Planisfério
Uma dança com Bernard Plossu e um lento barco para a Córsega
André Príncipe e José Pedro Cortes

Com esta «entrega», os fotógrafos e editores André Príncipe e José Pedro Cortes continuam a série concebida para a Electra, que iniciaram com Hisham Mayet, em Tânger, e prosseguiram, no Cairo, com Youssef Rakha. Desta vez, conversaram longamente com o grande fotógrafo francês Bernard Plossu, na casa dele, em La Ciotat. Depois, apanharam um barco para a ilha de Córsega. Numa conversa que se tornou muito íntima, falam da vida, de viagens, da paixão do deserto, do tempo que passa, de fotografia, de fotógrafos, de livros de fotografia e também do trabalho que Plossu fez em Portugal. A dado passo, ouvimos Plossu dizer: «E é verdade, os bons fotógrafos dançam. E, provavelmente, a arte mais próxima da fotografia não é o cinema nem a literatura, é a dança. Um bom fotógrafo é gracioso.» Tal como a dança e a fotografia, esta conversa é uma forma de dar às pessoas e às coisas um movimento e uma luz que as levem além delas.

rocher du capucin

Rocher du Capucin, La Ciotat, Primavera de 2013, André Príncipe

bernard plossu

Bernard Plossu, uma Nikkormat 50 mm, o siroco e o Mediterrâneo, Primavera de 2013, AP

É sexta-feira, 13 de Janeiro de 2023, e estamos com sorte. Está céu azul, e Bernard Plossu espera-nos na plataforma da estação ferroviária de La Ciotat, precisamente onde, em 1896, os irmãos Lumière colocaram a sua câmara para filmar L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat, um dos primeiros filmes alguma vez feitos.

Nos dias seguintes, na sua casa, falámos sobre objectivas, o deserto, livros de fotografia, viajar pelo Oeste Americano, o Sul da Europa, e o porquê de a dança ser o que há de mais próximo da fotografia.

Depois, apanhámos um barco para a Córsega.

ANDRÉ PRÍNCIPE  Podes falar-nos um pouco de ti? Onde e quando nasceste, como é que a fotografia entrou na tua vida.

BERNARD PLOSSU  Nasci em 1945, no Vietname, que na altura se chamava Indochina. Os meus pais viviam lá. Regressámos seis meses depois. Vim com a minha mãe — ela morreu no mês passado — num barco chamado Le Pasteur, que fazia escala em Saigão, Colombo, Porto Said, Marselha. Estava cheio de pessoas que fugiam do Vietname porque os japoneses estavam a preparar um golpe e queriam matar toda a gente. Tenho um camarada, que foi soldado australiano, e nós não podemos sequer falar do Japão. Eles eram terríveis. Quanto aos franceses, era outra história, adoravam os vietnamitas e o Vietname.

JOSÉ PEDRO CORTES  Os teus pais foram para lá trabalhar?

BP  O meu pai, sim. Quanto à minha mãe, o pai dela tinha criado uma pequena empresa chamada Papeteries de l'Indochine que fazia papel reciclado, bambu… Papel muito bonito! O meu avô tinha origem italiana, era parecido com o Vittorio de Sica! A minha mãe viveu por uns tempos em Nápoles, e o meu pai foi para a Indochina muito novo. Era assim naquele tempo, no início do século XX! Nasci pouco antes de Hiroxima e Nagasaki, e quando regressámos a França, o meu pai foi trabalhar para Paris. No início, vivemos em Villard-de-Lans, nas montanhas do «Midi», o Sul de França.

AP  Quantos anos tinhas quando chegaste a Paris?

BP  Devia ter uns quatro anos. Para explicar como surgiu a fotografia… O meu pai ficou órfão aos treze anos. A minha família é de Grenoble. Plossu significa «pelossu», que se couvre de peluche, coberto de peluche, que é um nome das montanhas. O meu pai era um excelente alpinista e era muito amigo de um alpinista famoso chamado Roger Frison-Roche, que escreveu muitos livros sobre o tema, nos quais fala do meu pai. O meu pai escalou montanhas difíceis, como os Écrins, a Meije. Ele e Frison-Roche partiram para o Saara em 1937. Atravessaram o Saara para ir esquiar. De facto, foram publicados vários livros com fotografias do meu pai e de Frison-Roche a esquiar. Mas aquilo não correu lá muito bem, a areia escorregava, mas não o suficiente para deslizar. Falo disto porque fui criado nas montanhas, todas as minhas férias eram passadas nas montanhas, nunca no oceano, sempre a percorrer os caminhos com o meu pai, trilhos muito difíceis. Fiquei a perceber de montanhas e de fotografia de montanha. Cresci rodeado de fotografias a preto e branco das dunas do Saara, e isso marcou-me. Talvez tenha sido por isso que me tornei fotógrafo, não sei.

JPC  Chegaste a ir ao Saara com o teu pai?

BP  Boa pergunta! O meu pai levou-me ao Saara… a Gardaia e a Uargla, em 1958. Ofereceu-me uma Brownie Flash e tirei as minhas primeiras fotografias aos treze anos. A minha relação com a fotografia vem muito do meu pai. Das fotografias de esqui do Saara e desta viagem de iniciação. As fotografias que fiz nessa altura são exactamente como as que faço agora, não há diferença. Eram assim desde o início.

