Assunto
Alimentar a nossa imaginação, com os animais
Vinciane Despret

Os comportamentos territoriais dos pássaros e as analogias políticas e da imaginação que eles suscitam são uma matéria de investigação para a filósofa das ciências belga Vinciane Despret, figura importante dos animal studies que descobriu, no seu percurso filosófico, a importância da etologia.

foujita

Tsuguharu Foujita, Cães amestrados (Carnaval dos cães), 1922

teresa ferrand

Teresa Ferrand, Burra Gainsborough, 2003
© Fotografia: Laura Castro Caldas

 

O etólogo cognitivo Mark Bekoff afirmava que cada animal era uma maneira de conhecer. Creio que esta é uma das formas mais interessantes e fecundas não só de definir os diferentes modos de existência dos animais, quer seja uma carraça, uma aranha social, um babuíno do Quénia, ou um cão vadio em Santiago, mas sobretudo de ter em conta a grande diversidade de formas de relação com um mundo. Inspirando-me no biólogo alemão Jakob von Uexküll, gostaria de acrescentar a esta proposição aquilo a que a gramática chama um complemento directo: «Cada animal é uma maneira de conhecer um mundo.» Não o mundo, precisamente porque isso implicaria impor, logo à partida, um mundo prematuramente unificado — e assim presumir que os animais interpretam, cada um à sua maneira, um mundo que os precederia e que permaneceria, daí em diante, escondido por detrás de um véu opaco de aparências e subjectividades.

Cada animal é uma maneira de conhecer um mundo: o papel da etologia, a ciência que estuda os animais, assemelha-se então, de maneira bem interessante, ao que o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro atribui à antropologia, quando escreve que «se há algo que cabe de direito à antropologia, não é a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo».

É esta precisamente a tarefa que assume a etologia: multiplicar os mundos. Por conseguinte, ela tem não só um papel epistemológico, o de reunir conhecimentos (o seu papel tradicional enquanto ciência dos comportamentos e das maneiras de ser) e o de explorar as várias maneiras de conhecer, mas também um papel ético e político, papéis cruciais cujo impacto se tornou claro nos últimos anos. Ético, porque multiplicar as maneiras de ser é simultaneamente multiplicar as maneiras de nos relacionarmos com o mundo, isto é, «as maneiras de experimentar, sentir, compreender e dar importância às coisas». Parece-me ser aqui que se constitui o verdadeiro cerne da questão ética: «O que é que é importante para ti?» É uma questão bem mais exigente do que aquela que colocou Bentham, por mais necessária que possa ter sido («Podem os animais sofrer?»), mas, sobretudo, é uma questão que corrige o antropocentrismo da tradição humanista que, desde o princípio, excluiu os animais. A etologia tem igualmente um papel político. Desde logo, porque considerar que cada animal é uma maneira de conhecer um mundo leva-nos, na perspectiva inaugurada por Bruno Latour, a colocar a questão da composição desse mundo: não é só com os animais que temos de aprender a compor, a criar um «mundo comum», mas é também com os mundos que são essenciais à sua existência — o que, além disso, dá ao problema das extinções uma outra dimensão: com o desaparecimento das espécies ou colectivos animais são verdadeiros mundos que se desvanecem. Em segundo lugar, e junto-me aqui à visão explicitamente política da antropologia como a define Viveiros de Castro, porque descrever minuciosamente, inquirir, fazer o levantamento da grande diversidade de maneiras de existir e criar o mundo, terá o efeito de nos desacostumar das nossas certezas quanto às formas de nos organizarmos e de pensar as relações, tornando perceptível que o que é poderia ter sido diferente — e, por isso, poderá ser diferente. O trabalho sobre a imaginação a que este género de inquéritos convida é um trabalho político.

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*Tradução de Ana Macedo