Passagens
Dinheiro de brincar
Olivia Rosenthal

Há uns dias, enquanto cumpria, sem certificado ou autorização de circulação, um pequeno passeio quotidiano para me ajudar a aguentar o teletrabalho, deixei o meu olhar vaguear pelo chão, pensando nos presos que, por não poderem alcançar com o olhar a linha do horizonte, acabam por perder a visão. Por solidariedade para com eles, fixava os limites do passeio à minha frente quando um rectângulo cor-de-laranja atraiu a minha atenção. Apanhei-o. Qual não foi a minha surpresa ao verificar que correspondia em tudo a uma nota — e que era, de facto, uma nota de 50 euros! Saboreava já este tesouro modesto quando descobri que, ao contrário das notas que conhecia, esta estava decorada com uma figura feminina — não uma alegoria da República, da Fecundidade ou da Justiça, meio despida e envergando uma túnica romana, como é habito nas figuras femininas impressas em notas.

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© Björn Wylezich / AlamyStock Photo

Há uns dias, enquanto cumpria, sem certificado ou autorização de circulação, um pequeno passeio quotidiano para me ajudar a aguentar o teletrabalho, deixei o meu olhar vaguear pelo chão, pensando nos presos que, por não poderem alcançar com o olhar a linha do horizonte, acabam por perder a visão. Por solidariedade para com eles, fixava os limites do passeio à minha frente quando um rectângulo cor-de-laranja atraiu a minha atenção. Apanhei-o. Qual não foi a minha surpresa ao verificar que correspondia em tudo a uma nota — e que era, de facto, uma nota de 50 euros! Saboreava já este tesouro modesto quando descobri que, ao contrário das notas que conhecia, esta estava decorada com uma figura feminina — não uma alegoria da República, da Fecundidade ou da Justiça, meio despida e envergando uma túnica romana, como é habito nas figuras femininas impressas em notas, mas um retrato com um rosto verdadeiro, um rosto que podia ser de uma mulher real, que tinha existido um dia e que, pelas suas acções, escritos ou palavras, merecia aparecer numa nota — um pouco como, no tempo dos francos, tínhamos Corneille, Pascal e Voltaire para nos recordar a natureza altamente literária do nosso país.

Não conhecia aquela mulher. Pensei, com toda a lógica (pois quem teria a ideia de gravar o rosto de uma mulher numa nota?), que se tratava de uma falsificação e decidi verificar imediatamente se assim era testando o seu valor de troca num dos estabelecimentos comerciais ditos essenciais, onde ainda era permitido ir. Dirigi-me, pois, à livraria mais próxima, cuja entrada estava bloqueada por uma mesa com um letreiro que dizia click and collect. O vendedor disse-me que podia dar uma volta rápida pela loja para escolher o que queria. Em seguida, pedir-me-ia para lhe dizer os títulos que queria comprar e ele mesmo iria buscá-los. A ideia de ter de dizer-lhe os nomes sem ter tido a ocasião de passear pelas diferentes secções deixou-me um pouco paralisada, pois tenho o hábito de deambular pela livraria, agarrar num livro, pegar noutro, examinar a contracapa — em suma, engonhar até ter a certeza (às vezes desmentida) de que um determinado livro me vai oferecer uma abordagem estimulante, diferente ou surpreendente a esta ou àquela questão, na qual não tinha pensado. Ou seja, procuro um livro capaz de mudar a minha maneira de ver e talvez até de viver (temos o direito de acreditar desmesuradamente no poder de emancipação que os livros oferecem).

Como tinha de ser rápida, deixei-me tentar por duas obras que mereciam, certamente, ser lidas, a julgar pelas cintas e pelas recomendações. De volta ao balcão, enunciei o nome dos dois autores e pousei a nota diante do vendedor, que começou por observá-la, lançando-me um olhar desconfiado. Como eu fingisse indiferença, ele pegou na nota, apertou-a entre os dedos, virou-a e revirou-a, observou-a à transparência, contra a luz, tacteou a filigrana com que estava decorada e consultou o computador para confirmar a sua existência, visivelmente recente (deve ter sido posta em circulação durante o último confinamento, quando toda a gente estava suficientemente preocupada com a epidemia para que a introdução daquela divisa com rosto de mulher constituísse um novo motivo de discórdia, produzisse uma explosão de reacções violentas contra as supostas feministas separatistas que estavam na origem da malfadada iniciativa e desembocasse, in fine, num auto- -da-fé na praça pública e na retirada do objecto incriminado). Abanou a cabeça, hesitante. Sim, a nota existia e já era possível utilizá-la em vez da antiga. Mas, ao ver a sua careta contrariada, percebi que não ficara convencido com a introdução daquela novidade no mundo da finança. Após ter consultado o preço das duas obras requeridas (precisamente 50 euros), disse-me que aceitaria a minha nota se eu lhe acrescentasse outra, das antigas, de 10 euros. Protestei. Disse-me, muito seriamente, que uma nota de 50 euros com o rosto de uma mulher valia menos 20% que uma nota do mesmo valor em que estivesse desenhado o retrato de um homem. «Mas porquê?», perguntei, perplexa e um pouco irritada. «Porque as mulheres ganham menos 20% que os homens», declarou, impassível, «e, logo, valem menos 20% que eles». «Outra solução», disse, «é a senhora trocar esses dois livros, escritos por homens, por dois livros escritos por mulheres». Atrapalhada, não soube o que responder e o vendedor, que era, apesar de tudo, um homem afável, aproveitou a vantagem: «Já que quer pagar com dinheiro de brincar, leve livros de mulheres», disse, a sorrir.

(...)