Assunto
Genocídios. Notas sobre a má consciência dos filósofos
Alessandro Dal Lago

Na obra do sociólogo italiano Alessandro Dal Lago, há um livrinho polémico intitulado Genocidi animali (2018), escrito com dois amigos, Massimo Filippi e Antonio Volpe, que causou controvérsia por causa da palavra «genocídio». Este artigo, que começa por uma narrativa biográfica, é uma incursão na «história da indiferença dos filósofos para com o mundo animal».

dfhshs

1.

Quando me propuseram que escrevesse para esta revista um breve texto sobre filosofia e animalidade, não acreditei que a tarefa fosse assim tão difícil. Afinal, pensei, a questão foi amplamente tratada pelos filósofos nas últimas décadas, a bibliografia tornou-se imponente e as dissertações académicas são mais que muitas… Mas é precisamente nesta abundância que está o problema. Como dizer algo de novo? Como escapar à tentação de resolver o assunto com um pouco de erudição? Por fim, decidi enfrentar a questão de viés, indirectamente, falando da má consciência dos filósofos para com os animais, mas partindo da minha experiência de intelectual (não sou um filósofo no sentido estrito do termo, e tão-pouco um académico).

Nos últimos vinte anos da minha vida fui sentindo um incómodo crescente com o consumo de carne. Não se trata de mera questão higiénica ou de saúde. No meu caso, o mal-estar nasceu da evidente contradição entre o meu amor por certos animais domésticos, como os gatos, e a indiferença para com os seres vivos que iam acabar, sob qualquer forma, no meu prato. Assim, fui renunciando, a pouco e pouco, à carne bovina, ao borrego, ao porco e aos pequenos animais terrestres. E depois aos peixes, começando pelos maiores. Mas não sou vegan: gosto de queijo, desde que não provenha de explorações industriais, e não consigo abdicar completamente dos moluscos. O meu trajecto rumo a uma alimentação vegetariana foi longo e contraditório. No passado recente, se alguém me convidava para jantar e não conhecia os meus gostos, procurava evitar embaraços e até provava uma massa com ragu, mesmo sabendo que era cozinhada com carne. Nestes casos, limitava-me a invocar genericamente um qualquer problema de digestão e, depois de elogiar o cozinheiro ou a cozinheira, a dizer que não queria engordar. Como vêem, hipocrisia não me falta.

Até há cerca de um ano, porém, fui reduzindo progressivamente as proteínas animais, praticamente até zero. De modo geral, ter-me tornado efectivamente vegetariano fez-me sentir melhor e reconciliar com a minha consciência. Mas a seguir aconteceu algo imprevisível. No espaço de dois meses, e sem que tivesse sintomas específicos, diagnosticaram-me dois tumores, um deles no intestino. Fui operado e estou, aparentemente, curado. No entanto, emagreci muito, o meu tónus muscular diminuiu bastante e, não podendo comer legumes, proibidos pelos médicos, vi-me forçado a uma dieta de proteínas animais. Ou seja, recomecei a comer peixe (a carne terrestre continua a incomodar-me). Em pouco tempo, traí parcialmente as minhas convicções, ainda que o tenha feito por necessidade. É óbvio que, quando a minha convalescença chegar ao fim, voltarei a ser vegetariano.

Se tomei a liberdade de partilhar estas notas pessoais, foi sobretudo para pôr as cartas na mesa. Quando temos uma posição moral — como para mim a recusa da carne —, não é possível escapar-lhe calando de modo mais ou menos elegante (ou hipócrita) as nossas escolhas práticas, incluindo as fraquezas e contradições.

"No livrinho [Genocidi animali ] , à pergunta sobre se, na minha opinião, se podia falar de «genocídio» no caso do extermínio quotidiano dos animais, respondia afirmativamente, a partir da própria noção de genocídio, isto é, o assassínio de um género inteiro de seres vivos."

zvnlkzd

Teresa Ferrand, Burra Peau d'Âne, 2003
© Fotografia: Laura Castro Caldas

 

A franqueza, que aprendemos a praticar com a irrupção de Nietzsche na cena do pensamento, permite-nos também interpelar os nossos interlocutores e apelar à sua sinceridade: eu abri o jogo, e vocês? Nas questões que têm que ver não com a ética em sentido abstracto, mas com as decisões morais quotidianas, aqui e agora, esta atitude conta e muito.

Partindo destas considerações, abordarei agora o problema da má consciência filosófica em relação aos animais. Também neste caso estive pessoalmente envolvido, como contarei já de seguida, embora não como actor prático, com as suas contradições, mas como escritor ou intelectual. Resumidamente, publiquei em 2018, juntamente com dois amigos, Massimo Filippi e Antonio Volpe, um livrinho intitulado Genocidi animali [Genocídios animais]1.Trata-se, na verdade, de uma conversa entre dois filósofos animalistas e eu — alguém apaixonado, à sua maneira, pelas questões morais fundamentais, entre as quais se destaca a violência para com os outros seres, ainda que sinta um forte cepticismo em relação à capacidade da humanidade de libertar-se da propensão para matar outros seres vivos, humanos ou não.

No livrinho, à pergunta sobre se, na minha opinião, se podia falar de «genocídio» no caso do extermínio quotidiano dos animais destinados ao nosso prato, respondia afirmativamente, a partir da própria noção de genocídio, isto é, o assassínio de um género inteiro de seres vivos. Citava, a esse respeito, aquele que é, para mim, um texto decisivo sobre a questão: A Vida dos Animais, de J. M. Coetzee, um livro que li pela primeira vez há quinze anos, que me comoveu profundamente e que não é alheio à minha decisão de não voltar a comer carne.2 O livro é um conto — ou melhor, um meta-conto — que tem como protagonista Elizabeth Costello, uma velha e desencantada escritora que profere, num college na Nova Inglaterra onde o filho ensina física, duas conferências sobre animais («Os filósofos e os animais» e «Os poetas e os animais») e participa, em seguida, num debate sobre as suas posições com um professor do college. O livro contém também algumas intervenções meta-meta-narrativas de antropólogos e filósofos (Doniger, Garber, Smuts e Singer) que se interrogam de diferentes formas sobre as relações entre a humanidade e os animais.

[...]

*Tradução de Bernardo Ferro

1. Alessandro Dal Lago, M. Filippi, A. Volpe, Genocidi animali, Milano–Udine: Mimesis, 2018.
2. J. M. Coetzee, La vita degli animali, Adelphi, Milano, 2003. [A Vida dos Animais, Lisboa: Temas & Debates, 2000.]