Assunto
Claire Bishop: Atenção desordenada
Afonso Dias Ramos

A eminente historiadora e crítica de arte, a britânica Claire Bishop, conhecida como uma das principais teóricas da ideia da participação nas artes visuais e na performance, prepara-se para lançar um novo livro sobre o problema da atenção na cultura contemporânea dos últimos trinta anos. Em conversa com a Electra, a também professora na City University of New York discute exposições, instalações, crítica e dança, para explorar o modo radical como a tecnologia digital tem vindo a transformar a ideia do espectador.

Claire Bishop é uma historiadora e crítica de arte britânica, professora de História da Arte na City University of New York e editora da revista Artforum. É autora de obras pioneiras sobre cultura contemporânea, como Installation Art: A Critical History (2005), Participation (2006) e Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship (2012). Recentemente tem trabalhado em duas publicações: um estudo sobre os «eventos» de Merce Cunningham e uma colecção de ensaios sobre a atenção e a arte contemporânea desde os anos 90, sob o título Disordered Attention: How We Look at Art and Performance (2024). Este último identifica várias tendências na prática artística contemporânea — instalações à base da investigação, exposições de performance, intervenções e invocações da arquitectura modernista — e o modo como estas desafiam os hábitos tradicionais da atenção. Em conversa com a Electra, Claire Bishop traça um percurso crítico ao longo das últimas três décadas, indicando como o espectador e a literacia visual mudaram radicalmente sob a pressão da tecnologia digital.

AFONSO DIAS RAMOS  O foco constante no seu trabalho em torno da ideia de participação deu recentemente lugar à questão da atenção do espectador. O que motivou esta mudança de direcção?

CLAIRE BISHOP  Não diria que a participação tem sido um foco constante do meu trabalho! Foi um tema da minha investigação de 2004 a 2012. O meu primeiro livro foi sobre instalações artísticas. Também escrevi sobre museus. O fio condutor constante da investigação, desde a tese, tem sido a questão do espectador, do sujeito observador. E, em segundo lugar, interessa-me historicizar e teorizar as estratégias artísticas: a instalação, a participação e, no meu novo livro, outras três ainda. São elas a arte de investigação [research-based art], as exposições de performance e as intervenções. Porquê trabalhar sobre a atenção? Uma das maiores mudanças na nossa cultura e sociedade nos últimos trinta anos — um período que, por sinal, coincide com aquilo a que chamamos «arte contemporânea» — tem sido a tecnologia digital. A velocidade e a escala da mudança têm sido inimagináveis; afecta como comunicamos, como pensamos, como investigamos, como escrevemos. Tendo em conta como muda a nossa experiência do tempo, também afecta o modo como observamos. Tudo isto, julgo, torna-a uma fonte rica de consideração para quem lida com a arte e com espectadores. Neste livro, quis olhar para um período de trinta anos de arte contemporânea de uma forma histórica, acompanhando as mudanças durante estas três décadas, mas através da lente da transformação tecnológica. Qualquer livro sobre a atenção terá de se debater com dois discursos inter-relacionados que surgiram desde os anos 90. O primeiro é o da economia da atenção. Nenhum de nós com um smartphone ou um computador se mantém imune aos seus tentáculos; qualquer olhar e qualquer clique podem ser rentabilizados. O outro discurso existe em torno da Ramosperturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA). A medicação para a PHDA tornou-se indispensável para manter a performance na universidade e no local de trabalho neoliberal; quase 10% das crianças em idade escolar nos EUA estão diagnosticadas com PHDA e tomam medicação prescrita. O discurso à volta da PHDA interliga questões de pedagogia, literacia, neurobiologia e neoliberalismo, e transforma a distracção em algo de patológico de modos que, inesperadamente, vão informar as nossas considerações sobre arte visual e performance.

"Uma das maiores mudanças na nossa cultura e sociedade nos últimos trinta anos — um período que, por sinal, coincide com aquilo a que chamamos arte contemporânea — tem sido a tecnologia digital."

mantegna

Andrea Mantegna, Martirio e trasporto del corpo decapitato di san Cristoforo [Martírio e transporte do corpo decapitado de São Cristóvão], 1457 (detalhe) © Fotografia: Scala, Florença / Cameraphoto / Chiesa degli Eremitani, Pádua

 

ADR  De que modo é que a nova economia da atenção que surgiu nos últimos anos, a competir pelo foco do consumidor a toda a hora, mudou como encaramos a arte e a performance?