AP  Fotografias de um lugar, da tua percepção de um lugar?

BP  Há um sentimento de viagem de iniciação. Uma pessoa vem de Paris, chega ao Saara, tudo é diferente, os cheiros, os sons, as pessoas… Mais tarde é que veio o chamamento para a fotografia de viagem.

AP  Que aconteceu quando regressaste a Paris? Imprimiste as fotografias?

BP  As fotografias foram impressas num estúdio. Ainda tenho todas as cópias dessa altura. Cópias vintage, pequenas. A minha sorte foi que, quando estive em Paris, ia muito à Cinemateca. Não tinha estudos, não tinha nada, faltava-me tudo. Zero, zero, zero… Mas adorava a Cinemateca. Aprendi a história do cinema e das imagens; os meus professores foram Bergman, Fellini, Pasolini…

AP  Era a Cinemateca de Langlois?

BP  Sim, no Trocadéro. Há uma história… O Langlois veio a La Ciotat, em Abril de 1968, para conhecer Michel Simon, o actor, que vivia aqui… E dizem que o verdadeiro rumo do Maio de 68, o plano que traçaram, foi pensado aqui por Langlois e Simon. É uma história interessante.

AP  Durante esses anos da descoberta do cinema, também fotografavas?

BP  Não, isso foi depois. Em 1965, os meus pais perceberam que tinha deixado de ir aos exames. O meu avô, que também vivia na Indochina, foi viver para o México, encontrou trabalho lá. Os meus pais mandaram-me imediatamente para o México e, em vez de ir para a universidade, tirei fotografias a todos os meus amigos. Foi assim que se deu o encontro com a Geração Beat que vivia no México. Eu tinha vinte anos e percorri as estradas com os beatniks daquele tempo, americanos, mexicanos, argentinos, franceses… Foi a grande época da viagem mexicana… Pela estrada fora… Chiapas, Oaxaca…

AP  Nessa altura, já fazias fotografia…

BP  E também filmava!

AP  Algo se passara entre o Saara e o México. Criar imagens já era o centro da tua existência…

BP  Bem, passara-se o liceu! Tinha reprovado algumas vezes: houve a Cinemateca e outra coisa muito importante! Conheci uma mulher muito bonita, ma petite amie Michele! Comecei a fotografá-la e a filmá-la. O cinema avant-garde, o cinema a sério, tinha-me marcado, e comecei a interpretá-lo à minha maneira, com fotografias! Quem explicou isso muito bem foi Christophe Berthoud, quando disse que Plossu era um «fotoasta», mistura de cineasta com fotógrafo, e eu era ambos. Mas não era um trabalho. Não ganhava dinheiro com aquilo.

JPC  Acho que é uma descoberta natural quando se cresce com literatura ou cinema. Porque escolheste a fotografia?

BP  Não escolhi, fiz ambas as coisas. Filmei muito. Em Janeiro de 1967, voltei para França. Tinha de fazer o serviço militar e, para não ir para o Exército, precisava de um emprego. Com vinte e um anos, sem curso, os alarmes começaram a soar… Tinha trazido comigo as minhas fotografias mexicanas e comecei a mostrá-las em todo o lado, agências de viagens, editoras, jornais. Aos poucos, tornei-me um fotógrafo comercial. Fiz capas e reportagens para muitas revistas como a Atlas ou a Nouvelle Angleterre. Vendi caixas com fotografias a agências de viagens, fiz capas de livros. Os meus arquivos comerciais são imensos. Estão agora na biblioteca do Centro Pompidou. Há o projecto de um dia se fazer uma exposição com as minhas fotografias pessoais, não gosto da palavra «criativas», misturadas com as comerciais, para mostrar a minha vida fotográfica. Compreendi o valor das fotografias a preto e branco da minha Voyage mexicain anos mais tarde, com pessoas como Allan Porter da Camera Magazine e Claude Nori da Contrejour1, que me disseram que as fotografias eram boas. Mas naquela altura eu era um fotógrafo comercial. Fiz de tudo. Adorava aquele trabalho. Para a Segurança Social não era um artista, era um autor fotográfico. A boa fotografia — só me preocupar em fazer as minhas fotografias — veio anos mais tarde, já em 1978–79, quando vivia nos EUA. Mas não antes. Nessa altura, por causa da moda, fiz fotografias com objectiva grande-angular e teleobjectiva. Queimei tudo o que fiz com grande-angular, excepto Le Surbanalisme e Voyage en Absurdie2. Por fim, aderi às de 50 mm e descobri as objectivas que me serviam.

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Esquiar no Sahara, AP

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Bernard Plossu em casa, La Ciotat, Janeiro de 2023, José Pedro Cortes

1. Contrejour é uma famosa editora de fotografia fundada pelo fotógrafo Claude Nori, que entre 1975 e 1995 redefiniu a fotografia europeia moderna.
2. Le Surbanalisme e Voyage en Absourdie são livros de fotografia de Plossu. O primeiro foi publicado pelas Éditions du Chêne em 1972, o segundo nunca foi publicado.

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