Algumas datas, escandalosamente recentes, servem para situar a presença das mulheres nas narrativas da História e da História de Arte: 1792, ano em que foi recusada em França, pela Convenção, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã1 e 1897, data em que o ensino artístico oficial na École des Beaux-Arts lhes foi finalmente acessível. Se é impensável a recuperação de muitos séculos de silenciamento, torna-se imperativo sinalizar essa consciência.
É por isso irreflectido comentar como fenómeno de moda a regularidade (e insistência) com que vários museus preenchem a sua programação com acções no feminino, sobretudo quando ela faz eco de uma investigação séria e coerente e é apresentada como reparação do conhecimento. São os casos, entre outros, da recente programação do Centro Pompidou e do Museu d’Orsay, em Paris2. Ambos os museus se recentraram numa política dinâmica de exposições, de pesquisa e de edição (e também de aquisição) à volta destas femmes artistes3. De destacar o investimento de investigação temático e disciplinar em Orsay, cuja acção global reflecte um plano e uma pesquisa continuada. No novo percurso da colecção são sinalizadas as mulheres artistas, mas também as mulheres mecenas e ainda as críticas de arte, desenhando um mapa muito completo da presença nas artes dessas protagonistas no final do século XIX, para também melhor se compreender o enquadramento da obra de Berthe Morisot, a artista em foco no museu.
Os percursos artísticos de Dora Maar (1907–1997) e de Berthe Morisot (1841–1895), desenvolvidos em tempos e contextos diferenciados, têm pontos comuns. Até hoje mais conhecidas e mediatizadas pelo olhar de outros — Dora fixada em femme fatale pela câmara de Man Ray e Berthe imortalizada nas pinturas sensuais de Édouard Manet —, enquanto modelos e artistas jogaram as suas vidas pessoais e artísticas no território conflituoso dessa dupla condição, na conquista pela profissionalização.
Na estratégia de comunicação das duas exposições torna-se evidente a mudança de paradigma: repensar o astro masculino na área de influência das criadoras, desfazer o conjunto de clichés sobre as suas obras e impor a singularidade dos seus nomes de autoras no título das exposições, dispensando adjectivações valorativas. A visita comparada às duas exposições permite-nos traçar o percurso das artistas e compreender o contexto histórico em que o fizeram.
O Pompidou reivindica justamente a exposição de Dora Maar como a maior das suas retrospectivas. O propósito curatorial trata de repor o corpo pleno do seu trabalho e desconstruir a imagem de Dora como a mulher que chora, estigmatizada, e assim nomeada na pintura de Picasso, seu amante e companheiro de trabalho durante nove anos, superando a condição de musa pela de autora.
Dora surge na primeira parte da exposição como a garçonne emancipada, o génio da publicidade e da fotografia erótica e de moda, fotógrafa de rua, membro activo e participante do movimento surrealista, autora de fotomontagens audazes. Dora revela-se como a artista que toma a iniciativa e que captura as imagens dos outros, modelos e companheiros de trabalho, e que se antecipou, fixando com a sua objectiva e por diversas vezes a imagem e o rosto de Picasso (Inverno de 1935–36) com o talento de artista que tinha uma identidade a impor. Nesse jogo a dois, entre Picasso e Dora, foi ela a primeira a jogar.
A exposição, que declina em extensas séries todo o brilho e a singularidade experimental do trabalho fotográfico de Dora Maar, parece suspender-se numa sala, onde se arrisca um combate. Picasso irá devolver-lhe o lance: sabe-se que a encorajou e arrastou para o território da pintura. E assim, frente-a-frente, encontramos os dois artistas, num combate desigual. Dora cai na armadilha da réplica, sai do seu espaço e pinta, à maneira de Picasso, o retrato do seu amante (1936), deixando-o proclamar «xeque-mate»4. Fica aqui simbolicamente marcada a perigosa encruzilhada do seu destino artístico. Certamente com um propósito pedagógico, a exposição sinaliza nesse ponto (turning point) o exacto momento do seu declínio. Nos espaços seguintes traça-se o percurso sombrio da sobrevivência da mulher e da artista, que resiste nesse erro, e só já numa idade avançada retoma a fotografia, em exercícios experimentais e abstractos, marcadamente influenciados pelas suas fugas espirituais — valerá a pena consultar os dados biográficos e conhecer as suas passagens pela psiquiatria, os internamentos e as crises místicas. E também olhar com atenção o seu auto-retrato, pintado em 1947, onde deixa marcada essa condição, de deliberada reclusão e tristeza: c’était Pablo ou Dieu.