CB  A minha resposta é: indirectamente. Ou seja, não da forma que esperaríamos. Obviamente, existe a arte à Instagram: instalações fotogénicas, muito coloridas, que fomentam uma relação consumista com a experiência — desde a Experiência Van Gogh até às instalações de Yayoi Kusama ou à obra Unsupervised de Refik Anadol, um vídeo de Inteligência Artificial popular e enorme, ondulando eternamente, no átrio do MoMA. Mas estou mais interessada nos modos subliminares, complexos e ambivalentes através dos quais um ambiente digital omnipresente à base de ecrãs afecta a literacia visual e a construção da experiência estética. Abordo o problema de uma forma perversa, recusando ir atrás da arte digital e/ou pós-Internet. A força de uma economia da atenção verifica-se melhor, na verdade, nas estratégias artísticas que ao primeiro olhar parecem ter menos que ver com tecnologia: o uso de material de arquivo em instalações de investigação, por exemplo, ou na apresentação de performances ao vivo em museus ou galerias. Estas estratégias exibem uma relação de atracção e repulsa pelo digital: por um lado, a instalação de investigação fetichiza as tecnologias antigas (postais, efémera, faxes, filmes em 35mm, projectores de diapositivos…); por outro lado, os seus métodos rizomáticos de apresentação e as grandes quantidades de material internalizam aquilo a que David Joselit chama de «epistemologia da pesquisa». Vejamos as exposições de performance: a performance ao vivo numa galeria recusa a virtualização da experiência e oferece a emoção de uma presença e proximidade física; porém, estas performances são aparentemente irresistíveis em termos de captura fotográfica, parecem antecipar a circulação fotográfica e são mesmo estruturadas em torno de técnicas digitais (como loops e actualizações) de modo a durarem todo o período de funcionamento do museu.

ADR  O seu novo livro oferece quatro modelos para lidar com a actual economia da atenção. Pode dizer-nos como decidiu enquadrar estes temas?

CB  O meu interesse consiste em definir e explorar certas estratégias artísticas, levantando algumas questões incómodas. Por isso, para ser franca, os métodos de trabalho vieram primeiro, e só retrospectivamente é que vim a perceber que o tema unificador poderia ser a atenção. Foi uma luta tortuosa escrever sobre cada um deles, porque estava a lidar com uma vasta quantidade de exemplos que pareciam mudar continuamente. Foi preciso muito tempo até me aperceber de que tinha de estar mais focada historicamente para poder narrar aquilo que estava a acontecer. O primeiro capítulo é sobre a arte de investigação e o decréscimo de apetite dos observadores para lidarem com grandes quantidades de informação numa instalação ou exposição. O segundo é sobre exposições de performance e redes sociais: em vez de categorizar a utilização que as pessoas fazem dos telefones nas performances como uma «distracção», e por isso um problema, vejo os telemóveis com câmara como um regresso a uma sociabilidade pré-moderna. A forma híbrida de espectador que daqui resulta é também uma oportunidade para criticar o espectador moderno (isto é, absolutamente concentrado) como uma invenção relativamente recente.

ADR  Ao analisar a ideia de literacia e de espectador nestas últimas duas décadas, cunhou duas rubricas específicas: tresler [skimming] e amostrar [sampling]. O que envolvem estas operações?

CB  Quando confrontados com enormes quantidades de texto, ou outro material de arquivo, numa instalação, temos basicamente três respostas. Podemos tresler — ler na diagonal para tentarmos perceber o sentido —, ou podemos isolar uma amostra, olhando para uma vitrine/mesa/canto da instalação e assumir que é representativa do todo. Ambas são maneiras temporalmente eficazes de lidar com uma grande massa de informação. A terceira resposta é a de percorrer diligentemente toda a instalação e ler cada uma das suas palavras — mas isto ocorrerá sob pena de não se ver o resto da exposição! Eu tendo a tresler muito. Não há muitas obras que me façam querer sacrificar o resto da exposição só para lhes fazer justiça.

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