e desconstruir a imagem de Dora como a mulher que chora, estigmatizada, e assim nomeada na pintura de Picasso, seu amante e companheiro de trabalho durante nove anos, superando a condição de musa pela de autora.

Dora surge na primeira parte da exposição como a garçonne emancipada, o génio da publicidade e da fotografia erótica e de moda, fotógrafa de rua, membro activo e participante do movimento surrealista, autora de fotomontagens audazes. Dora revela-se como a artista que toma a iniciativa e que captura as imagens dos outros, modelos e companheiros de trabalho, e que se antecipou, fixando com a sua objectiva e por diversas vezes a imagem e o rosto de Picasso (Inverno de 1935–36) com o talento de artista que tinha uma identidade a impor. Nesse jogo a dois, entre Picasso e Dora, foi ela a primeira a jogar.

A exposição, que declina em extensas séries todo o brilho e a singularidade experimental do trabalho fotográfico de Dora Maar, parece suspender-se numa sala, onde se arrisca um combate. Picasso irá devolver-lhe o lance: sabe-se que a encorajou e arrastou para o território da pintura. E assim, frente-a-frente, encontramos os dois artistas, num combate desigual. Dora cai na armadilha da réplica, sai do seu espaço e pinta, à maneira de Picasso, o retrato do seu amante (1936), deixando-o proclamar «xeque-mate»4. Fica aqui simbolicamente marcada a perigosa encruzilhada do seu destino artístico. Certamente com um propósito pedagógico, a exposição sinaliza nesse ponto (turning point) o exacto momento do seu declínio. Nos espaços seguintes traça-se o percurso sombrio da sobrevivência da mulher e da artista, que resiste nesse erro, e só já numa idade avançada retoma a fotografia, em exercícios experimentais e abstractos, marcadamente influenciados pelas suas fugas espirituais — valerá a pena consultar os dados biográficos e conhecer as suas passagens pela psiquiatria, os internamentos e as crises místicas. E também olhar com atenção o seu auto-retrato, pintado em 1947, onde deixa marcada essa condição, de deliberada reclusão e tristeza: c’était Pablo ou Dieu.

Se é certo que a exposição recupera em definitivo o seu estatuto de criadora e nos devolve, num extenso e bem organizado corpo de obras, a escala e a ambição de uma carreira multifacetada, é também a percorrer esse vasto percurso que encontramos, e somos livres de interpretar, a luz negra de um astro conhecido.

Tal como Dora Maar, também Berthe Morisot põe o trabalho no centro da sua vida. Fundadora do Impressionismo, foi a única mulher a expor ao lado dos nomes conhecidos da sua geração, afirmando-se como figura destacada da vida artística parisiense, dos seus salons e circuitos oficiais. Fez parte desse movimento de renovação da pintura e dos seus temas oficiais, e foi também a única artista, burguesa é certo, a explorar de modo radical as possibilidades de representação da vida moderna, onde se distinguiu nos temas (le plein air, la lumière claire) e nos modos (non fini). Lutou pelo reconhecimento do seu estatuto de pintora profissional numa época em que a Escola de Belas Artes não era acessível às mulheres e, não tendo sido feminista, apesar de ter vivido no tempo em que o feminismo emergiu em França, sonhou e desejou ser tratada de igual para igual: «Je ne crois pas qu’il y ait jamais eu un homme traitant une femme d’égal à égal, et c’est tout ce que j’aurais demandé, car je sais que je le vaux» [Não creio que alguma vez tenha existido um homem que tratasse uma mulher de igual para igual, e isso era tudo o que eu pedia, porque sei o que valho].

A sua acção artística foi em vida notada e referenciada criticamente, mas a imagem que se impôs ao longo do tempo, aquela que melhor chegou até nós, foi o olhar negro e intenso com que Édouard Manet a imortalizou.

A exposição de Berthe Morisot no Museu d’Orsay interpela-nos pela sabedoria com que apresenta as suas (cerca de 80) obras e pela capacidade de nos interrogar sobre a menor visibilidade da autora face aos seus companheiros da aventura impressionista, Claude Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir, Camille Pissarro, Édouard Manet. No final, a reparação fica feita e os diálogos que podemos estabelecer entre as obras em exposição e a presença destes seus companheiros no museu são ricos e pertinentes.

Berthe fez parte de uma geração de mulheres ainda confinada à esfera doméstica, mas soube retirar do interior desse casulo familiar o essencial para avançar algumas questões temáticas essenciais à pintura do seu tempo, tomando um ponto de vista: a representação do trabalho das educadoras e das domésticas e, sobretudo, a representação de uma paternidade activa. E assim se chega de novo à questão central do artista e do modelo.

Berthe posou pelo menos onze vezes para Édouard Manet, com quem manteve uma relação de grande proximidade, mas foi com Eugène, irmão deste, que acabou por casar. E se até à data não é conhecido nenhum retrato do pintor realizado por ela, que nunca se terá deixado capturar, foi Eugène quem lhe serviu de modelo, nas variadas cenas domésticas e familiares, interiores e de ar livre, a cuidar da filha Julie, assim inovando nessa ousada representação da paternidade.

Berthe mostra intuição e firmeza. O seu auto-retrato não deixa dúvidas: posa para o espectador de paleta e pincel na mão, olhar frontal e o cabelo apanhado numa pose audaz e menos feminina para os estereótipos do tempo. A estratégia curatorial da exposição derruba os discursos da feminização e desvia o nosso olhar para os sinais da sua independência, singularidade e discreta altivez, nos temas e nas escolhas plásticas, surpreendentes até ao fim.

O gesto de escolher o modelo e de o colocar em pose é uma forma de poder, que Paula Rego tão bem soube enunciar muitos anos depois: «I wanted to do a girl drawing a man very much, because this role-reversing is interesting. She’s getting power from doing this, you see…»5 [Queria muito fazer uma rapariga a desenhar um homem porque esta inversão de papéis é interessante. É ela que tem o poder, percebe…].

1. A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã é um texto jurídico produzido em 1791, no contexto da Revolução Francesa, exigindo o estatuto de completa assimilação jurídica, política e social das mulheres. A sua autora Olympe de Gouges foi guilhotinada dois anos depois.
2. Foi neste contexto que foram apresentadas as exposições de Helena Almeida, no Jeu de Paume em 2016 e de Paula Rego, na Orangerie em 2018.
3. A programação do Pompidou para 2019–2020 anuncia Cao Fei, Sonja Ferlov Mancoba, Dorothy Iannone, Alice Neel, Hito Steyerl, Les Femmes dans l’abstraction, Georgia O’Keeffe.
4. Picasso, La femme qui pleure, 1937, em exposição.
5. Jackie Wullschläger, «Paula Rego: the subversive power of paint», Financial Times, 26-06-2019.