Se é certo que a exposição recupera em definitivo o seu estatuto de criadora e nos devolve, num extenso e bem organizado corpo de obras, a escala e a ambição de uma carreira multifacetada, é também a percorrer esse vasto percurso que encontramos, e somos livres de interpretar, a luz negra de um astro conhecido.
Tal como Dora Maar, também Berthe Morisot põe o trabalho no centro da sua vida. Fundadora do Impressionismo, foi a única mulher a expor ao lado dos nomes conhecidos da sua geração, afirmando-se como figura destacada da vida artística parisiense, dos seus salons e circuitos oficiais. Fez parte desse movimento de renovação da pintura e dos seus temas oficiais, e foi também a única artista, burguesa é certo, a explorar de modo radical as possibilidades de representação da vida moderna, onde se distinguiu nos temas (le plein air, la lumière claire) e nos modos (non fini). Lutou pelo reconhecimento do seu estatuto de pintora profissional numa época em que a Escola de Belas Artes não era acessível às mulheres e, não tendo sido feminista, apesar de ter vivido no tempo em que o feminismo emergiu em França, sonhou e desejou ser tratada de igual para igual: «Je ne crois pas qu’il y ait jamais eu un homme traitant une femme d’égal à égal, et c’est tout ce que j’aurais demandé, car je sais que je le vaux» [Não creio que alguma vez tenha existido um homem que tratasse uma mulher de igual para igual, e isso era tudo o que eu pedia, porque sei o que valho].
A sua acção artística foi em vida notada e referenciada criticamente, mas a imagem que se impôs ao longo do tempo, aquela que melhor chegou até nós, foi o olhar negro e intenso com que Édouard Manet a imortalizou.
A exposição de Berthe Morisot no Museu d’Orsay interpela-nos pela sabedoria com que apresenta as suas (cerca de 80) obras e pela capacidade de nos interrogar sobre a menor visibilidade da autora face aos seus companheiros da aventura impressionista, Claude Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir, Camille Pissarro, Édouard Manet. No final, a reparação fica feita e os diálogos que podemos estabelecer entre as obras em exposição e a presença destes seus companheiros no museu são ricos e pertinentes.
Berthe fez parte de uma geração de mulheres ainda confinada à esfera doméstica, mas soube retirar do interior desse casulo familiar o essencial para avançar algumas questões temáticas essenciais à pintura do seu tempo, tomando um ponto de vista: a representação do trabalho das educadoras e das domésticas e, sobretudo, a representação de uma paternidade activa. E assim se chega de novo à questão central do artista e do modelo.
Berthe posou pelo menos onze vezes para Édouard Manet, com quem manteve uma relação de grande proximidade, mas foi com Eugène, irmão deste, que acabou por casar. E se até à data não é conhecido nenhum retrato do pintor realizado por ela, que nunca se terá deixado capturar, foi Eugène quem lhe serviu de modelo, nas variadas cenas domésticas e familiares, interiores e de ar livre, a cuidar da filha Julie, assim inovando nessa ousada representação da paternidade.
Berthe mostra intuição e firmeza. O seu auto-retrato não deixa dúvidas: posa para o espectador de paleta e pincel na mão, olhar frontal e o cabelo apanhado numa pose audaz e menos feminina para os estereótipos do tempo. A estratégia curatorial da exposição derruba os discursos da feminização e desvia o nosso olhar para os sinais da sua independência, singularidade e discreta altivez, nos temas e nas escolhas plásticas, surpreendentes até ao fim.
O gesto de escolher o modelo e de o colocar em pose é uma forma de poder, que Paula Rego tão bem soube enunciar muitos anos depois: «I wanted to do a girl drawing a man very much, because this role-reversing is interesting. She’s getting power from doing this, you see…»5 [Queria muito fazer uma rapariga a desenhar um homem porque esta inversão de papéis é interessante. É ela que tem o poder, percebe…].
Partilhar artigo